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Por Ingo Wolfgang Sarlet
A prisão civil do devedor de alimentos segue sendo a única possibilidade prevista no sistema internacional de proteção dos direitos humanos para a prisão por dívidas, ademais de ter sido estabelecida, juntamente com a prisão do depositário infiel (esta afastada por força de Súmula Vinculante do STF), na Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, inciso LXVII, dispondo sobre a legitimidade da prisão nos casos de inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentar.
A justificativa de tal previsão é mais do que sabida e em si reconhecida, visto que a restrição do direito de liberdade do devedor é tida como indispensável à garantia da própria sobrevivência ou, ao menos e em geral, da satisfação de necessidades essenciais do credor. Por tal razão, a própria possibilidade da prisão civil constitucionalmente prevista, a despeito de constituir fundamento da restrição de direito (da liberdade do devedor), é ela própria uma garantia fundamental.
Todavia, como em geral todo direito e garantia fundamental, o seu alcance — aliás, como previsto no próprio dispositivo constitucional citado — será objeto de regulamentação legal, e, via de consequência, interpretação pelos juízes e tribunais, de tal sorte que a própria legislação regulamentadora poderá vir a ser, a depender do caso, declarada inconstitucional ou ser objeto de uma interpretação conforme a constituição ou mesmo não recebida pela nova ordem constitucional.
De todo modo, se no sistema processual anterior, do Código de Processo Civil de 1973, já existiam algumas importantes controvérsias, em especial quanto ao regime prisional, dada a omissão legislativa a esse respeito, o problema volta a ter papel de destaque mediante a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), que introduziu alguns importantes ajustes no âmbito do procedimento especial que regula a execução da obrigação alimentar.
Com efeito, tendo em conta que o objetivo do instituto da prisão civil não é em si de caráter punitivo, portanto, não tem por escopo a prisão em si considerada, mas constitui meio processual para compelir o devedor a saldar sua dívida alimentar, o Código de Processo Civil de 1973, no seu artigo 733, parágrafo 1º, previa que o juiz decretaria a prisão pelo prazo de 1 a 3 meses no caso de o devedor não pagar nem se escusar, ou nos casos em que a escusa apresentada for afastada por improcedente pelo Poder Judiciário.
Dentre os principais aspectos relacionados com a prisão civil já no regime anterior ao novo CPC, destacam-se, para efeito de nossa breve análise, o entendimento de que a prisão deveria ser cumprida em regime fechado (entendimento consagrado pela jurisprudência dominante) e que, de acordo com a Súmula 309 do STJ, a prisão apenas seria possível em relação às três últimas parcelas devidas, devendo as demais parcelas vencidas serem executadas pela via regular.
A despeito do entendimento referido, nem todos os magistrados e tribunais davam acolhida ao entendimento fixado pelo STF no que diz com o regime fechado, optando por impor o recolhimento ao estabelecimento prisional no período da noite e aos finais de semana (o Tribunal de Justiça do RS sufragava em sua ampla maioria tal entendimento), ao mesmo tempo evitando o contato direto dos presos por dívida alimentar com presos comuns em regime fechado e, de modo especial, assegurando-lhes a possibilidade de auferir recursos para seu próprio sustento e para cumprir com suas obrigações alimentares. Além disso, convém recordar que o STJ admitia o regime de prisão domiciliar em casos de grave enfermidade ou idade avançada.
Aliás, tal alternativa — designadamente a do trabalho durante o período diurno e prisão em regime fechado apenas em caso de reiterado e injustificado inadimplemento — chegou a ser aventada ao longo dos debates sobre o tema travados no Congresso Nacional.
Não foi, contudo, o que prevaleceu, pois o novo CPC, no seu artigo 528, parágrafo 4º, prevê que a prisão do devedor de alimentos deverá ser cumprida em regime fechado, mas ressalva que o preso deverá ficar separado dos presos comuns. Além disso, a exemplo do regime do CPC anterior, o novo CPC (artigo 528, parágrafos 5º e 7º) prevê que o cumprimento da pena (embora de pena no sentido próprio do termo não se trate!) não exime o executado do pagamento das prestações vencidas e vincendas, ademais de estabelecer que apenas o débito relativo às três prestações anteriores ao ajuizamento da ação e às que se vencerem no decurso do processo autorizam o decreto prisional.
Assim sendo, quanto à prisão em si, o novo CPC inovou basicamente naquilo que integrou no texto legal o que já constituía entendimento jurisprudencial consagrado, além do que já contava com previsão legislativa expressa.
Isso, contudo, não significa que o novo CPC não tenha inovado na matéria, pois no artigo 528, parágrafo 1º, ficou estabelecido que caso não pago o débito ou não justificado o inadimplemento, o juiz mandará protestar o pronunciamento judicial respectivo, isso antes mesmo da prisão civil, protesto que cabe tanto em relação a alimentos provisórios quanto definitivos e que será determinado pelo juiz de ofício, ou seja, mesmo sem requerimento específico por parte do exequente.
Além disso, nos termos do artigo 529, parágrafo 3º, do novo CPC, o juiz poderá determinar o desconto de até 50% dos vencimentos líquidos do devedor, de modo a viabilizar um desconto adicional (por conta da execução de alimentos) ao desconto regular judicialmente determinado na ação de alimentos.
Dentre os inúmeros pronunciamentos sobre o tema, dada a sua permanente atualidade e relevância, vale colacionar matéria publicada no Informativo do IBDFam (Instituto Brasileiro de Direito de Família), em 9 de novembro, destacando-se manifestação do professor Paulo Lôbo, advogado e diretor da entidade, questionando o instituto da prisão em si, como vetusto e não adequado ao patamar civilizatório, devendo o mesmo ser utilizado apenas em casos excepcionais e de reiterado descumprimento. Além disso, foi referida jurisprudência do STF reconhecendo a ilegitimidade jurídica da prisão quando demonstrada a incapacidade econômica do devedor, bem como decisões do STJ afastando a prisão dos avós quando o pai tiver condições de assumir o pagamento da dívida alimentar.
