Júlio César Ballerini Silva
O tema pode até parecer banal, mas as implicações que dele se extraem podem ser graves, aliás, o universo daquele que visa prestar concurso público, deve-se estar preparado para tudo, já que, hoje, tudo se normatiza, autores como Edgar Morin tem discutido o desafio da complexidade enquanto novo paradigma a ser observado (tudo se relaciona em termos globais o que leva à interpenetração de campos e interdisciplinariedade, fazendo surgir a necessidade de que tudo seja disciplinado pelas normas jurídicas – a complexidade seria um conceito marginal que veio, pouco a pouco, ganhando espaço em discussões científicas).
Pela tradição do direito civil herdada do CC/1.916, animais são bens semoventes, parte do patrimônio de seu titular, o que, numa visão fria, longe da concretude, foi mantido pelo CC atual (entendendo-se por patrimônio a noção de Pontes de Miranda de acordo com a qual esse seria um conjunto de posições jurídicas ativas e passivas, atinentes a um dado titular, sendo passíveis de avaliação econômica e consequente expressão monetária).
Mas neste ambiente de complexidade, não se pode deixar correr à latere a discussão a respeito da existência de aspectos não patrimoniais envolvendo o tema proposto, eis que a par dessa patrimonialidade se agrega à questão, o aspecto da afetividade que se agrega, aos animais em geral, mormente aqueles ditos de estimação (há um número cada vez maior de pessoas que opta por adotar um animal ao invés de ter filhos, animais de estimação são objeto de afeição de crianças, adultos e idosos, muitas vezes sendo utilizados para o tratamento de doenças com o mal de Alzheimer, na diversidade devemos respeitar até mesmo convicções filosóficas daqueles que, por razões religiosas, por exemplo, comunidade Kardecista ou filosóficas como os veganos e vegetarianos devem ser tidas em conta em questões deste jaez – afinal, desde tempos imemoriáveis, antes mesmo do surgimento da escrita, animais integram o ideário da família do homo sapiens).
Nesse contexto surgem inúmeras iniciativas legislativas (há PL no Senado, de 3.670/15, da autoria do Senador Antônio Anastasia – PSDB/MG) que pretendem adequar nosso ordenamento ao tratamento normativo mais atual (direito europeu) e tendem a fazer com que os animais constituam uma categoria nova, diversa de coisa (bem exclusivamente patrimonial).
Pode parecer uma norma aparentemente inócua, mas não é. Ao asseverar que animais não são coisas, mas bens móveis, abre-se oportunidade para a exegese no sentido de que seriam bens diferenciados, ou seja, não mais objetos ou coisas que possam ser submetidas a quaisquer condições a que seu dono possa pretender submetê-los.
Ou seja, está sendo reconhecido que animais seriam diferentes dos demais bens – afinal, não podem ser tratados com crueldade, em antítese à visão patrimonialista do direito civil do Estado Liberal que conferia ao jus utendi decorrente da propriedade dos demais bens inanimados, um caráter absoluto.
E, afinal de contas, desde há muito, tem-se entendido que o direito civil deve ser repersonalizado (decorrência da constitucionalização do direito civil) toda propriedade deve atender a um fim social (princípio da socialidade, como antevisto por Miguel Reale).
Antevê-se, aí, a gênese de uma função social da propriedade do animal de estimação (revela-se que há interesses sociais relevantes que devem ser tomados em consideração ao se avaliar o tratamento que possa ser conferido a um animal).
Em nome do princípio da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social, valores de nossa ordem constitucional, de se proteger a afetividade que as pessoas agregam aos animais (valores humanos) diretrizes contra os maus tratos.
Até então nos resumíamos, nos estudos universitários, ao exame da lei das Contravenções Penais, no que tange à vedação de crueldade contra animais.
Mas o fato é que a questão é cada vez mais complexa. Há resoluções do Conselho Federal de Medicina Veterinária que tem trazido normatização aos cuidados mínimos que se deva ter em relação a qualquer animal (a par de ser uma questão de saúde pública, observa-se a preocupação com condições dignas de tratamento a ser reservado aos mesmos).
Em vários Municípios e Estados da Federação tem se constatado iniciativas legislativas que cuidam da questão do tratamento mínimo a ser conferido a animais, inclusive os de estimação (há detalhes como espaço mínimo para criação e manutenção de animais, vedação de situações como falta de comida ou água e vedação de mantença de animais em presença de elementos ambientais que possam prejudica-los – falta de aeração, luminosidade, alimentação, água etc.).
