Alteração do Regime Patrimonial de Bens após o casamento. Por Raquel Bueno

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regime-de-bens-quadUm dos aspectos mais polêmicos no estudo das entidades familiares, mais precisamente, no tocante à família tradicional (derivada do casamento) e à família convivencial (decorrente da união estável), diz respeito ao regime patrimonial de bens, lembrando-se que o Código Civil vigente prevê cinco modalidades típicas, conforme esquema abaixo.
A – Comunhão parcial de bens (regime tradicional, legal ou supletório). O mais escolhido pelos casais. Dispensa lavratura de pacto antenupcial. Leva em consideração as aquisições onerosas ou a título eventual durante a vigência da sociedade conjugal (artigo 1.660 do CC/2002) ou da união estável (artigo 1.725 do CC/2002).
B – Participação final nos aquestos – costumo dizer que esse é o diferentão! Uma vez escolhido, exige a lavratura de pacto antenupcial, que pode afastar a outorga conjugal, em relação aos bens particulares de cada integrante da relação. Nesse regime, de rara aplicabilidade prática, vigoram verdadeiro regime de separação convencional de bens, durante a vigência da sociedade conjugal, e o regime da comunhão parcial de bens, quando da dissolução da sociedade/vínculo conjugal (artigos 1.672-1.686 do CC/2002).
C – Comunhão universal de bens. Quase tudo nosso! Até porque, mesmo nesse regime, há bens que não se comunicam (artigo 1.668 do CC/2002). Exige a lavratura de pacto antenupcial e outorga conjugal nas hipóteses do artigo 1.647 do CC/2002.
D – Separação convencional ou absoluta de bens (o que é meu é meu! E o que é seu é seu! Cada um no seu quadrado!). Exige lavratura de pacto antenupcial e é o único regime que, expressamente, dispensa a outorga conjugal, nos termos do artigo 1.647 do CC/2002.
E – Separação obrigatória ou legal de bens. Verdadeira violação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, da autonomia da vontade do casal e também do princípio da intervenção mínima no direito de família ou direito de família mínimo. Dispensa a lavratura de pacto antenupcial. Está previsto no artigo 1641 do CC/2002, ora reproduzido:

Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:

I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;

II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos (Redação dada pela Lei nº 12.344, de 2010);

III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.”

Acerca do inciso II – o casamento do maior de 70 anos–, entendo que tal dispositivo, além de imoral, é INCONSTITUCIONAL. Há, inclusive, proposta de sua revogação (Enunciado 125 da IJDC), até porque a estimativa de vida do brasileiro se eleva a cada ano, de forma que, aos setenta anos, o sujeito está ativo, jovem, consciente de suas decisões, maduro o bastante para a escolha do regime patrimonial do seu casamento, independentemente da idade do seu parceiro. Assim, a preocupação real do legislador e da família do septuagenário é proteger uma futura herança, situação absurda, uma vez que a criatura ainda não morreu e só deseja ser feliz em uma relação afetiva marcada por solenidades questionáveis.
Ainda nesse ponto, destaco dos Enunciados 261 e 262 da III JDC, in verbis:

261 – Art. 1.641: A obrigatoriedade do regime da separação de bens não se aplica a pessoa maior de sessenta anos, quando o casamento for precedido de união estável iniciada antes dessa idade.

262 – Arts. 1.641 e 1.639: A obrigatoriedade da separação de bens, nas hipóteses previstas nos incs. I e III do artigo 1.641 do Código Civil, não impede a alteração do regime, desde que superada a causa que o impôs.

Por fim, não se pode olvidar que o rigor do regime da separação obrigatória de bens é mitigado com a incidência da Súmula 377 do STF, entendimento esse que tem prevalecido no âmbito do Colendo STJ, conforme os precedentes ora reproduzidos.

RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO DE  NULIDADE DE REGISTRO DE CASAMENTO. PARTILHA DE BENS. CÔNJUGE SEXAGENÁRIO. ART. 258, II, DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. REGIME DE BENS. SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA OU LEGAL. SÚMULA N. 377/STF. DESNECESSIDADE DE PROVA DO ESFORÇO COMUM. 1. É obrigatório o regime de separação legal de bens no casamento quando um dos cônjuges, no início da relação, conta com mais de sessenta anos, à luz da redação art. 258, II, do Código Civil de 1916. 2. O regime da separação obrigatória de bens entre os sexagenários deve ser flexibilizado em razão da Súmula n. 377/STF, comunicando-se todos os bens adquiridos, a título oneroso,  na constância da relação, independentemente da demonstração do esforço comum dos cônjuges. 3. Recurso especial provido para determinar a partilha dos aquestos a  partir da data do casamento regido pelo regime da separação legal ou obrigatória de bens, conforme o teor da Súmula n. 377/STF. (REsp 1593663/DF, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/09/2016, DJe 20/09/2016)

AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CASAMENTO. REGIME DE BENS. SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS. ART. 258, II, DO CC/2016 (ART. 1.641, II, CC/02). SÚMULA N. 284/STF. PARTILHA. ESFORÇO COMUM. PROVA. SÚMULAS N. 7 E 83/STJ 1. Incide o óbice previsto na Súmula n. 284 do STF na hipótese em que a deficiência da fundamentação do recurso não permite a exata compreensão da controvérsia. 2. O recurso especial não é sede própria para rever questão referente à existência de prova de esforço exclusivo de um dos cônjuges para a constituição do acervo de bens adquiridos após o casamento na hipótese em que seja necessário reexaminar elementos fáticos. Aplicação da Súmula n. 7/STJ. 3. No regime da separação obrigatória, comunicam-se os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento, sendo presumido o esforço comum (Súmula n. 377/STF). 4. Agravo regimental desprovido. (AgRg no AREsp 650.390/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/10/2015, DJe 03/11/2015)

Cuidado! Em que pese a enumeração dos regimes patrimoniais pelo Código Civil, o casal tem liberdade para mesclar tais regimes ou criar regimes, desde que obedecido o núcleo essencial dessa parte patrimonial (normas de ordem pública, exigência de pacto antenupcial, outorga conjugal, etc.).
No aspecto em questão, o casal tem certa liberdade para a escolha do regime de bens que melhor lhes aprouver, já que as questões patrimoniais encaixam-se na categoria de direitos disponíveis. Assim, resguarda-se a obrigatoriedade do regime de separação legal de bens, nas hipóteses taxativas do artigo 1641 do Código Civil.
A novidade do Código Civil de 2002 foi permitir a alteração judicial do regime de bens do casamento após sua celebração, mediante procedimento JUDICIAL especial de jurisdição voluntária. Para que tal alteração ocorra,  a opção pela modificação deve ser do casal (consensual), mediante pedido minimamente motivado (Princípio da Mutabilidade Motivada), resguardados os direitos de terceiros e a publicidade do procedimento de modificação.
 
Nesse sentido, imperiosa a transcrição do artigo 1639, §2º, do Código Civil, segundo o qual:

CC/02 – Art. 1.639. É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver. (…)

§ 2o É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.

Dentro dessa temática, há também dois Enunciados das Jornadas de Direito Civil a serem destacados. O primeiro enunciado é o de número 131, da IJDC, que se refere a uma proposta de modificação da redação do artigo acima reproduzido, que passaria a ter a seguinte redação:

131 – Proposição sobre o art. 1639, § 2º: Proposta a seguinte redação ao § 2º do mencionado art. 1.639: “É inadmissível a alteração do regime de bens entre os cônjuges, salvo nas hipóteses específicas definidas no artigo 1.641, quando então o pedido, devidamente motivado e assinado por ambos os cônjuges, será objeto de autorização judicial, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros, inclusive dos entes públicos, após perquirição de inexistência de dívida de qualquer natureza, exigida ampla publicidade”.

Outra informação importante diz respeito à possibilidade de os casais que se casaram antes da vigência do Código Civil de 2002 terem autorização para alterar também o regime de bens escolhido sob a égide do Código Civil de 1916, por qualquer dos regimes do Código novo. Nesse sentido, vale lembrar que a eficácia da modificação é ex nunc, a partir do trânsito em julgado da ação de modificação. Corroborando tal entendimento, esclarece o Enunciado 260 da III JDC:

“260 – Arts. 1.639, § 2º, e 2.039: A alteração do regime de bens prevista no § 2º do art. 1.639 do Código Civil também é permitida nos casamentos realizados na vigência da legislação anterior.”

Essa também é a posição do Tribunal da Cidadania, conforme julgado abaixo.

