Na detenção em flagrante, delegado exerce função de magistratura

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Fonte: Conjur
Por Ruchester Marreiros
Associado ao dever de cotejo dos documentos internacionais com a Constituição da República e suas jurisprudências constitucionalizantes (por exemplo, a ADPF 54), nosso constituinte originário adotou um sistema, oriundo de uma ponderação de valores, também, originária, que comporta a previsão de uma reserva absoluta e outra relativa da jurisdição, ou seja, há no ordenamento, como ocorre na investigação criminal, medidas de natureza investigatória que deverão ser decididas exclusivamente pelo Estado-juiz (interceptação telefônica), hipótese de reserva absoluta, e outras medidas decididas pelo Estado-investigador (detenção[1] em flagrante), hipótese de reserva relativa, que passa por um controle posterior do Estado-juiz, autorizando a adoção do que denominamos de sistema de dupla cautelaridade[2].
Este sistema também é apontado pelo jurista Luiz Flávio Gomes[3], que nos citando em artigo de sua lavra sobre audiência de custódia, deixa clara a sua manifestação pela total constitucionalidade de se reconhecer a natureza decisória e cautelar da liberdade provisória concedida pelo delegado de polícia, que possui natureza de contracautela[4].
Passemos à análise da “prisão em flagrante”. Quando o delegado preside a lavratura do “auto de prisão em flagrante” e concede liberdade provisória, estaria concedendo uma cautelar ou uma medida executiva?
Podemos aproveitar o apontamento da doutrina sobre uma teoria própria ao processo penal para alinharmos o equívoco epistemológico que se faz ao entender que atos do delegado não possuem natureza cautelar, para alguns. Aury Lopes Jr.[5] apresenta o ponto de tensão na distinção entre o processo civil e o penal:
“São a ausência da liberdade e a relação de poder instituída (em contraste com a liberdade e a igualdade) os elementos fundantes de uma diferença insuperável entre processo civil e o penal”.
Neste jaez é forçoso concluir, que se estes elementos indicadores se distinguem do processo civil, mas, ao mesmo tempo, é ponto comum à investigação criminal não resta outra inferência senão admitir que na investigação, ao menos possui o que denominamos de zonas de interseção processual, consequentemente, existem atos ou medidas de caráter cautelar, principalmente quando o instituto é da liberdade, notadamente, por força constitucional, artigo 5º, LXVI, ao delinear que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”, o que autoriza juridicamente a admissão de medidas de natureza cautelar pelo delegado de polícia, caindo por terra argumentações de que cautelar somente existe se decididas por juízes.
Associados à Constituição, em face do controle de Convencionalidade[6], com o profícuo propósito de se garantir a efetivação do princípio pro homine[7], imanentes aos tratados e precedentes da Corte IDH, necessário difundirmos o reconhecimento expresso sobre a legitimidade de órgãos não jurisdicionais à plena possibilidade do exercício da função igualmente jurídica dos juízes ou também denominada de “materialmente judicial”[8].
Neste mesmo sentido dispõe o documento da ONU, denominado de “Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer forma de Detenção ou Prisão – 1988”[9], que elenca 39 princípiossobre pessoas, capturadas, detidas e presas, demonstrando preocupação da comunidade internacional em distinguir os termos e suas consequências jurídicas:
Para efeitos do Conjunto de Princípios: a) “captura” designa o ato de deter um indivíduo (qualquer pessoa) por suspeita da prática de infração ou por ato de uma autoridade (agentes policiais); b) “pessoa detida”designa a pessoa privada de sua liberdade (delegado de polícia ou juiz), exceto se o tiver sido em consequência de condenação pela prática de uma infração; c) “pessoa presa” designa a pessoa privada da sua liberdade consequência de condenação pela prática de uma infração (somente juiz); d) “detenção” designa a condição das pessoas detidas nos acima referidos; e) “prisão” designa a condição das pessoas presas nos termos acima referidos; f) a expressão “autoridade judiciária ou outra autoridade” designa autoridade judiciária ou outra autoridade estabelecida nos termos cujo estatuto e mandato ofereçam as mais sólidas garantias de competência (bacharel em direito e concurso público, sem indicação política), imparcialidade e independência (Lei 12.830/13 — regras fundamentais sobre inamovibilidade e função sem pretensão acusatória ou defensiva) (destaques nosso).
Prosseguindo o documento, destacamos os princípios 11, 13, 37 e 39 realizam uma interpretação teleológica sobre o alcance da expressão “ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais” para efeitos das expressões: “captura, detenção e prisão”, in verbis[10]:
Princípio 11
3. A autoridade judiciária ou outra autoridade devem ter poderes para apreciar, se tal se justificar (fundamento do indiciamento e manutenção da detenção), a manutenção da detenção. (destaque nosso)
Princípio 13
As autoridades responsáveis pela captura, detenção ou prisão de uma pessoa, respectivamente, no momento da captura e no inicio da detenção ou da prisão, ou pouco depois, preste-lhe informação ou explicação sobre os seus direitos e sobre o modo de os exercer.
