Como já tive a oportunidade de dizer neste e em outros espaços, a observância do devido processo legal nos julgamentos administrativo-fiscais tem como uma de suas principais funções legitimar o título executivo unilateralmente constituído pelo ente político tributante, por meio da disponibilização ao contribuinte de todos os instrumentos legais com os quais ele possa demonstrar a improcedência da cobrança que lhe é feita, em um julgamento técnico, imparcial e que seja realizado à luz dos princípios que norteiam o Direito Tributário.
Isso porque, diversamente do que ocorre nas relações privadas, em que o título executivo é sempre gerado por meio de procedimento em que há a participação prévia do devedor na sua constituição, na edição do título executivo fiscal, cabe à administração pública emiti-lo unilateralmente e iniciar de imediato o respectivo processo de execução, sem que, para tanto, haja a participação do contribuinte.
Daí a importância das regras que norteiam o exame da procedência dos lançamentos pelo Carf e demais conselhos de contribuintes, como órgãos técnicos e paritários que examinam e julgam administrativamente os créditos tributários que dão ensejo àquele título.
Em tal exame, oferece-se ao Fisco a possibilidade de confirmar a fundamentação do lançamento realizado e, ao contribuinte, a oportunidade de se manifestar sobre a regularidade e existência do débito, o que, como nas relações privadas, legitima a sua execução.
Disso necessariamente decorre que o Estado, ao exercer essa função judicatória, deve observar os limites delineados na própria Constituição Federal que se corporificam nos princípios que norteiam a relação tributária estabelecida entre o Fisco e o contribuinte e o processo administrativo em que se examinam os seus contornos: o princípio da legalidade, do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, da segurança jurídica, da impessoalidade e da moralidade administrativa, entre tantos outros.
Esses princípios são limitações ao poder de tributar impostas pela Constituição Federal numa clara demonstração de que a atividade de cobrança de tributos por parte do Estado, em que pese o interesse público que a fundamenta, deve ser interpretada como exceção ao direito de propriedade também constitucionalmente assegurado a todos os cidadãos brasileiros, pelo que as regras a ela aplicáveis devem ser interpretadas de forma restritiva à atuação do Estado e ampliativa no que diz respeito aos direitos assegurados aos contribuintes.
É à luz dessa premissa que devemos interpretar o princípio in dubio pro reoque emana do artigo 112 do Código Tributário Nacional[1].
Assim como no Direito Penal, cujas regras também devem ser interpretadas de forma restritiva ao jus puniende, temos que, da norma contida no artigo 112 do CTN, emana o princípio de que não há como o poder de tributar ser exercido pelo Estado nos casos em que não reste demonstrado, acima de qualquer dúvida razoável, que o contribuinte tenha demonstrado capacidade contributiva que justifique a tributação das suas atividades.
Como o título sugere, o tema objeto desta coluna diz respeito aos princípios que devem nortear as regras de desempate das decisões proferidas no âmbito dos conselhos administrativos de recursos fiscais.
No âmbito federal, como também na maioria dos estados, o artigo 25, parágrafo 9º, do Decreto 70.235/72 (recepcionado com força de lei pela CF/88) determina que “os cargos de Presidente das Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais, das câmaras, das suas turmas e das turmas especiais serão ocupados por conselheiros representantes da Fazenda Nacional, que, em caso de empate, terão o voto de qualidade, e os cargos de Vice-Presidente, por representantes dos contribuintes” (grifos meus).
Ao regulamentar essa norma, o artigo 54, do anexo II, do Regimento Interno do Carf – Ricarf (Portaria MF 343, de 9/6/2015) estabelece que as “turmas só deliberarão quando presente a maioria de seus membros, e suas deliberações serão tomadas por maioria simples, cabendo ao presidente,além do voto ordinário, o de qualidade”.
