Por: Projeto Exame de Ordem | Cursos Online
Por Marcos Vinicius Manso Lopes Gomes
A dinâmica do presente artigo almeja seguir a linha de raciocínio de nosso primeiro texto, demonstrando a importância da vocação defensorial no novo Código de Processo Civil, crismando a importância da Defensoria Pública para a concretização de um processo civil democrático.
Conforme já exposto, com fulcro no artigo 134, da Constituição Federal, e nos artigos 3º-A e 4º, da Lei Complementar 80/1994, sem olvidar da importância de outros dispositivos, “a vocação da Defensoria Pública está relacionada à defesa dos hipossuficientes, de forma preventiva ou demandista, judicial ou extrajudicial, promovendo e defendendo os direitos humanos, bem como garantindo seus direitos, principalmente os fundamentais, de forma individual ou coletiva, primando pela dignidade da pessoa humana, pela redução das desigualdades sociais e pela afirmação do Estado de opção democrática, sempre almejando preservar e concretizar o contraditório e a ampla defesa”[1].
Nesse diapasão, o novo Código, em sintonia fina com a instituição, estabelece algumas premissas e vocações fundamentais, como a necessidade de promover e resguardar a dignidade da pessoa humana (artigo 8º), o dever de se preservar o contraditório e a ampla defesa de forma permanente (artigos 7º, 9º e 10º), bem como a imprescindibilidade de se garantir o acesso à justiça por meio de métodos adequados, tal como a mediação e a conciliação (artigo 3º, §3º).
A Defensoria Pública passa a estar no âmago do novo Código de Processo Civil, principalmente diante de um título específico destinado à Instituição (artigo 185, 186 e 187, NCPC), compondo o cerne do processo civil como função essencial à justiça, com o timbre da experiência bem-sucedida ao longo dos anos. Entrementes, não podemos olvidar da importância dos 40 dispositivos que preveem a figura da Defensoria Pública ao longo do Novo Código.
Sem dúvidas, muito ainda está por vir. A Defensoria Pública faz e fará parte dessa mudança cultural, deixando de lado um processo oneroso/burocratizado/individualista/elitista, buscando uma ética procedimental coerente e segura, com um viés social e coletivo, pautada na constituição e nos direitos fundamentais, superando-se a crise de efetividade do processo e os conflitos axiológicos existentes, tornando-o democrático, concreto, dinâmico e, principalmente, respondendo aos anseios dos jurisdicionados.
Os primeiros passos foram concretizados. Porém, com o novo regramento, passa-se ao momento de refletirmos as mudanças alcançadas. Nesse sentido, nossa doutrina não está anestesiada diante das inúmeras modificações processuais. Cada vez mais, os estudiosos debruçam-se sob essa nova realidade, buscando interpretações coerentes e seguras às recentes normativas apresentadas.
No ponto, trazemos à reflexão importante questão envolvendo a normativa prevista no artigo 554, §1º, NCPC, dispositivo esse que vem sendo alvo de inúmeras interpretações doutrinárias. Vejamos o texto legal:
§ 1º: No caso de ação possessória em que figure no polo passivo grande número de pessoas, serão feitas a citação pessoal dos ocupantes que forem encontrados no local e a citação por edital dos demais, determinando-se, ainda, a intimação do Ministério Público e, se envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica, da Defensoria Pública. (grifos nosso)
Falar-se-ia, primeiramente, que toda exegese do referido dispositivo deverá ser realizada com base nas diretrizes, premissas e vocações acima apresentadas, de forma a alcançarmos um enquadramento constitucionalizado e seguro à atuação institucional. Há muito, o Direito, por meio de uma interpretação pós-positivista, vem se preocupando mais com a função do que com a forma. Transpassando essa noção ao Direito Processual Civil, temos o que chamamos de neoprocessualismo, onde a leitura do processo deve ser pautada na Constituição Federal.
Assim, uma conclusão inafastável que já podemos chegar é que o artigo 544, §1º, CPC, busca concretizar a dignidade da pessoa humana, democratizando o processo, ao permitir a intervenção defensorial. Ademais, seguindo as diretrizes acima apresentadas, o dispositivo almeja garantir e efetivar o princípio do contraditório e da ampla defesa de forma ininterrupta. Eis a vocação defensorial do processo sendo concretizada ao longo de seu texto!
