Fonte: Conjur
Na semana que passou, mais precisamente no dia 14 de junho, foi amplamente divulgado nas mídias de todas as espécies e redes sociais o julgamento das arguições de descumprimento de preceito fundamental propostas pelo Partido dos Trabalhadores e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, respectivamente ADPF 395 e 444, cujo debate girou em torno da condução coercitiva para fins de interrogatório, conforme preconiza o artigo 260 do CPP.
Insta salientar que o debate ficou restrito ao interrogatório, seja no âmbito da fase investigativa ou acusatória, em nada se discutindo a condução coercitiva de outras pessoas ou até mesmo do investigado ou réu para atos diversos do interrogatório, como o reconhecimento ou formalização de eventual apreensão de objetos ou bens em situações que poderiam ensejar análise de circunstância flagrancial.
É importante destacar que as regras sobre a condução coercitiva existem no Código de Processo penal desde 1941, porém nunca foi tema dos noticiários até o advento da “lava jato”. Ressalto, no entanto, que a condução coercitiva não existe somente para esse fim e não se aplica somente no âmbito dos crimes federais e da criminalidade econômica, mas também nos crimes comuns, como tráfico de drogas, latrocínios, homicídios, roubos etc., praticados por criminosos comuns e pobres — contudo, contra esses nunca foi proposta nenhuma ADPF para esse fim.
Neste jaez, dos crimes comuns da criminalidade metropolitana, das cidadelas e dos guetos, na maioria dos interrogatórios em sede policial, os investigados não estão acompanhados, e com frequência se incriminam, mesmo advertidos do silencia, mas verifico que por pura ignorância, por não possuírem a expertise necessária para responderem a perguntas capciosas ou por não terem a mínima ideia das consequências de suas repostas. Para isso, foi sancionada a Lei 13.245/16, contudo, está a anos-luz de ser aplicada pela Defensoria Pública ou por advogados dativos nas detenções em flagrantes do dia a dia. Outra lei que surge após o advento da “lava jato”.
A condução coercitiva como uma medida de coação pessoal é prevista em nosso ordenamento dinamicamente para diversas pessoas e em circunstâncias distintas, onde podemos destacar a condução da vítima, conforme artigo 210, parágrafo 1º, CPP; testemunhas, artigo 218, CPP; de perito, artigo 278, CPP. Na legislação extravagante, podemos citar o artigo 80 da Lei 9.099/95 e artigo 187 da Lei 8.069/90.
Como já dito, sabemos que nosso Código de Processo Penal é de 1941 e, portanto, seria ele compatível com nossa Constituição? Em outras palavras, haveria cláusula de reserva da jurisdição para conduções coercitivas?
Antes de mais nada é imperioso lembrar aos estudiosos do processo penal que é importante para a solução às indagações formuladas sobre a natureza jurídica dos atos praticados por estes sujeitos do processo (aplicável, por analogia à investigação criminal).
É imperioso partirmos do pressuposto que o investigado não é instrumento de prova ou objeto da investigação ou do processo, no entanto, as demais pessoas que possuem informações relevantes sobre o fato thema probandum, respeitada a dignidade da pessoa humana, poderão estar sujeitos a medidas jurídicas, inclusive do delegado de Polícia.
A declaração da vítima e o depoimento da testemunha são considerados meios de prova. O esclarecimento do perito em audiência já é controvertido na doutrina, entendendo alguns ser complemento da prova pericial e outros equivaleria a prova testemunhal. Para nós, o perito se assemelha a testemunha denominada de imprópria ou fedatária pois ao se pronunciar sobre o laudo pericial, assemelha-se ao delegado de polícia quando é intimado para se pronunciar sobre a investigação que presidiu, prestando, em verdade um esclarecimento técnico policial, não se tratando de complementação da investigação nem é uma testemunha própria, pois não presenciou fatos diretamente ou indiretamente.
Na verdade as pessoas em si são fontes de prova pois possuem conhecimento de fatos que interessam à investigação e ao processo. O perito é um auxiliar do juízo e do delegado e é um bom exemplo de que fonte de prova não se confunde com o meio de prova, e essa distinção esclarecerá bem a natureza da declaração do investigado ou réu e nos permitirá realizar uma análise mais acurada sobre a condução coercitiva destes sujeitos.
Voltando ao exemplo do perito, trata-se de um auxiliar da Justiça como fonte de prova, restando seu laudo pericial e seus esclarecimentos como instrumentos ou mecanismos analisados pelo juiz para formação de sua convicção a respeito da verdade de um fato.
Desta forma, o laudo pericial como documento que esclarece a análise técnica do expert é meio de prova e o conhecimento que o perito possui é a fonte da prova, portanto o perito é uma fonte de prova. Seus esclarecimentos postos em termo de declarações é também um meio de prova. Neste diapasão, o conteúdo dos termos do perito, vítima e testemunha são instrumentos da prova e não as pessoas. Estas não são instrumentos ou objetos, o que se coaduna com a ideia de que pessoas são sujeitos de direito e não objetos.