Por sua vez, os artigos 11 e 12, do anexo II, do mesmo regimento determinam que a “presidência do Carf”, assim como a presidência das “Seções e das Câmaras” do Carf, “serão sempre exercidas por conselheiro representante da Fazenda Nacional”.
O grau de moderação com que esses votos de qualidade são proferidos favoravelmente à Fazenda foi muito bem apontado pelo nosso querido colega de coluna Roberto Duque Estrada. O placar de votos de qualidade na Câmara Superior de Recursos Fiscais, entre dezembro de 2015 e maio de 2016, foi de 139 favoráveis à Fazenda contra 6 favoráveis ao contribuinte!
Inconformados com essa realidade, os contribuintes recorreram ao Judiciário, e decisões judiciais em primeira instância foram proferidas no sentido de cancelar ou suspender a exigibilidade de autuações mantidas pelo Carf com base no voto de qualidade.
Entre essas recentes decisões, vale destacar a proferida pela 8ª Vara da Justiça Federal de São Paulo (Processo 0013044-60.2015.4.03.6105), por meio do qual foi determinado o cancelamento integral do crédito tributário imposto ao contribuinte, com fundamento no artigo 112 do CTN, em função da decisão administrativa ter sido proferida com base no voto de qualidade:
“(…) estando formado o órgão julgador por seis julgadores, havendo empate de três votos contra três, prevaleceu o entendimento contrário ao interesse do contribuinte por voto de qualidade de seu presidente. A solução dada pela turma julgadora, neste caso, ocorreu com base no que dispõe o art. 25, 9º do Dec. 70.235/72 (…). Contudo, me parece que tal norma deveria ser interpretada conforme aquela já mencionada, prevista no art. 112 do CTN. A dúvida objetiva sobre a interpretação do fato jurídico tributário, por força da Lei de normas gerais, não poderia ser resolvida por voto de qualidade, em desfavor do contribuinte. Ao verificar o empate, a turma deveria proclamar o resultado do julgamento em favor do contribuinte. Segundo a melhor doutrina e por exigência do princípio da legalidade e da justiça tributária, o ônus da prova da ocorrência do fato jurídico tributário em sua inteireza é do fisco, cabendo ao contribuinte, na busca da desconstituição da exigência, provar os fatos extintivos, impeditivos ou modificativos do direito à imposição tributária” (Processo 0013044-60.2015.4.03.6105, 8ª Vara da Justiça Federal de São Paulo, de 8/3/2016 – grifos meus).
Essa decisão está plenamente alinhada com o entendimento adotado pelo STF, no julgamento da Ação Penal 470 (Tribunal Pleno, em 23/10/2012, relator ministro Joaquim Barbosa, caso mensalão), relativamente à “questão de ordem” suscitada pelo ministro Ayres Britto sobre a aplicação do princípio do in dubio pro reo nos casos em que haja empate na votação. E é importante notar que havia (e há) previsão expressa do regimento interno do tribunal no sentido de que, na ausência de solução regimental diversa, cabe ao seu presidente o voto de qualidade nesses casos.
Naquela oportunidade, a composição do STF estava desfalcada em razão da aposentadoria do ministro Cezar Peluso. Contava ele, portanto, com apenas 10 ministros na sua composição, o que acabou por propiciar o empate.
O ministro Ayres Britto, então presidente do tribunal, encaminhou à votação o entendimento de que, em caso de empate, deveria prevalecer a tese da absolvição do réu porque, segundo ele, “ela exprime ou se revela como projeção do princípio constitucional da presunção de não culpabilidade”.
Vale destacar nesse julgamento breve trecho do voto proferido pelo ministro Gilmar Mendes:
“É. Quer dizer, é preciso que haja algum critério. Mas me parece que, como já foi amplamente demonstrado, a meu ver, no caso, estamos diante daquilo que compõe a nossa tradição e alberga também, tem lastro, portanto, constitucional, princípio da presunção da inocência. Eu estava até me lembrando, Presidente, de que o próprio Código de Processo Penal permite a absolvição por insuficiência de prova, por dúvida, portanto, quanto à comprovação dos fatos imputados. Se nós temos uma tão cabal dúvida jurídica, como sustentar um outro resultado? Então, parece-me que, neste caso, é de se encaminhar no sentido já aqui preconizado, inclusive por Vossa Excelência” (grifos meus).
