Por: Projeto Exame de Ordem | Cursos Online
Venho sempre apresentando, por publicação em artigos[1] e obras jurídicas, como Investigação pela Polícia Judiciária e Polícia Judiciária no Estado de Direito[2], publicados pela Lumen Juris, o embaraço que nosso ordenamento jurídico processual penal causa, em sede policial, às garantias fundamentais e aos direitos humanos. Seja sob o viés do imputado como sujeito de direitos, ou pela necessidade de eficiência de resposta efetiva pelo Estado às violações das vítimas, que são punidas indiretamente com a morosidade e ausência de tutela efetiva, como a leniência na aprovação de mecanismos eficientes para o afastamento da proteção deficiente nas medidas de urgência em casos de violência doméstica e familiar, pelo PLC 07/2016, na qual já explicitamos sua crucial necessidade e urgência de aprovação[3].
Acredito que um estudioso da ciência jurídica deva se preocupar não somente na pesquisa de temas aprofundados na área de conhecimento humano na qual é vocacionado, mas torná-la efetiva no seu dia a dia, o que retira o senso comum do centro de sua atuação profissional, sob pena de assim não procedendo, enveredar em atividade típica de um charlatão. A ciência sem sua efetividade prática a torna totalmente estéril, o que justifica obrigatoriamente o trabalho constante de parametrizar seus significantes e significados em uma linguagem que nos permita ascender a um sistema uniforme de efetivação de Direitos, da qual a ordem jurídica justa possa incidir desde a fase investigativa até a processual penal.
Citarei dois exemplos práticos. Em determinada ocasião me foi apresentado uma pessoa capturada, e sua consequente condução coercitiva até a delegacia, suspeito da prática de crime cuja pena máxima era de cinco anos. Noutra circunstância, a condução ocorreu em razão da prática de dois crimes em concurso material, cujo somatório das penas máximas resultaria em seis anos, ambos punidos com detenção.
Em ambas as hipóteses, numa leitura retrospectiva da norma esculpida no disposto do artigo 322 do Código de Processo Penal, o delegado de Polícia não poderia conceder liberdade provisória, e o detido seria encaminhado à audiência judicial de custódia. Seria essa a verdadeira solução ao caso concreto? Foi essa a resposta a uma questão para concurso público para ingresso na carreira de delegado de Polícia Civil do Distrito Federal. Lamentável.
Por uma questão de coerência científica e acadêmica, se a doutrina é uniforme em entender que a liberdade provisória é uma espécie de medida cautelar, ou contracautela[4], não há outra conclusão lógica que não situar a lavratura do auto de prisão em flagrante com liberdade provisória mediante fiança como duas decisões de naturezas jurídicas de medidas cautelares, tendo em vista que o Delegado poderia deixar de arbitrar fiança, estando presentes o fumus comissi delicti e o periculum libertatis da prisão preventiva, conforme artigo 324, IV combinado com artigo 335, ambos do CPP.
Seja uma decisão emanada por autoridade administrativa ou não, o rótulo não altera o conteúdo e a finalidade, em outras palavras, a decisão pela detenção, a que alude o artigo 304, §1º, do CPP, instrumentalizada pela expedição de nota de culpa (verdadeira ordem de detenção), levando o cidadão ao cárcere, assume contornos de uma medida decisória e eminentemente cautelar.
Estou me referindo não à captura, na qual qualquer do povo pode realizar, mas a detenção após a ordem de prisão do delegado de Polícia pela nota de culpa (e não a equivocada expressão: “ratificação de voz de prisão”), na qual somente o delegado de Polícia, investido no cargo, pode expedir. Por oportuno, deixo registrado que a natureza cautelar de atos administrativos não é novidade na doutrina[5]:
“O inquérito policial é uma medida complexa, pois é formada por diversas outras medidas, todas direcionadas à sua meta optata: servir de base e apoio a atividades que se desenvolverão em juízo. Não parece, outrossim, que haveria inconveniência em designar o inquérito policial como um procedimento administrativo cautelar.”
Feitas estas pequenas premissas, volto à união estável entre o pragmatismo e dogmatismo: o delegado pode e deve analisar a liberdade provisória em crimes com pena máxima acima de quatro anos!
A uma, porque o artigo 322 do CPP é inconvencional por violar tratados de direitos humanos, na qual abordamos em artigo publicado na revista consultor jurídico[6].
A duas, ainda que não se entenda pela inconvecionalidade do dispositivo apontado, em hermenêutica sem maiores complexidades, confere-se plenamente possível a liberdade em sede policial em qualquer crime punido com detenção, seja pela pena máxima isolada, como os crimes do artigo 7º da lei 8.137/90 ou ainda que em eventual concurso material de crimes, desde que ambos sejam punidos com detenção, como por exemplo, artigo 331 do CP e artigo 306 da lei 9.503/97.