DIREITO DE FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. ALTERAÇÃO DE REGIME DE BENS DO CASAMENTO DE COMUNHÃO PARCIAL PARA SEPARAÇÃO TOTAL. OMISSÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO. INEXISTÊNCIA. PARTILHA DOS BENS ADQUIRIDOS NO REGIME ANTERIOR. POSSIBILIDADE. RECURSO PROVIDO. 1. Consoante dispõe o art. 535 do Código de Processo Civil, destinam-se os embargos de declaração a expungir do julgado eventuais omissão, obscuridade ou contradição, não se caracterizando via própria ao rejulgamento da causa. 2. É possível a alteração de regime de bens de casamento celebrado sob a égide do CC de 1916, em consonância com a interpretação conjugada dos arts. 1.639, § 2º, 2.035 e 2.039 do Código atual, desde que respeitados os efeitos do ato jurídico perfeito do regime originário. 3. No caso, diante de manifestação expressa dos cônjuges, não há óbice legal que os impeça de partilhar os bens adquiridos no regime anterior, de comunhão parcial, na hipótese de mudança para separação total, desde que não acarrete prejuízo para eles próprios e resguardado o direito de terceiros. Reconhecimento da eficácia ex nunc da alteração do regime de bens que não se mostra incompatível com essa solução. 4. Recurso especial provido. (REsp 1533179/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/09/2015, DJe 23/09/2015)

Atento às novidades acima, o novo Código de Processo Civil passou a regulamentar os aspectos procedimentais da matéria, e há artigo normativo inédito sobre o assunto, qual seja, o artigo 734 do CPC/2015, cuja redação segue abaixo.

Art. 734. A alteração do regime de bens do casamento, observados os requisitos legais, poderá ser requerida, motivadamente, em petição assinada por ambos os cônjuges, na qual serão expostas as razões que justificam a alteração, ressalvados os direitos de terceiros.

§1° Ao receber a petição inicial, o juiz determinará a intimação do Ministério Público e a publicação de edital que divulgue a pretendida alteração de bens, somente podendo decidir depois de decorrido o prazo de 30 (trinta) dias da publicação do edital.

§2° Os cônjuges, na petição inicial ou em petição avulsa, podem propor ao juiz meio alternativo de divulgação da alteração do regime de bens, a fim de resguardar direitos de terceiros.

§3° Após o trânsito em julgado da sentença, serão expedidos mandados de averbação aos cartórios de registro civil e de imóveis e, caso qualquer dos cônjuges seja empresário, ao Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins.

Ocorre que se passou a questionar se realmente há a necessidade de um procedimento judicial para a alteração do regime de bens, por opção do casal, principalmente nesta geração de desjudicialização das aspirações sociais. Nesse contexto, procedimentos como a separação, o divórcio e o inventário passaram a ser admitidos no ordenamento jurídico brasileiro na esfera extrajudicial (Lei 11.441/2007). Seguindo tal linha, a possibilidade de alteração extrajudicial do regime de bens do casal, por meio de escritura pública, em cartório de notas, passou a ser defendida pelo Estatuto das Famílias, conforme o artigo 39 que se segue:

Art. 39. É admissível a alteração do regime de bens mediante escritura pública, ressalvados os direitos de terceiros. § 1° A alteração não produz efeito retroativo. § 2° A alteração produz efeito a partir da averbação no assento de casamento.”

Entre as alterações alterações relativas ao tema, o destaque fica por conta da notícia veiculada na segunda quinzena de janeiro de 2017, relacionada ao Projeto de Lei do Senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE), o PLS 69/2016, atualmente na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (Secretaria de Apoio à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania), cuja ementa possui a seguinte redação:

“Insere o artigo 1.639-A na Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), revoga o § 2° do art. 1.639 do Código Civil e o art. 735 da Lei n° 13.146, de 6 de julho de 2015 (Código de Processo Civil) e modifica o título da Seção IV do Capítulo XV do Código de Processo Civil, para dispor sobre a alteração do regime de bens no casamento por meio de escritura pública perante o tabelião de notas.”

Logo, aguardemos a solução desse impasse, ansiosos por mais essa possibilidade de desjudicialização procedimental, relegando ao Judiciário reais situações de conflitos de interesses, nas quais o diálogo, o bom senso e a razoabilidade não foram suficientes para evitar tal técnica de heterocomposição.
 


Raquel Bueno – Formada em Direito pela Universidade Católica de Brasília, Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Cândido Mendes-RJ, Mestranda em Direito na Universidade Católica de Brasília, professora de Direito Civil da graduação da Universidade Católica de Brasília e IESB, da pós graduação em Direito Civil da UniEvangélica de Anápolis-GO e professora de Direito Civil e Processo Civil do Gran Cursos Online. Advogada.
 
 


 

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