A expressão “no momento da captura e no inicio da detenção ou da prisão” denota relação de imediatidade entre o momento fático do flagrante delito, sua interrupção e captura por qualquer pessoa, nos permite concluir que esteja se referindo a outra autoridade autorizada por lei a exercer função jurisdicional. Ora, nosso ordenamento não adota o juizado de instrução, restando somente a figura do Delegado de Polícia, como a outra autoridade referido nos diplomas internacionais como órgão autorizado a exercer a função materialmente judicial.
Regra semelhante e garantida pelo Delegado de Polícia no procedimento de lavratura do auto se encontra no “artigo 5º, LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”, bem como o inciso seguinte, por se tratar de um direito a ser exercido, eventual representação pelos responsáveis por sua captura, detenção ou prisão, “LXIV – o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial”; não obstante nosso constituinte não ter realizado a distinção entre captura, detido e preso.
Princípio 37
A pessoa detida pela prática de uma infração penal deve ser apresentada sem demora a uma autoridade judiciária ou outra autoridade prevista por lei, prontamente após sua captura. Essa autoridade decidirá sem demora da legalidade e necessidade da detenção.
Este princípio é de uma clareza solar e de lógica cartesiana a se concluir que a captura mencionada no princípio 11.1 diz respeito ao artigo 301 do CPP, na qual a doutrina denomina de flagrante facultativo. Esta nomenclatura diz respeito à captura de qualquer pessoa, seja por um particular ou por agentes da autoridade e “(….) pessoa detida (….) após sua captura” somente nos força a concluir que o conduzido/capturado ao ser entregue ao delegado, mediante recibo da entrega do preso (rectius, capturado), conforme artigo 304, caput, do CPP, que terá a natureza jurídica sobre sua situação fática analisada, a partir de agora, a ser avaliada pelo Delegado, cuja ordem de detenção ou manutenção de detenção advirá da nota de culpa.
Em outras palavras, em cotejo deste princípio com o 11.1, pela expressão “ninguém será mantido em detenção”; no princípio 13, no termo “no momento da captura e no inicio da detenção (prisão provisória) ou da prisão (prisão pena)”; no princípio 21.2, “pessoa detida” e “durante o interrogatório”; por fim, no princípio 37, “apresentada sem demora”, a “outra autoridade”; “prontamente após sua captura”; e “essa autoridade decidirá sem demora da legalidade e necessidade da detenção”, não nos resta outra alternativa a concluir que se trata, no Brasil, do delegado de polícia, já que este possui o poder de relaxar a prisão, conforme se convencer das respostas das testemunhas e do conduzido, conforme artigo 304, parágrafo 1º do CPP, consoante entendimento doutrinário[11], bem como conceder liberdade provisória com ou sem fiança (322 e 325, CPP), conceder liberdade plena equivalente ao livrar-se solto, previsto no artigo 69, parágrafo único da Lei 9.099/95, artigo 48, parágrafo 2º da Lei 11.343/06 e artigo 301 da Lei 9.503/97
Em outras palavras, o ordenamento jurídico ao realizar a seletividade irracional sobre a liberdade, preconizado pelo artigo 322 do CPP, está limitando a liberdade que pode ser apreciada em razão da função materialmente judicial do delegado, o que viola os documentos sobre direitos humanos[12], o que se coaduna perfeitamente com o princípio 39 adiante, não havendo sentido se admitir, ainda, em pleno século XXI e em décadas de vigências dos documentos de direitos humanos, que o Código de Processo Penal, de 1941 ainda restrinja direitos humanos, o que também é vedado pela denominada “Cláusula Geral” do presente documento:
“Nenhuma disposição do presente conjunto de Princípios será interpretada no sentido de restringir ou derrogar algum dos direitos definidos pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos”.
Ora, se o documento não pode restringir outro tratado internacional de direitos humanos, o que diremos no cotejo de um Código de Processo Penal de inspiração no regime fascista italiano de 1930. Neste diapasão:
Princípio 39
Salvo em circunstâncias especiais previstas por lei, a pessoa detida pela prática de infração penal tem direito, a menos que uma autoridade judiciária ou outra autoridade decidam de outro modo no interesse da administração da justiça, a aguardar julgamento em liberdade sujeita às condições impostas por lei. Essa autoridade manterá em apreciação a questão da necessidade de detenção.
Podemos ainda afirmar, que no Brasil o nosso código de processo penal estabelece a emissão de nota de culpa e a lei 12.830/13 determina os fundamentos do indiciamento pelo Delegado, que no caso de prisão em flagrante (detenção para o tratado), o que podemos facilmente concluir se tratar a expedição da nota de culpa como verdadeira ordem de detenção, que determina o indiciamento, consequentemente deve ser fundamentada, sob pena de nulidade.
