A Quinta Turma do STJ, exercendo controle de convencionalidade, descriminalizou a conduta tipificada como crime de desacato a autoridade, por entender que a tipificação é incompatível com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).
O desacato a autoridade constitui conduta tipificada no art. 331 do Código Penal, com a seguinte redação:
Art. 331 – Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.
A doutrina, de um modo geral, identifica como objetividade jurídica tutelada pelo art. 331 do Código Penal o normal funcionamento da administração pública, por meio da preservação do prestígio dos funcionários públicos perante a comunidade.
Para o relator do REsp 1640084, Ministro Ribeiro Dantas, a criminalização do desacato está na contramão do humanismo, violando regras de direito internacional adotadas pelo Brasil, porque ressalta a preponderância do Estado – personificado em seus agentes – sobre o indivíduo; dando maior proteção aos agentes públicos frente à crítica, em comparação com os demais, algo contrário aos princípios democráticos e igualitários que regem o país.
A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), aprovada em 1969, e promulgada, no Brasil, em 1992 (Decreto 678/92), garante a liberdade de pensamento e de expressão:
Artigo 13 – Liberdade de pensamento e de expressão
1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha.
2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar:
a) o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;
b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada em Washington/DC, já no ano 2000, aprovou a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão, com o seguinte teor:
“11. Os funcionários públicos estão sujeitos a um maior controle por parte da sociedade. As leis que punem a manifestação ofensiva dirigida a funcionários públicos, geralmente conhecidas como ‘leis de desacato’, atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação.”
Para a CIDH, o pleno exercício da liberdade de expressão é um dos principais mecanismos com que a sociedade conta para exercer um controle democrático sobre as pessoas que têm a seu cargo assuntos de interesse público. A aplicação de leis de desacato para proteger a honra dos funcionários públicos que atuam em caráter oficial outorga-lhes injustificadamente um direito a proteção especial, do qual não dispõem os demais integrantes da sociedade. Essa distinção inverte diretamente o princípio fundamental de um sistema democrático, que faz com que o governo seja objeto de controles, entre eles, o escrutínio da cidadania, para prevenir ou controlar o abuso de seu poder coativo.
Considerando-se que os funcionários públicos que atuam em caráter oficial são, para todos os efeitos, o governo, então é precisamente um direito dos indivíduos e da cidadania criticar e perscrutar as ações e atitudes desses funcionários no que diz respeito à função pública.
Juntamente com as restrições diretas, as leis de desacato restringem indiretamente a liberdade de expressão, porque carregam consigo a ameaça do cárcere ou multas para aqueles que insultem ou ofendam um funcionário público.
A decisão unânime da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça ressaltou que o Supremo Tribunal Federal já firmou entendimento de que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil têm natureza supralegal. Para a turma, a condenação por desacato, baseada em lei federal, é incompatível com o tratado do qual o Brasil é signatário.
O relator do acórdão, no entanto, destacou que a decisão não invade o controle de constitucionalidade reservado ao STF, já que se trata de adequação de norma legal brasileira a um tratado internacional, o que pode ser feito na análise de um recurso especial, a exemplo do que ocorreu no julgamento da Quinta Turma.
Para o ministro, o controle de convencionalidade não se confunde com o controle de constitucionalidade, uma vez que a posição supralegal do tratado de direitos humanos é bastante para superar a lei ou ato normativo interno que lhe for contrária, abrindo ensejo a recurso especial.
O Controle de convencionalidade está diretamente ligado aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, que, afinal, constituem o objeto deste controle judicial.
Na história constitucional recente, por meio da emenda nº 45/04, que acrescentou o §3º ao art. 5º da Carta Magna, foi conferida a possibilidade dos tratados internacionais de direitos humanos terem o status de norma constitucional, possibilitando o surgimento de um novo instituto para a proteção e garantia desses tratados contra investidas não autorizadas de normas infraconstitucionais, denominado de controle de convencionalidade.
A partir de 2004, portanto, toda lei ordinária, para possuir validade terá que contar com compatibilidade dupla; a primeira face à Constituição Federal, no controle de constitucionalidade; bem como nos tratados internacionais de direitos humanos no controle de convencionalidade.
O Superior Tribunal de Justiça, ao declarar, incidenter tantum, a “inconvencionalidade” do art. 331 do Código Penal, descriminaliza a conduta tipificada no preceito primário do referido dispositivo legal; sem, contudo, ressalte-se, vincular as demais instâncias do Poder Judiciário, já que, embora discutida na doutrina, a repercussão geral não constitui efeito das decisões do tribunal superior.
O exercício do controle de convencionalidade é um dever do juiz nacional, podendo ser feito a requerimento da parte ou mesmo de ofício, em face de sua natureza difusa de controle.
O relator do acórdão preocupou-se em deixar claro que a descriminalização da conduta não significa liberdade para as agressões verbais ilimitadas, já que o agente pode ser responsabilizado de outras formas pela agressão; a exemplo dos demais cidadãos, que tem a honra como objeto jurídico tutelado dos crimes de calúnia, difamação e injúria (Arts. 138, 139 e 140 do Código Penal).
A jurisprudência brasileira confere aos tratados em geral valor equivalente ao das leis infraconstitucionais e aos tratados de direitos humanos valor infraconstitucional, mas supralegislativo. Os tratados de direitos humanos têm como objetivo a proteção dos direitos fundamentais dos seres humanos frente ao seu próprio Estado como também frente a outros Estados contratantes.
Os direitos fundamentais advindos de tratados internacionais nascem na ordem jurídica supra-estatal e existem independentemente do reconhecimento e da proteção pela ordem jurídica interna brasileira. São direitos fundamentais independentemente da sua incorporação na Constituição da República. Sendo assim, o Brasil está obrigado a observar tais direitos, cabendo ao Poder Judiciário exercer o controle difuso de convencionalidade, por meio de seus tribunais e juízes de primeiro grau.
Flávio Milhomem
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Flávio Milhomem – Mestre em Ciências Jurídico-Penais, Doutorando em Direito e Políticas Públicas, Docente nas disciplinas de Direito Penal e Processo Penal desde 1997, Docente titular do curso de Direito (bacharelado) e da pós-graduação do Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP, Brasília/DF, professor de cursos preparatórios para concursos, Promotor de Justiça Criminal do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios desde 1.997.
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