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É natural ao ser humano a vontade de desenvolver-se o mais plenamente possível, como também a de desejar constituir família em determinado momento da vida, ainda que isso não ocorra com a totalidade das pessoas, e mesmo considerando todas as novas formas de família, algumas bem diferentes das tradicionais, aquela formada por mãe-pai-filhos e demais parentes.
Assim como lar não é a mesma coisa que casa, a família não deve ser vista com mero agrupamento de pessoas que vivem sob o mesmo teto e que possuem uma ancestralidade comum.
Família deve ser muito mais que somente isso. Deve ser a união afetiva de pessoas que possuem afinidades, divergências, e, ainda que haja muita discórdia, que saibam elaborar e resolver satisfatoriamente suas diferenças, porque é no lar, no seio da família, que se exercita em primeiro lugar a prática do convívio, do entendimento, da resiliência, da paciência, do amor etc, e que irão representar, ao final, um expressivo aprendizado para convívio em sociedade.
Portanto, a base, a essência da família é o afeto, o respeito. É por intermédio dessas virtudes que se promovem as condições para o crescimento emocionalmente harmônico e saudável, mediante o qual se desenvolve aptidão para enfrentar com maturidade e discernimento os obstáculos e dificuldades naturais da vida.
Esse afeto precisa ser criado, fomentado e irradiado no seio familiar, sendo absolutamente necessário que seja transmitido à criança desde a gestação, pois já se sabe que o feto tem condições de se sensibilizar pelas emoções sentidas e transmitidas pela mãe, daí a essencialidade de um ambiente doméstico calmo, que transmita segurança, tranquilidade, amor.
Do contrário, estarão sendo germinadas no próprio lar as sementes dos principais problemas que advirão na infância, na adolescência ou na fase adulta do ser eventualmente criado sem afeto, o qual poderá voltar-se não somente contra a própria família, mas contra toda a sociedade, na condição de adulto mais vulnerável aos males sociais, como violência de todo tipo, drogas e outros vícios e desequilíbrios.
Não podemos esquecer que é nesse cenário que serão geradas as pessoas e futuros profissionais que atuarão nas mais diversas áreas, estando no presente a semente do futuro, isto é, bons ou maus médicos, professores, políticos, esposos, pais etc, e muito do que virá será de responsabilidade dos que conduzem a formação moral e o desenvolvimento psicológico da criança de hoje.
Neste contexto, revela-se a sublime importância do papel da mãe e do pai, principais condutores e formadores de nossas crianças, sem esquecer dos demais contribuintes para este processo, como avós ou quaisquer outros que assumam total ou parcialmente o referido papel.
O ordenamento jurídico brasileiro regulamenta os deveres e obrigações dos pais com relação a seus filhos, dentre eles o dever de cuidar, educar e assistir, chamados genericamente de poder familiar, definido pelo respeitável Pontes de Miranda como “conjunto de direitos que a lei concede ao pai, ou a mãe, sobre a pessoa e bens do filho, até a maioridade, ou emancipação deste, e de deveres em relação ao filho1.”
E não há dúvida de que, dentre os direitos e deveres dos pais em relação aos filhos, no tocante ao crescimento sadio, o principal aspecto consiste no afeto, cujo exercício diário e carinhoso contribui inquestionavelmente para a formação psicológica de um ser melhor, mas cuja ausência ou omissão, por outro lado, pode representar, em síntese, uma vida perdida para as desventuras e infelicidades pessoais, familiares e sociais, com danos, em geral, irreparáveis.
Dessa forma, não é exagero afirmar que o desenvolvimento equilibrado e saudável da criança e do adolescente, resguardado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, em seu artigo 3º, dentre outros dispositivos, precisa ser promovido mediante uma convivência familiar diária baseada no afeto.
O abandono afetivo surge justamente pelo não cumprimento do dever dos pais de educar, cuidar, dar amor, afeto e todos os meios necessários para que a criança, o adolescente e o jovem possam se desenvolver plenamente como ser humano, buscando e estimulando suas habilidades nos mais variados âmbitos da vida.
A suscitada situação de abandono afetivo se agrava ainda mais na hipótese de eventual separação dos genitores, principalmente quando a guarda do filho é concedida apenas a um deles, daí a enorme importância do instituto da guarda compartilhada na formação (social, psicológica, moral) dos filhos.
É ela que irá garantir a preservação da convivência deles com os pais, ainda que em momentos distintos, para que assim possam criar ou manter um vínculo mais estreito de afeto e afastar, por inteiro ou em boa parte, pelo menos, a sensação de abandono, de desprezo, de falta de cuidado e de amor, tão prejudiciais aos seres ainda em formação psicológica.
Neste sentido, é de se ressaltar que o fato do genitor ou genitora pagar a pensão alimentícia não o isenta de auxiliar a criança em sua formação moral e psicológica, na construção de sua personalidade e de seu caráter, pois pais são considerados pelos filhos, na grande maioria das vezes, como o exemplo a ser seguido.
Caso assim não seja, havendo abandono afetivo por parte de algum dos genitores, como costuma ocorrer quando um deles forma outro núcleo familiar, o ordenamento jurídico protege as vítimas dessa lamentável irresponsabilidade dos genitores, concedendo-lhes o direito de serem indenizadas por danos morais, previsão contida no artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal.
O dano moral é aquele que se caracteriza pela ofensa a um bem de natureza imaterial juridicamente tutelado pela lei, e pode ocorrer tanto por ação quanto por omissão que signifique ato ilícito, ou seja conduta que não esteja de acordo com a lei, não importa se praticada com intenção (dolo) ou simplesmente por culpa.
A lei obriga e responsabiliza os pais no que toca aos cuidados com os filhos. A ausência desses cuidados configura abandono afetivo, porque viola a integridade psicofísica dos filhos, bem como o princípio da solidariedade familiar, valores protegidos constitucionalmente. Esse tipo de violação caracteriza dano moral2.
Assim, o abandono afetivo constitui clara violação à dignidade – direito e atributo da personalidade, afetando o desenvolvimento psicológico da criança ou do adolescente, sendo firme o entendimento dos Tribunais em acolher a possibilidade de indenização decorrente do referido abandono.
Por fim, é importante destacar que tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei 700/07, já aprovado no Senado, assim como o projeto de lei (PL 3212/15), que transformam o abandono afetivo de filhos em ilícito civil, suscetível, portanto, de condenação por dano moral, no caso do pai ou mãe que deixar de prestar assistência emocional ao seu filho, dentre outros tipos de assistência, seja pela convivência seja pela visitação periódica.
O afeto pode até ser opção do pai ou da mãe com relação ao filho, mas o cuidado e a assistência são obrigatórios por força de lei, sob pena do infrator ter de pagar indenização por sua inobservância.
Em outras palavras, o amor pode até ser uma faculdade, uma escolha, entretanto, o cuidado é obrigatório.
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1 Pontes de Miranda (2012, p. 183) poder familiar
2 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9 ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 471
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*Gisele Nascimento é advogada, sócia do escritório Alves, Barbosa e Nascimento Advogados Associados. Especialista em Direito Civil e Processo Civil e pós-graduanda em Direito do Consumidor. Membro da Comissão de Defesa da Mulher OAB/MT.
Fonte: www.migalhas.com.br
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