Em outras palavras, se o Delegado deve fundamentar o indiciamento, que pode ser com o investigado solto, com muito mais razão o deve fundamentar aquele que ficará detido por sua ordem, até a comunicação da detenção ao Juiz, conforme o artigo 7.6 do Pacto de San Jose da Costa Rica e princípio 37, pela expressão “decidirá” e “necessidade da detenção”, bem como o conteúdo do princípio 10:
“A pessoa capturada deve ser informada, no momento da captura, dos motivos desta e prontamente notificada das acusações contra si formuladas. (aviso de Miranda)
2. A pessoa detida e o seu advogado, se o houver, devem receber notificação, pronta e completa da ordem de detenção (nota de culpa), bem como dos seus fundamentos”.
Como se pode observar, o sistema de proteção internacional de direitos humanos possui uma hermenêutica própria, na qual o País signatário não pode dispor, ou seja, não lhe pode atribuir sequer uma nomenclatura disforme, como ocorre no Brasil. Esta ausência sistêmica, no Brasil, de proteção da pessoa capturada, detida e presa contribui para uma interpretação destoante dos escopos trazidos nas decisões da Corte IDH.
O delegado de polícia é o primeiro jurista, portanto, a atribuir juridicamente os efeitos pretendidos pela norma ao ter acesso ao fato criminoso, ou seja, é o primeiro juiz do caso concreto ou outra autoridade autorizada por lei a exercer função judicial, tendo a atribuição de analisar juridicamente os fatos ocorridos, aplicando a lei ao caso concreto, ainda que em juízo de cognição sumária, o que leva a doutrina identificar uma “função essencial à justiça, como garantia implícita na Constituição“[13], não restando dúvidas, portanto da necessária natureza cautelar da nota de culpa como ordem de detenção, restando o auto de prisão em flagrante, o procedimento formal de documentação da captura/condução do criminoso por qualquer pessoa, sob a presidência do deste, que ao final, decidirá pela detenção ou liberdade, seja plena ou provisória, consequentemente, por uma medida cautelar.
Ruchester Marreiros Barbosa –  Direito Penal e LESP – Delegado de Polícia Civil/RJ
Delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, doutorando em Direitos Humanos na UNLZ (Argentina), professor da: EMERJ; Escola Nacional de Polícia Judiciária/DF; graduação e pós-graduação em Direito Penal, Processo Penal e Penal Ambiental da UNESA; Portal F3; Pós-graduação da FACTOPAR/Paraná; SESEG/RJ; FAEPOL; CURSO CEI; PROAB e ENADE da UNESA; coautor de obras jurídicas; colunista do Conjur e Canal Ciências Criminais; Membro da AIDP e LEAP.

[1] Abordaremos o termo detenção à luz dos tratados internacionais de direitos humanos e não conforme a doutrina brasileira e nossa constituição o fazem, que por sua vez, não distinguem captura, detenção e prisão, o que viola o conjunto de princípios da ONU para pessoas nessas circunstâncias.
[2] BARBOSA, Ruchester Marreiros. Audiência de Custódia (Garantia) e o Sistema da Dupla Cautelaridade Como Direito Humano Fundamental. In Estudos sobre o papel da Polícia Civil em um Estado Democrático de Direito. (Coord.) SOUZA, David Tarciso Queiroz de e GUSSO, Rodrigo Bueno. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
[3] GOMES, Luiz Flávio. Disponível neste link: http://luizflaviogomes.com/nucci-como-juiz-rasgou-a-convencao-americana/#_ftnref1. Acesso em 29/11/2016.
[4] TÁVORA, Nestor e ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 10ª Ed. Bahia: JusPodivm, 2015, p. 920.
[5] LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol.1 8ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 30
[6] ______________ MAZZUOLI, valeiro de Oliveira. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro. Revista Informação Legislativa. Brasília a. 46 n. 181 jan./mar. 2009 , p.113 a 137
[7] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Controle Jurisdicional Da Convencionalidade Das Leis. São Paulo, 3ªed. revista, atualizada e ampliada, Revista dos Tribunais, 2013, p.146.
[8] Corte IDH. Caso Vélez Loor Vs. Panamá. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 23 de noviembre de 2010 Serie C No. 218, párr. 142 , disponível: , acesso em 08 de agosto de 2014.
[9] Grupo de Trabajo sobre Detención Arbitraria, Conclusiones y Recomendaciones de 15 de diciembre de 2003, UN DOC E/CN.4/2004/3, párr. 86.
[10] Site do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Disponível: , acesso em 08 de agosto de 2014.
[11] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 7ª edição. São Paulo: RT, 2011, p. 600-601. LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2013p. 887-888 (este último autor chegar a criticar a locução “relaxamento da prisão em flagrante”, afirmando que essa possibilidade está permitida ao juiz,  por força da CF. Na verdade, o mesmo poder é reservado ao delegado, por força da Convenção Americana de Direitos Humanos, artigo 7, 5).
[12] BARBOSA, Ruchester Marreiros. Delegado pode ser primeiro filtro antes de audiências de custódia. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-jan-12/academia-policia-delegado-primeiro-filtro-antes-audiencias-custodia. Acesso: 5/12/2016. Aqui tratamos da inconvencionalidade do artigo 322 do CPP.
[13] NICOLITT, Manual de Processo Penal, 5ªed., São Paulo: RT, 2015, p. 172


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