Por Rodrigo Candido de Oliveira
Cuida-se aqui de interpretar e aplicar as exigências da lei 4.215/63 e as do atual Estatuto da OAB (Lei 8.906/94) quanto a incompatibilidades e ao Exame de Ordem, para inscrição no Quadro de Advogados.
Quem, ainda estudante, obteve inscrição na OAB como estagiário, sob a vigência da lei 4.215/63, mesmo exercendo, naquela época, cargo incompatível com a prática da advocacia, pode, após a desincompatibilização, obter inscrição principal, a qualquer tempo, sem submeter-se ao Exame de Ordem, já nos termos da lei 8.906/94?
A questão vem sendo examinada, sob diversos ângulos, pelos Órgãos da OAB.
Um dos argumentos envolve a suposta existência de direito adquirido. Essa corrente entende que, com o deferimento da inscrição de estagiário (sob a lei 4.215/63), o direito à inscrição principal (sem o Exame de Ordem) teria se incorporado ao patrimônio do estudante (mesmo incompatibilizado), que poderia exercê-lo a qualquer tempo após a desincompatibilização, já sob a égide do Novo Estatuto.
O argumento é falho, pois o estudante que tenha obtido inscrição como estagiário, exercendo cargo incompatível, e venha a se formar, permanecendo incompatibilizado, não preenchia, naquele momento, um dos requisitos para a inscrição principal: não exercer cargo incompatível.
Assim, por não preencher todos os requisitos exigidos na época, o interessado não adquiriu qualquer direito, que, por isso mesmo, jamais se incorporou ao seu patrimônio jurídico.
Quando, após a desincompatibilização, vem o interessado buscar a inscrição como advogado, esbarra em outro problema: não há mais incompatibilidade, mas falta o Exame de Ordem. E, como se sabe, a inscrição há de ser analisada de acordo com a lei vigente ao seu tempo. Assim, falta agora um (outro) requisito e o interessado não pode obter a inscrição sem o Exame de Ordem.
Inexiste direito adquirido, como se disse, pois não se adquire direito não exercitável na época pretérita, por falta de um dos seus requisitos.
E o princípio da Segurança Jurídica, como incidiria na hipótese? A teoria dos princípios vem sendo brilhantemente desenvolvida, na nossa doutrina, por Humberto Ávila1. Ao analisar, dentro da Segurança Jurídica2, a ideia da “continuidade normativa” e da “graduabilidade de mudança”, diz o autor:
“Quando há uma norma vigente que bruscamente é modificada por outra, que institui uma nova consequência normativa, bastante diversa e mais restritiva que aquela prevista pela norma anterior, há perda de estabilidade para o ordenamento jurídico, visto que os cidadãos terminam surpreendidos pela modificação, pois, confiando na estabilidade temporal do ordenamento jurídico, têm enganada a sua expectativa de que a norma anterior iria continuar vigendo. Daí decorrer a exigência de continuidade normativa e o dever de evitar mudanças abruptas, desconexas ou inconsistentes, temperando a mudança e atribuindo ao direito um ritmo estável.”
Prossegue o Professor gaúcho:
“… Isso não quer dizer – reitere-se – que o Direito deva tornar-se imutável; quer dizer, em vez disso, que a mudança deverá causar o menor trauma, a menor comoção, às relações jurídicas passadas.”
E conclui:
“Essa obrigatoriedade de moderação na alteração traz grandes implicações práticas. No tocante às leis, é a própria segurança jurídica que exige a instituição de um prazo razoável entre a publicação da inovação e a sua eficácia e o estabelecimento de regras de transição entre o regime jurídico anterior e o novo.”
Assim, o ponto parece residir na existência de uma regra de transição razoável entre a norma primitiva e a nova.
Na doutrina de Luís Roberto Barroso3 sobre o princípio da Segurança Jurídica, encontra-se o seguinte:
“A segurança jurídica é um dos fundamentos do Estado e do Direito, ao lado da Justiça e do bem-estar social. Ela constitui um elemento importante para a paz de espírito e para a paz social, propiciando a previsibilidade das condutas, a estabilidade das relações jurídicas e a garantia do cumprimento das normas (…).