Ainda podemos lembrar que se o crime tiver previsão de pena cominada com reclusão e alternativamente pena de multa é mais uma hipótese a se ensejar como possível a liberdade provisória em sede policial, face o entendimento do STF, porquanto cabível a suspensão do processo nas hipóteses de crimes que possuem em seu preceito secundário a pena de multa isoladamente considerada, ainda que a pena mínima seja superior a 1 ano, face a consideração in abstrato da possibilidade de o réu ser punido apenas com multa, conforme HC nº 83.926-6, rel. ministro Cezar Peluso. Na doutrina, trazemos à baila o escólio de Paulo Rangel[7], neste jaez:
“Se a autoridade policial sempre pôde conceder fiança nos crimes punidos com detenção e agora a lei a legitima a fazê-lo em crimes cuja pena não seja superior a quatro anos, autorizando, inclusive, por exemplo, a conceder fiança no crime de furto simples (punido com reclusão), não faz sentido que não possa conceder nos crimes punidos com detenção, seja o máximo da pena superior ou não a quatro anos. (….) É cediço que quem pode o mais pode o menos. Logo, é claro que a autoridade policial poderá conceder fiança em todos os crimes punidos com detenção, seja qual for a pena imposta.”
No mesmo sentido[8]:
“Pensemos então em um crime punido com detenção de 05 anos, como é o caso do artigo 5º da lei 8.137/90 (crime contra as relações de consumo). Teria a Lei nº 12.403/2011 impedindo a fiança pela autoridade policial em tais casos? A nosso ver, não. A referida lei veio ampliar a dimensão da liberdade e esta deve ser sua matriz interpretativa. Desta forma, não pode ela, em relação ao direito fundamental de liberdade, representar um retrocesso social, sob pena de violar o princípio da vedação do retrocesso.”
É imperioso concluir que diante desta realidade sistêmica, há de se denotar a total possibilidade de que a regra do artigo 322 do Código de Processo Penal, além de irracional e desproporcional não sobrevive a um controle difuso de convencionalidade ou uma interpretação sistemático-teleológica.
Além destas incongruências, há outras, como por exemplo, a irracional defesa pela doutrina clássica, de que o Delegado de Polícia seja obrigado a expedir nota de culpa em hipóteses flagranciais nas quais tenham o agente ter praticado fato típico, porém, lícito, face a presença alguma excludente de ilicitude, ou ausente alguma circunstância excludente de culpabilidade, salvo a imputabilidade por enfermidade mental, por força de uma interpretação restritiva do artigo 310, parágrafo único do CPP.
É evidente, que em um caso como este, que demandaria outro artigo em nossa coluna, não sobrevive a uma interpretação conforme a constituição, haja vista que a liberdade provisória está acobertada pela reserva absoluta da jurisdição, como a prisão preventiva o é, tanto que o Código admite arbitramento de fiança pelo Delegado e pelo Juiz.
Assim sendo, diante de uma maior efetividade dos direitos fundamentais, é forçoso concluir que a redação do artigo 310, parágrafo único do CPP não denota se tratar de uma decisão exclusiva do magistrado, mas pelo contrário, é facilmente deduzível que sua manifestação ocorrerá porque o delegado não reconheceu alguma hipótese de presença de alguma excludente de ilicitude, haja vista que o próprio CPP, conferiu a possibilidade deste juízo de valor pelo delegado quando prevê a lavratura de “auto de resistência”, resultado de uma análise técnico-jurídica de atuação de agentes em legítima defesa ou em estrito cumprimento de dever legal. Não seria esta uma hipótese de juízo de valor de excludentes pelo delegado?
Qual razão, portanto, diante do ordenamento Constitucional vigente, de se efetivar a regra de tratamento oriundo da presunção de inocência, que impõe a liberdade como regra, sendo o delegado de Polícia o primeiro garantidor dos Direitos Fundamentais, consequentemente não se interpretar que o artigo 310, parágrafo único do CPP como uma hipótese de Habeas Corpus de oficio em razão da discordância sobre a avaliação jurídica realizada pelo delegado, que decidiu pela expedição de nota de culpa, representando pela prisão preventiva, porém, diante da independência entre os poderes, decidiu o juiz pela liberdade provisória de ofício, em verdadeira concessão de um writ, ainda que o Ministério Público tenha opinado a favor da prisão?
O auto de resistência não é um salvo conduto para o agente da autoridade agir em excesso, devendo, inclusive lavrar auto de prisão em flagrante (detenção), com expedição de nota de culpa, o policial que agir em excesso. Em outras palavras, o que justificaria a possibilidade do delegado emitir juízo de valor sobre as excludentes diante da regra do artigo 292 do CPP e não na hipótese do artigo 310, parágrafo único do CPP?
Não tenho nenhuma dúvida de que a leitura constitucional que se realiza deste dispositivo é de efetivação da prisão como exceção, consequentemente o artigo 310, parágrafo único, acima aludido, interpreta-se de forma extensiva, por representar uma garantia fundamental, e não restritiva, cuja redação tem razão de ser quando não for realizado juízo de valor sobre qualquer tipo de excludente pelo Delegado de Polícia, como já o faz no artigo 292 do CPP, face a sua total autonomia técnico-jurídica, expressamente autorizada pelo artigo 2º, caput e seu §6º, da Lei 12.830/13.
Como disse Eugen Bertholt Friedrich Brecht: “Que tempos são estes, em que temos que defender óbvio?”
Fonte: conjur.com.br
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