Por: Projeto Exame de Ordem | Cursos Online
Seguindo na temática da Teoria Pura do Direito, falaremos agora de um assunto extremamente relevante para quem vai fazer o Exame da Ordem: a solução de conflitos entre normas jurídicas na perspectiva de Kelsen.
Como já dito, a norma fundamental constitui a validade de todas as normas pertencentes a uma mesma ordem jurídica estatal, isto é, de todas as normas válidas dentro de um território soberano, destinadas a um determinado povo, ou seja, “ela constitui a unidade na pluralidade destas normas” (KELSEN, 2000, p. 228). Apesar da unidade do ordenamento jurídico, não se pode negar a possibilidade de os órgãos competentes efetivamente estabelecerem normas que entrem em conflito umas com as outras. Tais conflitos devem ser necessariamente resolvidos pela via da interpretação.
Como Kelsen considera a ordem jurídica como uma construção escalonada de normas superiores e inferiores umas às outras, em que a norma do escalão superior determina os critérios de criação da norma de estalão inferior, o problema do conflito entre as normas se dá em dois diferentes âmbitos:
a) conflito entre normas do mesmo escalão ou hierarquia; e b) conflito entre uma norma de escalão superior e outra norma de escalão inferior (KELSEN, 2000, p. 230).
Para o conflito entre normas do mesmo escalão, Kelsen propõe a observância de algumas regras para sua solução:
a) Lex posterior derogat priori – quando se trata de normas gerais que foram estabelecidas por um mesmo e só órgão, mas em diferentes ocasiões. Neste caso, a validade da norma mais recente se sobreleva à norma mais antiga. Tal princípio também encontra aplicação quando as normas forem estabelecidas por órgãos distintos, no caso de a constituição atribuir aos dois a competência para regular o mesmo objeto por meio de normas gerais.
b) Quando as normas em conflitos são do mesmo escalão, mas postas ao mesmo tempo, Kelsen também prevê a possibilidade de que as normas que estejam em conflito tenham sido postas ao mesmo tempo por um só ato do mesmo órgão. Tal conflito não pode, logicamente, ser resolvido pelo princípio de que a lei posterior derroga a anterior. Havendo as seguintes possibilidades de solução: 1ª ou se entende que é papel do órgão competente, para aplicação da lei, escolher qual das duas normas aplicar, ou 2ª que uma norma limita a validade da outra, quando apenas em parte se contradizem. Quando nem uma nem outra interpretação se torne possível, trata-se de ato sem sentido, inexistindo norma jurídica objetivamente válida.
c) Conflito entre duas normas individuais – pode haver conflito entre duas decisões judiciais, particularmente quando as duas normas forem postas por órgãos diferentes. Segundo Kelsen, pode acontecer de uma lei atribuir competência a dois distintos tribunais para decidir o mesmo caso, sem que a decisão de um anule a decisão do outro. Tal técnica é imperfeita, mas pode acontecer. Assim, pode ocorrer de um réu ser absolvido por um tribunal e condenado pelo outro. Tal conflito pode ser resolvido pelo fato de o órgão responsável pela execução da decisão ter a faculdade de escolher entre observar uma ou outra das decisões. Se é executado o ato coercitivo, a outra norma individual, que absolveu o réu, permanece por muito tempo ineficaz, perdendo sua validade. Da mesma forma, se o ato coercitivo não for executado, permanece muito tempo ineficaz, perdendo sua validade. Agora, se o conflito se apresenta numa mesma decisão judicial, de forma semelhante ao que pode acontecer com uma lei que permite e proíbe ao mesmo tempo uma dada conduta, estaremos diante de um ato sem sentido e, portanto, não se trata de norma jurídica válida (KELSEN, 2000, p. 231-232).
Já entre normas de escalões diferentes, não pode existir conflito: “entre uma norma que determina a criação de uma outra e essa outra, não pode existir qualquer conflito” (KELSEN, 2000, p. 232), pois a norma inferior tem o seu fundamento de validade na norma superior, não podendo a contradizer, sob pena de ser inválida. Dito de outra forma “se uma norma do escalão inferior é considerada como válida, tem de se considerar como estando em harmonia com uma norma do escalão superior.” (KELSEN, 2000, p. 232).
Essas regras hermenêuticas são válidas para o conflito entre regras jurídicas, dentro da perspectiva adotada pelos pós-positivistas, que distinguem duas espécies de normas jurídicas: regras e princípios. No que se refere ao conflito aparente entre princípios, a lógica utilizada é outra: a lógica do razoável ou a regra da ponderação. Mas esse é tema para um outro artigo. Até mais, futuras(os) advogadas(os).
REFERÊNCIAS
GUIBOURG, Ricardo A. Derecho sistema y realidad. Buenos Aires: Astrea, 1986.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
REALE, Miguel. Filosofia do direto. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
Chiara Ramos – Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, em co-tutoria com a Universidade de Roma – La Sapienza. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Procuradora Federal, desde 2009. Atualmente exerce o cargo de Diretora da Escola da Advocacia Geral da União. É Editora-chefe da Revista da AGU, atualmente qualis B2. É instrutora da Escola da AGU, desde 2012Foi professora da Graduação e da Pós-graduação da Faculdade Estácio Atual. Aprovada e nomeada em diversos concursos públicos, antes do término da graduação em direito, dentre os quais: Procurador Federal, Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Técnica Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho 6ª Região, Técnica Judiciária do Ministério Público de Pernambuco, Escrivã da Polícia Civil do Estado de Pernambuco.
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