Por: Ticiano Figueiredo e Alberto Malta
No caput do art. 11 da Lei 8.429/92, é estabelecido que “constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições”. Em seus incisos, estão previstos alguns exemplos de atos que configuram ofensa aos princípios da Administração1.
Como se percebe, a Lei prevê como ímprobos, no caput do art. 11, atos genericamente estabelecidos, ou seja, não tipificados de forma específica (“violação de deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições”), o que pode ser temerário.
De fato, a fórmula jurídica extremamente aberta posta no caput do art. 11 faz com que os agentes públicos não consigam mais identificar uma cisão entre o que seria uma mera irregularidade e o que seria um ato ímprobo — uma vez que, juridicamente, seria fácil imputar uma série de atos como violadores dos deveres acima referidos.
E o que decorre dessa abertura legal excessiva é sua utilização, pelo Ministério Público, como dispositivo residual. Assim, quando não consegue demonstrar enriquecimento ilícito (art. 9º) ou lesão ao erário (art. 10), imediatamente imputa qualquer ato como violador dos princípios da Administração Pública.
Nesse sentido, não se pode entender o caput do art. 11 a partir de sua mera literalidade, pois isso permite o ajuizamento de ações naturalmente gravosas e a aplicação de sanções por improbidade administrativa a partir de interpretação livre e superficial. Há, portanto, ofensa ao próprio princípio da legalidade e, traçando-se um paralelo com a principiologia das pretensões punitivas, muito comum ao Direito Penal — mas extensível ao Direito Administrativo Sancionador —, verifica-se a violação ao princípio da tipicidade.
Em verdade, essa forma de previsão legal — aliás, a interpretação que se cria a partir dessa espécie de fórmula jurídica aberta — cerceia a esfera de atuação dos agentes públicos, impedindo que atuem de forma livre e criativa, tendo em vista o receio de, a qualquer momento, passarem a sofrer com a pecha da improbidade por meras falhas ou decisões eventualmente equivocadas.
Recentemente, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) absolveu ex-Governador do Distrito Federal em ação de improbidade administrativa2, fundamentada em ofensa a princípios da Administração Pública, pela suposta prática de atos ímprobos no processo de contratação da realização do jogo amistoso entre as seleções brasileira e portuguesa de futebol ocorrido em 19.11.2008, na solenidade de reinauguração do Estádio Valmir Bezerra Campelo (“Bezerrão”).
Em primeira instância, o referido agente público havia sido condenado, inclusive na pena de suspensão de direitos políticos, porque, em síntese, (i) a contratação ocorrida (modalidade de contratação direta, em razão da dispensa de licitação) dependia de prévio processo que a justificasse pormenorizadamente; e (ii) teria havido “abuso de direito” na escolha política, em razão do gasto de nove milhões de reais para a contratação do evento.
Depreende-se que o Ministério Público, partindo da abertura semântica permitida pelo caput do art. 11 da Lei 8.429/92, realizou pretensão exacerbada, alheia aos fatos concretos e à dinâmica política. Felizmente, conseguiu-se demonstrar, no Tribunal, que o ocorrido foi uma atuação voltada ao interesse público, consubstanciado na realização de jogos da Copa do Mundo de 2014 — e até mesmo o jogo de abertura, como depois se pretendeu fazer — no Distrito Federal.
Igualmente, demonstrou-se que a empresa então contratada para realização do evento (a única detentora dos direitos sobre a partida, o que explica a dispensa de licitação) obteve somente 16% de lucro, com todos os gastos comprovados e em quantias adequadas à média praticada no mercado.
Viu-se, ainda, que, diferentemente das alegações do Ministério Público, a celeridade dos condutores da contratação, que se findou em aproximadamente um mês, representou, em verdade, o pleno exercício do “dever de cuidado” dos administradores públicos, concretizado na agilidade na tomada de decisões.
A ação de Improbidade Administrativa mencionada, portanto, resultou tão somente em uma inibição às práticas inovadoras da Administração, na medida em que o ex-Governador, idealizando um evento de grande porte que impulsionasse a imagem da Cidade perante os órgãos internacionais, foi obrigado a conviver com o rótulo de agente ímprobo.
Há que se refletir o tema, portanto, sob a ótica da liberdade criativa dos agentes públicos, que, receosos com o turbilhão de ações de fundamentação superficial, têm seu espaço de atuação tolhido, o que contraria o interesse público.
Tudo isso demonstra a necessidade de melhor leitura do caput do art. 11, a fim de que se evite a continuidade dessa espécie de ação, lamentavelmente já proliferada. Assim, duas interpretações são possíveis:
(i) o caput do art. 11 compõe apenas um direcionamento lógico, não constituindo um tipo infracional, mas somente um comando introdutório de seus incisos — estes, sim, caracterizadores das “lesões a princípios da Administração Pública”; ou
(ii) a aferição de ofensa aos “deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições” depende da demonstração de acentuada violação a regras legais, ou seja, a improbidade seria por violações ao ordenamento que, de tão graves, feririam os princípios próprios da coisa pública — essa ofensa seria o ápice da prática ilícita, e não uma causa de pedir genérica para as sanções previstas na Lei.
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1 I – praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;
II – retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;
III – revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo;
IV – negar publicidade aos atos oficiais;
V – frustrar a licitude de concurso público;
VI – deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo;
VII – revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da respectiva divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço.
VIII – descumprir as normas relativas à celebração, fiscalização e aprovação de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas.
IX – deixar de cumprir a exigência de requisitos de acessibilidade previstos na legislação.
2 Processo n.º 2009.01.1.124156-4; acórdão publicado no DJe em 15.03.2016.
Fonte: www.migalhas.com.br
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