Importante destacar que a possibilidade de defesa dos vulneráveis, utilizando-se de meios judiciais e extrajudiciais, está prevista no art. 4º, XI, da LC nº 80/94. Vejamos:
Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: (…) XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado. (grifos nosso)
Logo, mais uma vez, demonstra-se que a discussão também possui amparo na normativa institucional. Aliás, consoante já exposto em outra obra, a Defensoria Pública Paulista, há tempo, defendia, em tese construída juntamente com o Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos, a obrigatoriedade da prévia e inicial intimação da Instituição nas ações judiciais envolvendo hipossuficientes organizacionais, sob pena de nulidade dos atos processuais, em uma espécie de intervenção institucional[2].
Ultrapassadas as diretrizes fundamentais inerentes ao dispositivo processual, adentrando no texto legal, nota-se que a Defensoria Pública deverá ser intimada para ciência dos termos e atos do processo. Em litígios coletivos, muitas vezes, a demora em intimar a Instituição poderá causar danos irreversíveis aos hipossuficientes organizacionais, principalmente nas demandas possessórias, tal como ocorreu no nefasto mandado reintegratório na desocupação do bairro Pinheirinho, localizado em São José dos Campos, estado de São Paulo.
No curso do processo, após ser intimada, a Defensoria irá adotar todas as medidas cabíveis, judiciais e extrajudiciais, com o escopo de defender o grupo vulnerável. Nota-se que a atuação institucional não se dará somente no processo — viés demandista — podendo ocorrer por meio de ações preventivas e conciliatórias, nos termos da vocação institucional já apresentada. Portanto, a atuação não irá se limitar à eventual manifestação/defesa no processo.
Eis a atuação do defensor público como agente político de transformação social, com atuação jurídica sui generis, diferenciada de qualquer outra instituição, onde sua atividade transborda aquela função individualista, passando a ter um viés social e coletivo, concretizando sua vocação na defesa e promoção dos direitos humanos. Nesses casos, o Defensor poderá comparecer para acompanhar, in locu, o caso concreto, buscando informações, prestando orientação jurídica, realizando a educação em direitos, colocando à disposição seu quadro de apoio, incluindo psicólogos e agentes sociais.
Conforme ressaltado, no presente momento, devemos nos preocupar menos com a forma e mais com a função. Ou seja, a instituição terá a função de garantir, de forma judicial, o contraditório e a ampla defesa, democratizando o processo. Além disso, terá a função de zelar pela dignidade dos hipossuficientes organizacionais, preservando seus direitos fundamentais, podendo atuar tanto no processo para o qual foi intimado, como também fora dele. Deverá promover a conciliação, no processo ou fora dele, sempre com a ampla participação da sociedade – que poderá eleger representantes para otimizar o diálogo com a instituição. Por fim, poderá ajuizar eventual ação coletiva, com o escopo de garantir diversos direitos fundamentais.
Vejamos interessante exemplo envolvendo a atuação da Defensoria Pública no caso Pinheirinho acima citado:
“Naquela ocasião, a Defensoria Pública do Estado, após tentativas emergenciais para evitar a reintegração e, em seguida, para amenizar os efeitos daquela ordem, ajuizou ação civil pública em face do município para cobrar o devido e adequado acolhimento. Em liminar, pleiteou-se que o poder público mantivesse as famílias em abrigos com condições de higiene, refeições diárias, transporte escolar, medicamentos e equipe médica, além da concessão imediata de auxílio-moradia para todos os desabrigados e inclusão em programas de habitação social”[3].
Como se nota, a atuação institucional deverá ser holística, judicial e extrajudicial, procurando garantir todos os direitos fundamentais aos envolvidos, tal como moradia, saúde, educação, transporte, dentre outros.
Compreendida a função institucional, principal ponto a ser analisado, passa-se às questões formais, principalmente no que tange ao tipo de intervenção da Defensoria Pública.
Em primeiro lugar, vale destacar que o referido dispositivo, apesar de reacender a divergência acerca da existência ou não de ação coletiva passiva, se difere do referido instituto. A Defensoria Pública, em nenhum momento, irá substituir os réus da referida ação, ou seja, não irá substituir os legitimados ordinários[4]. Ademais, caso assim considerássemos, estaríamos remando na contramão de tudo que foi até aqui exposto, atuando contra a vocação defensorial do processo, uma vez que, nas lições de José Aurélio de Araújo, “a ação coletiva passiva é absolutamente antagônica ao contraditório participativo e à ampla defesa, não sendo admissível em geral e, menos ainda, no litígio coletivo de posse”[5].