Se fosse analisada questão pelo viés da propriedade (há deveres de propriedade envolvidos) haveria provável discussão da constitucionalidade destes diplomas, eis que somente a União Federal poderia legislar sobre regras de direito civil (e propriedade é uma questão ínsita ao direito civil).
No entanto, insista-se, há que se asseverar no sentido de que os dispositivos em testilha poderiam ser vistos sob a perspectiva das posturas municipais (direito de construir, por exemplo na questão das metragens mínimas) – enfim, haverá possibilidade de questionamentos futuros, inclusive no âmbito do Pretório Excelso (se advertiu no início do artigo que o tema pareceria banal, mas teria outras implicações).
Quanto aos animais silvestres, diga-se apenas en passant eis que este não é o objetivo do presente artigo, não se esqueça de inúmeras restrições penais no que tange à caça ou cativeiro dos mesmos, sem prejuízo de aplicação de multas administrativas (pelo IBAMA).
Voltando ao Projeto do Senado, realmente, a alteração pretendida não transforma animais em sujeitos de direito (a ideia não é tão transloucada assim, eis que, no Digesto de Justiniano – e nosso direito tem raízes no sistema do direito romano-canônico ou Civil Law – há narrativas como a do incidente da Carroça de Alfenus, em que, em equiparação de animal a pessoa, o cavalo foi condenado pelo acidente de uma biga com uma carroça), mas tem-se a reafirmação da ideia corrente na sociedade (ao menos de um modo majoritário) no sentido de que animais, inclusive os de estimação, não possam ser tratados de modo abusivo.
Vale lembrar, em decisão recente do TJ/GO – Ap. 104598-27.2012.8.09.0044, uma mulher foi condenada a pagar danos morais coletivos por ter espancado um cão até à morte, sem prejuízo de sua condenação pela contravenção penal (como cediço, em regra geral – artigo 955 CC – a responsabilidade civil é independente da responsabilidade penal).
O Projeto, nessa análise, no entanto, ao não equiparar animais a sujeitos de direito, não impede, por exemplo, que possam ser abatidos para consumo, no caso do gado, questão que não se aplica como regra aos animais de estimação (mas há questões culturais como o hábito chinês de se comer cachorros).
Tais questões já deveriam ser abordadas no Projeto, que poderia aproveitar a oportunidade para uma discussão mais ampla com a sociedade, eis que já se poderia atualizar o tratamento dado à questão, com posturas mínimas federais para os deveres decorrentes da propriedade de animais, atualizando-se a questão sob uma perspectiva penal (acredito que não seja o caso de criminalização de condutas, eis que talvez seja mais efetivo fixar indenizações por danos morais coletivos ou mesmo multas administrativas que poderiam ser revertidas para abrigos de animais de rua – postura mais proporcional do que tentativas de se lançar pessoas no banco dos réus, com estigmas criminais ou mesmo correndo risco de encarceramento num sistema que não obedece, para humanos, o mínimo que se pretende garantir a animais).
Talvez a imposição de sanções patrimoniais seja medida mais efetiva para coibir maus tratos. Riscos deste jaez costumam trazer mais receio para a população em geral.
Já se poderia avançar no sentido de prever a necessidade de desenvolvimento de campanhas e políticas públicas, quiçá com o dinheiro de multas aplicadas, para educar a sociedade a respeito da questão da condição dos animais.
A par desse projeto do Senado, não se poderia deixar de fazer alusão a outro projeto, que desta feita tramita na Câmara Federal que cuida de questão afim, envolvendo o objeto de discussão de inúmeras ações que já passam a tramitar nos Tribunais pátrios, envolvendo a necessidade de revisão deste conceito de animal-objeto (neste aspecto a afetividade do dono é tudo), ao menos em nível de animais de estimação.
Isso porque, não raro, tem-se disputado a guarda de animais de estimação em ações de direito de família. Tais questões se tornam tão frequentes que atingiram a seriedade necessária para envolver a propositura de proposta legislativa.
Para conferir maior segurança na solução deste tipo peculiar de conflito, destaca-se mais essa novidade, que está no projeto Legislativo 1365/15 da Câmara dos Deputados.