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“Por fim, do ponto de vista subjetivo, a segurança jurídica refere-se à proteção da confiança, (…) Uma das facetas mais importantes da proteção da confiança é atutela das expectativas legítimas.”
Assim conclui o Professor da UERJ:
“Ainda quando não se possa caracterizar cabalmente a existência de um direito adquirido, deve-se assegurar a preservação de situações vigentes há muito tempo ou, no mínimo, uma transição razoável.”
Tudo parece mesmo confluir, assim, para identificar se há (ou não), na hipótese analisada, regra de transição razoável.
Nesse ponto, diz o art. 84 do Novo EOAB:
“Art. 84. O estagiário, inscrito no respectivo quadro, fica dispensado do Exame da Ordem, desde que comprove, em até dois anos após a promulgação desta Lei, o exercício e o resultado do estágio profissional ou a conclusão, com aproveitamento, do estágio de “Prática Forense e Organização Judiciária”, realizado junto à respectiva faculdade, na forma da legislação em vigor.”
Evidente norma de transição (posta, aliás, nas disposições gerais e transitórias), o art. 84 da lei 8.906/94 estabelece o prazo de 2 (dois) anos, após a sua promulgação, para que o interessado comprove preencher os requisitos e requeira inscrição principal, para ter a dispensa do Exame de Ordem.
O intervalo parece razoável, não sendo aleatório e nem despropositado, pois o prazo do próprio estágio também é de 2 (dois) anos. Existe, dessa forma, harmonia legislativa.
Há um precedente unânime da Primeira Câmara do Conselho Federal da OAB, relatado pelo professor René Ariel Dotti, Veja-se a ementa desse julgado:
“Recurso nº 2009.08.07668-5. Ementa PCA/016/2010. EXAME DE ORDEM. CONCLUSÃO DO CURSO EM PERÍODO ANTERIOR À VIGÊNCIA DA LEI 8.906/94. EXERCÍCIO DE CARGO INCOMPATÍVEL COM A ADVOCACIA POR MAIS DE DOIS ANOS DEPOIS DA VIGÊNCIA DO NOVO ESTATUTO. IMPOSSIBILIDADE DE INSCRIÇÃO SEM A PRÉVIA APROVAÇÃO EM EXAME DE ORDEM. DIREITO ADQUIRIDO INEXISTENTE. A inscrição nos quadros da OAB deve levar em consideração a lei do tempo em que se opera. Assim, desaparecendo o impedimento relacionado ao exercício de atividade incompatível com a advocacia sob a vigência da Lei 8.906/94, não há que se falar em direito adquirido. Brasília, 12 de abril de 2010. (DJ, 28.04.2010, p. 20).”
Para finalizar, é importante aqui esclarecer que os interessados que exerciam, à época, atividades incompatíveis com a advocacia, não poderiam obter inscrição, mas poderiam fazer o Exame de Ordem, se fosse da sua conveniência. Veja-se os comentários de Paulo Lôbo4 a respeito:
“O bacharel em direito que exerça cargo ou função incompatível com a advocacia pode prestar Exame de Ordem. A certidão de sua aprovação vigora por prazo indeterminado, podendo ser utilizada no pedido de inscrição, após sua desincompatibilização.”
À vista de tudo isso, conclui-se pela inexistência de direito adquirido, bem como pela inexistência de violação ao princípio da Segurança Jurídica, pois houve período de transição razoável fixado na lei.
Assim, após a desincompatibilização deverá o interessado em se inscrever no Quadro Principal da OAB submeter-se ao Exame de Ordem, se ultrapassado aquele período transicional de 2 (dois) anos.
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1 “Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos”, Malheiros Editores, 13ª Edição, 2012.
2 “Segurança Jurídica – Entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário”, Malheiros Editores, 2ª Edição, 2012, págs. 604/606.
3 www.luisrobertobarroso.com.br, em parecer sobre os royalties do petróleo nas chamadas emendas Ibsen e Simon.
4 “Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB”, Saraiva, 7ª edição, 2013, pág. 104.
Fonte: www.migalhas.com.br
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