À vista do quadro sumariamente traçado, é perceptível, do ponto de vista da interpretação e da aplicação dos direitos fundamentais, que mesmo na esfera da divida alimentar existem aspectos que reclamam um adequado equacionamento, no sentido de que sejam respeitados os critérios que balizam o controle de constitucionalidade das restrições a direitos fundamentais.
Reitere-se, nessa quadra, o que já foi adiantado, isto é, que mesmo tendo a prisão civil do devedor de alimentos expresso respaldo constitucional, a lei regulamentadora e a decisão judicial que a aplica não poderão desbordar de determinados critérios, pois a imposição da prisão não poderá resultar em violação de direitos fundamentais do devedor de alimentos, ademais de guardar sintonia com os critérios da proporcionalidade e da proibição de excesso de intervenção.
Ora, ainda que aqui não se pretenda mapear todos os aspectos problemáticos nem se poderá aprofundar o debate, alguns pontos merecem ser destacados e podem indicar um caminho a trilhar.
Em primeiro lugar, em observância ao subcritério da necessidade, poder-se-á considerar como alternativa prioritária que a prisão do devedor de alimentos somente deverá ser decretada apenas depois de esgotados outros meios de coerção, como, por exemplo, o protesto da decisão judicial que desacolhe a justificativa apresentada pelo devedor ou mesmo o desconto em folha adicional, ambos previstos no novo CPC.
Note-se que tal alternativa (protesto judicial) é de ser privilegiada ainda que o artigo 528, parágrafo 1º, do novo CPC disponha que o Juiz determinará o protesto e decretará a prisão. Contudo, para que o protesto não implique seja postergado de modo desarrazoado o adimplemento da dívida alimentar, há de ser fixado prazo adequado às circunstâncias, para, transcorrido o mesmo sem reação positiva do devedor, ser então decretada a prisão.
Além disso, a própria fixação do regime fechado, ainda que o cumprimento seja em separado dos presos comuns, não convence do ponto de vista de sua legitimidade constitucional, seja por se tratar de meio mais gravoso do que o regime semiaberto (recolhimento durante o período noturno e aos finais de semana), seja pelo fato de que poderá até mesmo comprometer a possibilidade de o devedor pagar o seu débito vencido, assim como regularizar o pagamento das prestações vincendas. Dito de outro modo, tanto devedor quanto mesmo o credor, ao menos em determinadas situações (o que poderá e deverá ser apreciado à luz das circunstâncias do caso concreto) poderão ter seus direitos fundamentais afetados de modo mais intenso.
Mesmo que se entenda que o regime deva ser o fechado (o que, em regra, não nos parece legítimo, salvo em caso de reiteração da inadimplência injustificada), no caso de ser inviável acomodar os presos por dívida alimentar dos presos comuns há de ser aplicado o regime da prisão domiciliar, que, de resto, já deve ser assegurado aos presos comuns quando inexistir estabelecimento prisional incompatível com o cumprimento da pena em regime que não seja o fechado, consoante recente Súmula do STF. Aliás, mesmo o recolhimento no período da noite e aos finais de semana não se revela alternativa constitucionalmente legítima quando a acomodação dos presos por dívida alimentar não puder ser levada a efeito de modo separado dos presos comuns.
O que não resulta legítimo do ponto de vista constitucional, por mais relevante que seja — e o é — a satisfação das necessidades alimentares pelos responsáveis pelo seu adimplemento — é que pais, mães e avós sejam, na esfera cível, submetidos a condições até mesmo mais gravosas (como dá conta o problema do regime prisional e da prisão domiciliar) de presos comuns provisórios ou definitivos, ou que, por força de prisão civil, sejam — no que diz com as condições de cumprimento da prisão — equiparados aos presos comuns.
Assim, em homenagem aos critérios da proporcionalidade, não apenas a prisão civil do devedor de alimentos deverá ser a última alternativa (pois a prisão em si não é ilegítima do ponto de vista constitucional), mas, quando aplicada, não poderá implicar condições tão ou mesmo mais gravosas aos presos por dívida alimentar do que àquelas impostas aos presos comuns, que, de acordo com correta orientação do STF, também devem ser preservados em relação a condições desumanas e degradantes de cumprimento da pena.
Além do mais, importa que se promovam alternativas eficazes para, em não sendo possível erradicar, ao menos reduzir e, em sendo o caso, mitigar os efeitos da prisão por dívida alimentar, sem deixar de atender as necessidades dos credores de alimentos. No limite, em situação de comprovado desemprego do alimentante ou não tendo o Estado condições de assegurar o cumprimento da prisão em condições minimamente compatíveis com a dignidade pessoal do devedor da obrigação alimentar, há que prever políticas públicas de assistência social supletiva, aperfeiçoando a proteção social das crianças e adolescentes ou outras pessoas credoras de verba alimentar, de modo a garantir uma fórmula de responsabilidade compartilhada, ademais de social e humanamente mais compatível com a dignidade da pessoa humana tanto de credores quanto dos devedores.
Esse, sem dúvida, é mais um dos tantos desafios postos ao legislador, aos atores do sistema judiciário e ao meio acadêmico, evitando-se posições de caráter intolerante e mesmo fundamentalista, típicos de uma infrutífera lógica do tudo ou nada.
Fonte: conjur.com.br
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