Tal Projeto se destina a disciplinar essa questão da guarda dos animais em caso de disputa em ações de família, ou seja, além de não serem mais coisas (e sim bens peculiares como parece advir do Projeto do Senado), ao menos os animais de estimação estariam sujeitos à guarda (até então prerrogativa de filhos menores – erra o legislador ao atribuir o nome de guarda ao instituto dos animais de estimação – dever-se-ia buscar a utilização de termos técnicos específicos para tanto – evitando-se confusões e analogias indevidas – talvez custódia como o faziam os romanos ao disciplinar o trato com animais sob a perspectiva de um jus custodiendo).
Insista-se, no entanto, isso se dá, não porque estejamos concedendo algum privilégio ao animal de estimação, mas, ao revés, estamos protegendo a afetividade que se agrega à personalidade de seu dono – e o texto constitucional, como sabemos, tutela a afetividade como valor do Estado Democrático de Direito – essa, aliás, a base do reconhecimento das uniões estáveis, anaparentais, homoafetivas, parentesco socioafetivo, etc. Então, por que não estabelecer o mesmo critério em relação aos animais de estimação?
Ótima a proposta legislativa que passa a dar contornos claros a esse tipo de questão, cada vez mais frequente em demandas judiciais, não obstante o termo guarda revele falha de técnica legislativa, a questão tem mesmo que ser disciplinada por lei, facilitando a vida dos donos em caso de dissolução de uma entidade familiar, mormente quando há filhos pequenos que agregam afeto ao seu pet, por exemplo.
Insisto, no entanto, num ponto que parece estar passando despercebido: Juiz deve estar atento ao fato de que deve existir evidência de afetividade do dono em relação ao animal. E isso porque não se pode admitir que a “guarda” do animal seja disputada por conta de abusos no direito de demandar.
E atos abusivos (emulativos) são atos ilícitos (artigo 187 CC). É a teoria dos atos próprios. Não raro a pessoa, numa situação de ruptura de relacionamento, movida por sentimentos como mágoa, tenda buscar a guarda do animal apenas no intuito de atormentar a outra parte. Isso, inclusive, pode levar a situações aflitivas e angustiantes que possam gerar danos morais.
Seria interessante se o legislador já cuidasse, também, desse tipo de questão. Fica mais essa dica para discussão.
Seria conveniente apontar outros aspectos, eis que existem animais de estimação de alto valor patrimonial (como se observa em consulta a sites de gatis e canis do país há animais que custam o equivalente a um carro popular zero km), o que resta como aspecto patrimonial para efeito de partilha (o que talvez não aflija os proprietários dos conhecidos animais SRD – sem raça definida – vulgarmente “vira-latas”, o que não afasta o valor agregado pelo afeto), mas há mais:
Se ambos tem afetividade pelo animal e se o Projeto estabelece direito de visitas, pela perspectiva da simples incidência do vetusto brocardo ubi commoda ibi incommoda – que em tradução literal e livre implica na ideia de acordo com a qual quem aufere as vantagens deve se encarregar dos ônus de determinada situação – não se podem esquecer as despesas de manutenção de um animal de estimação (veterinário, vacinas, ração, banho e tosa etc.).
Não se trata, obviamente da busca de alimentos para o pet, eis que alimentos, em termos técnicos são reconhecidamente um conceito humano e os animais de estimação continuam a ser bens patrimoniais, não obstante não mais passíveis de abusos (seriam despesas perenes, cujos proprietários devem estar convenientemente alertados e que devem orientar uma decisão responsável como a de ter um animal de estimação em casa).
E muitas outras questões podem ser antevistas ai e já poderiam ser resolvidas – não raro se discutem exigências de preenchimentos de dados cadastrais (alguns falam em RGA – registro geral de animal) para efeitos de vigilância e controle (o que não pode, obviamente, ser convertido, de modo oportunista numa fábrica de taxas para abastecer os cofres públicos – de modo a elitizar inconstitucionalmente a posse de animais de estimação).
Como essas questões ainda não estão convenientemente tratadas nos textos legislativos em testilha, lanço essas breves linhas como forma de contribuir para um debate mais amplo e pela criação de um diploma mais completo que possa conferir maior segurança jurídica aos proprietários de animais de estimação.
Como sempre parece que se está optando pela técnica de legislar aos poucos, o que somente traz insegurança aos operadores do direito.
Fonte: http://www.migalhas.com.br
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