No mesmo sentido, concordamos com José Roberto Sotero de Mello Porto e Rodrigo Sardinha de Freitas Campos, no sentido de não se dispensar o contraditório e a ampla defesa exercida pelos curadores especiais aos réus citados por edital, uma vez que “em tempos de contraditório participativo, fundamento democrático do processo, soa mais prudente manter a atuação da curadoria em favor dos possuidores citados por edital”[6].
Vale ressaltar, também, que não se trata de atribuir à Defensoria Pública a função de fiscal da lei, atuação essa exercida pelo Ministério Público, sendo certo que a atuação defensorial vai muito além de tal mister, diante do que foi apresentado até o momento.
A análise do presente dispositivo deverá ser realizada sob um novo viés, pautado nessa nova cultura defensorial e neoprocessual, com fulcro na Constituição, nos direitos fundamentais, no contraditório e ampla defesa, bem como na noção de acesso ao direito, envolvendo métodos adequados de acesso à justiça, seja judicial, seja extrajudicial.
Trata-se, portanto, de intervenção institucional, que poderá ser denominada como defesa coletiva autônoma, intervenção “custus plebis” ou “custus vulnerabilis”, ou defesa do polo passivo desorganizado. No presente momento, o mais importante é verificarmos que não se trata de defesa em ação coletiva passiva, devendo-se levar em consideração a amplitude de possibilidades de atuação institucional, seja dentro do processo, seja fora dele. Ademais, com a previsão do art. 544, §1º, salvo melhor juízo, não mais se justifica a antiga possibilidade em ingressar nos autos como assistente dos réus, ante a atual previsão expressa legitimando a atuação da instituição de forma autônoma.
Assim, concretizando as diversas formas de defesa dos grupos vulneráveis (artigo 4º, XI, LC nº 80/94), a Defensoria Pública poderá adotar medidas extrajudiciais perante o Poder Público, buscando concretizar o direito fundamental à moradia, evitando a reintegração ou buscando o adequado acolhimento ou auxílio-moradia; poderá acionar a rede de atendimento, buscando auxílio, por exemplo, da rede de saúde e educação, almejando garantir acesso à creches, escola, medicamentos e eventuais tratamentos médicos e psicológicos.
No âmbito processual, independentemente da inércia de eventuais patronos na defesa dos réus, acreditamos que a defensoria pública deverá atuar para garantir o efetivo contraditório e a ampla defesa, não existindo mera opção processual, salvo se considerar inexistentes eventuais grupos de vulneráveis, ou seja, os pressupostos básicos para a atuação institucional. Nesse sentido, uma vez intimada, na qualidade de custus vulnerabilis, em uma intervenção autônoma, a Defensoria Pública poderá realizar uma manifestação, sendo certo que não se trata de uma contestação em si, apesar de muitas matérias estarem diretamente relacionadas ao direito de defesa do grupo vulnerável. Ademais, em caso de eventual deferimento liminar da reintegração, a Instituição poderá recorrer da decisão, por meio do recurso de agravo de instrumento.
Apenas como matéria exemplificativa, a defensoria pública irá analisar a regularidade processual, tal como a validade da citação, verificar questões envolvendo a delimitação da área, bem como se há adequação da via eleita e eventuais requisitos para o deferimento de liminar. No que tange ao mérito, pode-se analisar a viabilidade de se propor exceção de usucapião e direito de retenção em relação às benfeitorias. Além disso, deve-se averiguar o zoneamento em que está presente eventual ocupação, a existência de cadastro da área na prefeitura, exercício efetivo da posse, etc. Imprescindível ressaltar que os defensores deverão promover e estimular a necessidade de conciliação no processo em curso, evitando-se a reintegração forçada.
Como se percebe, a atuação da Defensoria Pública, seja judicial, seja extrajudicial, em tais casos, é bastante ampla. Indubitavelmente, portanto, a leitura dos dispositivos processuais, a partir dessa nova cultura, deverá abandonar o viés elitista/ oneroso/ burocratizado/ individualista e procurar garantir, de forma efetiva, social e coletiva, os direitos fundamentais dos jurisdicionados, principalmente daqueles mais necessitados, os quais, muitas vezes, possuem na Defensoria Pública a última luz para a garantia e preservação de sua dignidade.
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