O mesmo entendimento deve ser aplicado ao Direito Tributário, em que a legitimação do título executivo fiscal pressupõe a certeza da exação imposta ao contribuinte. Nos casos em que há empate no julgamento e, consequentemente, a necessidade de ser proferido voto de “qualidade” (sempre por um representante da Fazenda Nacional), essa certeza deixa de prevalecer e, por decorrência, esvazia-se a relação jurídico-tributária cuja existência é pretendida pelo Fisco.
Nessa conclusão, estou muito bem acompanhado pelo nosso querido Fernando Facury Scaff, como se vê a seguir:
“A procedência de qualquer imputação fiscal deve ser reconhecida além de qualquer dúvida razoável, e a existência do voto duplo é uma clara demonstração de que este patamar não foi ultrapassado. E aqui chegamos à proximidade entre o auto de infração e a acusação penal. Não é que se esteja a dizer que ambos geram crime. O que se afirma é que uma relação de direito público, tal como a tributária aqui analisada, tem desequilíbrios no caso de julgamentos administrativos em face do voto duplo acima apontado (…) havendo empate nos processos administrativo-fiscais, considera-se que a Administração Pública não conseguiu comprovar acima de qualquer dúvida razoável a conduta irregular do contribuinte, o que levaria à sua validação. Ou seja, in dubio, pro contribuinte. (…)
A existência do voto duplo afasta a certeza e a liquidez do título executivo extrajudicial constituído (…)” (SCAFF, Fernando Facury.In dubio pro contribuinte e o voto de qualidade nos julgamentos administrativo-tributários. RDDT 220/21, Jan/2014).
No mesmo sentido, mas sob enfoque diverso, os seguintes ensinamentos do ministro Luís Roberto Barroso:
“O que se expos até aqui pode ser resumido nos seguintes termos. Atribuir dois votos a um mesmo indivíduo no âmbito de um órgão judicante colegiado viola a garantia constitucional da imparcialidade, corolário do devido processo legal, porque: (i) confere influência dupla a uma pessoa na decisão, maximizando o risco de parcialidades, em vez de minimizá-lo; e (ii) o segundo voto será necessariamente igual ao primeiro e não resultado de uma nova apreciação, livre e autônoma, dos elementos apresentados pelos interessados nos autos.(…)
A atribuição de peso duplo ao voto de um indivíduo – afora a incompatibilidade com o devido processo legal, sobre o que se discutiu anteriormente – não tem o condão de transformá-lo em dois membros diversos do colegiado (…) Em tais hipóteses a maioria absoluta deixaria de ser compreendida como maioria absoluta?” (In A atribuição de voto duplo a membro de órgão judicante colegiado e o devido processo legal. Revista do Ibrac – Direito da Concorrência, Consumo e Comércio Internacional, vol. 16. São Paulo: RT, janeiro de 2009, p. 45).
E, mesmo que viável a atribuição do voto de desempate ao presidente do órgão julgador (repita-se, sempre um representante da Fazenda Nacional), ter-se-á que o segundo voto por ele proferido (o voto de qualidade) terá necessariamente que ser favorável ao contribuinte, uma vez que se estará, inegavelmente, diante de hipótese em que há dúvidas em relação à própria materialização do nascimento da obrigação tributária, já que metade dos membros que compõe o órgão julgador entende que ela não ocorreu. Do contrário, haverá ofensa ao princípio tributário In dubio pro reo (contribuinte), em que se fundamenta o artigo 112 do CTN.
