A (i)legalidade da prova obtida em diligência policial desprovida deregistro audiovisual

Por
3 min. de leitura

1. Introdução

O Habeas Corpus nº 896.306/SC, julgado pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça em 20 de março de 2025, sob a relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz, reafirma um importante marco na consolidação das garantias constitucionais no processo penal brasileiro: a centralidade do controle da legalidade das ações estatais e o fortalecimento da cadeia de custódia probatória, especialmente quando se trata de diligências invasivas como buscas pessoais e domiciliares.

Este artigo tem por objetivo analisar os principais fundamentos da decisão, suas repercussões no âmbito da prova penal e a exigência crescente de uso das tecnologias disponíveis – como câmeras corporais – para legitimar e dar transparência às ações policiais.

2. O caso concreto e o cerne da controvérsia

No caso em análise, a defesa impugnou a legalidade de provas obtidas em diligência policial baseada exclusivamente em relatos dos agentes de segurança pública, que, embora dispusessem de câmeras corporais, não geraram ou apresentaram qualquer registro audiovisual da operação.

Os policiais alegaram que o local onde se deu a entrada – um suposto “apartamento abandonado e invadido” – estaria fora da proteção do domicílio constitucionalmente assegurado. Não obstante, constavam nos autos indícios de que o paciente habitava o imóvel, o que reforçava a necessidade de autorização judicial ou de situação de flagrância para legitimar a entrada.

3. O entendimento do STJ: desconfiança quanto à narrativa policial desassistida de registros objetivos

A 6ª Turma do STJ, seguindo sua linha jurisprudencial protetiva das garantias fundamentais, entendeu como ilícita a prova obtida mediante busca pessoal e domiciliar realizada sem mandado judicial, sem flagrante delito e baseada unicamente em testemunhos policiais – notadamente quando havia câmeras corporais disponíveis e nenhuma gravação foi apresentada.

A ausência de registros audiovisuais, em um contexto em que esses mecanismos estavam disponíveis, impossibilita a verificação da legalidade da diligência e compromete a confiabilidade do relato policial. Esse déficit de transparência e de controle probatório é, para a Corte, insuperável do ponto de vista do devido processo legal.

4. A centralidade da cadeia de custódia e o papel das tecnologias no processo penal contemporâneo

A decisão ora analisada revela uma transformação paulatina da jurisprudência penal: a prova penal deve estar submetida a critérios objetivos de controle e integridade. A cadeia de custódia, prevista no art. 158-B do Código de Processo Penal, tem por finalidade garantir a idoneidade da prova desde sua origem até sua eventual valoração em juízo.

Nesse sentido, quando os órgãos policiais dispõem de ferramentas tecnológicas que asseguram a veracidade das diligências (como as câmeras corporais), mas optam por não as utilizar ou por ocultar seu conteúdo, instala-se um grave déficit de confiabilidade. A omissão, nesse cenário, é interpretada contra o Estado-acusador.

5. Inviolabilidade de domicílio e relativização indevida da norma constitucional

Outro ponto fundamental da decisão é a reafirmação da inviolabilidade domiciliar como regra constitucional de observância obrigatória. O argumento de que se tratava de “apartamento abandonado” não foi suficiente para afastar a proteção do art. 5º, XI, da Constituição Federal, sobretudo diante de indícios de que o paciente residia no local.

A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial só é legítimo se houver fundada suspeita de que o morador esteja em flagrante delito. A presunção de abandono ou a percepção subjetiva dos policiais não podem, por si sós, subverter tal garantia.

6. A crise da prova testemunhal policial isolada

A decisão também aponta um aspecto sensível do sistema de justiça criminal brasileiro: a supervalorização da prova testemunhal de agentes estatais, muitas vezes tomada como suficiente para fundamentar medidas gravosas.

O STJ tem demonstrado crescente preocupação com a confiabilidade de tais relatos, especialmente quando não são corroborados por elementos materiais ou audiovisuais. A proteção dos direitos fundamentais impõe que, quanto mais invasiva a diligência, maior o ônus argumentativo e probatório do Estado.

7. Conclusão

O HC 896.306/SC reflete uma evolução jurisprudencial na proteção de garantias constitucionais e no tratamento da prova penal à luz dos princípios do devido processo legal, da publicidade e da ampla defesa. O julgado evidencia que o uso das tecnologias disponíveis, como as câmeras corporais, deixou de ser uma faculdade para se tornar uma exigência de legalidade e transparência da atuação estatal.

A decisão reforça o entendimento de que, em um Estado Democrático de Direito, não se admite que a privacidade domiciliar e a liberdade individual sejam sacrificadas com base apenas em relatos unilaterais, sem qualquer controle externo ou elemento de corroboração.

O julgado também contribui para sedimentar uma cultura processual baseada na prova qualificada, no respeito à cadeia de custódia e no protagonismo das garantias fundamentais, afastando a lógica inquisitorial e arbitrária que ainda permeia muitas práticas policiais.

Autora: Carolina Carvalhal Leite. Mestranda em Direito Penal. Especialista em Direito Penal e Processo Penal; e, Especialista em Ordem Jurídica e Ministério Público. Graduada em Direito pelo UniCeub – Centro Universitário de Brasília em 2005. Docente nas disciplinas de Direito Penal, Processo Penal e Legislação Extravagante em cursos de pós-graduação, preparatórios para concursos e OAB (1ª e 2ª fases). Ex-servidora pública do Ministério Público Federal (Assessora-Chefe do Subprocurador-Geral da República na Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – PFDC). Advogada inscrita na OAB/DF.

Por
3 min. de leitura