Talvez a confusão em se entender este mecanismo é a mesma dificuldade que ocorre ao nos depararmos com os denominados direitos absolutos ou personalíssimos, sobre os quais confundem-se a pessoa com o objeto do direito. No entanto, são conceitos distintos.
Diante da distinção sobre fonte e meio de prova, podemos nos indagar. O investigado acaso possua conhecimento sobre o fato é fonte da prova, e então devemos nos perguntar. Pode recair sobre o investigado ato do Estado para transformar seu conteúdo em meio de prova? Somente se ele quiser em razão do nemo tenetur se detegere, contido no artigo 5º, LIII da CR e artigo 8, 2, “g” do Pacto de San Jose de Costa Rica. Em outras palavras o investigado exerce defesa (SV 14, STF e artigo 7º, XXI da Lei 8.906/94).
Em outras palavras, o investigado ou réu é somente fonte de prova se ele assim decidir de forma voluntária em razão da garantia de não autoincriminação.
Isso significa dizer, por outro lado, que todos os demais atos se não importem em autoincriminação não podem se opor ao Estado-investigador, como é o caso da identificação e qualificação do investigado ou réu, bem como reconhecimento por testemunha ou ofendido.
Os demais sujeitos (vítimas, testemunhas e perito) não gozam desta garantia, mas somente a inerente a dignidade da pessoa humana, não possuindo direito a se oporem ao ato do Estado em busca do conteúdo de seus conhecimentos.
Resta saber, agora se para a prática do ato estatal na busca do conteúdo destas informações nas fontes de prova (testemunha, perito e vítima) há na constituição cláusula de reserva da jurisdição para a realização da condução coercitiva. Neste ponto é que divergem a doutrina, apesar do entendimento pacífico no STJ[1] e STF[2], admitindo a condução coercitiva independente de ordem judicial.
A título de exemplo, Guilherme de Souza Nucci entende que qualquer condução coercitiva é uma modalidade de prisão cautelar, sendo, portanto, uma medida que depende de autorização judicial. Nestor Távora entende “recomendável”. Eugênio Pacelli entende inadmissível a condução coercitiva do investigado ou réu e André Nicolitt entende somente admissível acaso seja para identificação e qualificação.
Devemos ressaltar que a Lei 12.403/11 previu uma modalidade de prisão preventiva exposta no artigo 313, parágrafo único, admitindo prisão preventiva para identificação, semelhante à previsão para identificação e qualificação do investigado na prisão temporária, prevista na Lei 7.906/89.
Nos parece, portanto, que admitir a condução coercitiva do investigado, em nosso ordenamento jurídico, tal medida apresenta-se revestida de uma prisão cautelar, devendo ser submetida ao crivo do judiciário para que avalie a necessidade de identificação criminal, posto que a respeito do mérito do fato criminal, sua declaração não pode ser extraída de forma sub-reptícia nem compelindo a colaborar com Estado. Cabe a este investir mecanismos estruturais para utilizar-se de quaisquer meios de prova não proibida, incluindo-se nesta proibição a utilização do investigado como fonte de prova, salvo quando a ele mesmo interessar sua manifestação ou quando for necessária medida mais invasiva autorizada pela própria Constituição, como interceptação telefônica.
Desta forma, uma pessoa civilmente identificada, com endereço certo, e advogado constituído, jamais poderá ser compelida a comparecer para exercer sua defesa pessoalmente. Trata-se de uma decisão exclusivamente do investigado ou do réu em sua defesa, seja quedando-se silente ou optando em indicar provas, contudo, as demais finalidades da condução coercitivas e demais sujeitos estão sujeitos a coação pessoal, e independente de ordem judicial, atuando, o delegado de Polícia, nesse condão, consoante dispõe o artigo 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos, como “a outra autoridade autorizada pela lei a exercer função judicial”, que para a Corte IDH, significa função materialmente judicial, que não se confunde com função estritamente jurisdicional dos juízes.
[2] STF, HC 107.644-SP, 1ª Turma, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 06.09.2011. Informativo 639 do STF de 5 a 9 de setembro de 2011, entendendo desnecessário se invocar a teoria dos poderes implícitos para se justificar a condução coercitiva. HC/SP 83.703 18/12/2003 REL. MARCO AURÉLIO.
Ruchester Marreiros Barbosa – Direito Penal e LESP – Delegado de Polícia Civil/RJ
Delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, doutorando em Direitos Humanos na UNLZ (Argentina), professor da: EMERJ; Escola Nacional de Polícia Judiciária/DF; graduação e pós-graduação em Direito Penal, Processo Penal e Penal Ambiental da UNESA; Portal F3; Pós-graduação da FACTOPAR/Paraná; SESEG/RJ; FAEPOL; CURSO CEI; PROAB e ENADE da UNESA; coautor de obras jurídicas; colunista do Conjur e Canal Ciências Criminais; Membro da AIDP e LEAP.
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