Ao que eu saiba, não há nem no STF nem no STJ jurisprudência formada sobre a validade dos votos de qualidade em matéria tributária nem sobre a aplicação do princípio in dubio pro contribuinte nas hipóteses em que há o empate que o fundamenta. De fato, as decisões existentes no âmbito do STJ se referem a regras relativas a votos de qualidade proferidos no âmbito de julgamento do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que, por se referirem a ramo distinto do Direito (Direito da Concorrência) e por obedecerem, consequentemente, a princípios diversos, além de guardarem características próprias, também distintas daquelas que regem os julgamentos nos Carf, não podem ser considerados paradigmas para a solução da questão que ora se examina.
Contudo, enquanto a solução jurisprudencial não vem, urge que, desde já, passe a prevalecer o entendimento no sentido de que seja excluída a aplicação de qualquer multa qualificada imposta aos contribuintes nos casos em que haja empate nas decisões finais proferidas na esfera administrativa.
Sob esse enfoque, vale mencionar interessante discussão havida nos autos do Processo Administrativo 16682.721139/2012-41 (caso Petrobras) em que, após julgamento decidido pelo voto de qualidade, o conselheiro Rafael Pandolfo suscitou questão de ordem para, com fundamento no artigo 112 do CTN, excluir a multa agravada que havia sido imposta à empresa. Eis os seus fundamentos:
“…o denominado in dubio pro reo foi expressamente positivado pelo art. 112 do Código Tributário Nacional, norma geral tributária cujos limites devem ser observados por toda a legislação infraconstitucional. Assim, mesmo que se discuta a respeito da extensão das garantias do regime punitivo penal às infrações administrativas e tributárias, o dispositivo há pouco citado coloca o tema em questão fora da zona de conflito, ao prescrever expressamente comandos inafastáveis ao aplicador/julgador tributário (…).
No caso em tela, a dúvida razoável a respeito não só da natureza e das circunstâncias materiais do fato (sua extensão e efeitos) como da natureza da penalidade aplicável está matematicamente retratada pelo quórum de votação. Preenchido, portanto, o suporte fático do art. 112, do CTN” (trecho extraído da declaração de voto proferida pelo conselheiro Rafael Pandolfo, Acordão 2202002.535, 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara, sessão de 20/11/2013).
Embora a questão de ordem acima referida tenha sido rejeitada (em decisão também proferida por voto de qualidade), a linha de argumentação desenvolvida pelo conselheiro nos traz à reflexão. Como pode ser imposta pena agravada se sequer há consenso no âmbito do tribunal administrativo sobre a materialização do fato gerador e do nascimento da respectiva obrigação tributária?
Outra medida que também poderá ser adotada, enquanto não tivermos uma definição jurisprudencial sobre o tema maior examinado nesta coluna, é asugerida pelo nosso querido Roberto Duque Estrada: permitir-se por lei que os contribuintes cujos lançamentos sejam mantidos com fundamento em voto de qualidade possam ingressar com ação anulatória para questionar a legalidade da cobrança, sendo mantida, nesse caso, a suspensão da exigibilidade do crédito tributário até o encerramento do julgamento em âmbito judicial:
“Como não é plausível que a interpretação da lei mais favorável ao Fisco seja sempre a mais correta, uma hipótese a considerar — e aqui fica a sugestão — seria a edição de lei prevendo que a exigibilidade dos créditos tributários lançados contra contribuintes que tenham perdido na esfera administrativa pelo voto de qualidade permaneceria suspensa em caso de propositura de ação anulatória em certo prazo contado da data da intimação da decisão final, eis que inequívoco o fumus boni iuris, confirmado pelo seu placar apertado”.
O que não é possível aceitarmos é a permanência do cenário atual, em que 96% das decisões empatadas na CSRF acabam por ser julgadas favoravelmente ao Fisco, pelo voto de um só conselheiro, sempre fazendário e com duplos poderes.
Fonte: www.conjur.com.br
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