Por Dierle Nunes, Paula Caetano Rubinger e Ana Luiza Marques
Notícia publicada recentemente informa que a OAB iniciará um trabalho de preparação da autorregulamentação do uso de inteligência artificial (IA), incluindo ferramentas de bots (robôs virtuais) no exercício do Direito[1], em face do uso cada vez mais recorrente da tecnologia na advocacia e dos impactos ainda não devidamente dimensionados[2].
De outro lado, existe um movimento cada vez mais incisivo no Judiciário com o fim de se promover o uso da IA[3] para otimizar os serviços judiciários e reduzir o constante estado de crise (em especial em face da litigiosidade repetitiva) que a Justiça padece.
O que não se percebe é que essa tendência, juntamente com a crença de que o uso dessas tecnologias traz prioritariamente benefícios, torna imperativa a preocupação e reflexão do jurista acerca dos impactos profundamente preocupantes desse movimento irrefreável nas profissões jurídicas.
No Direito, tal fenômeno se tornou mais visível com a expansão das soluções das lawtechs/legaltechs (LT): startups[4] voltadas para criação de soluções jurídicas. Segundo a AB2L, em outubro de 2017, havia 51 empresas associadas[5].
Quando do surgimento das primeiras LTs, as soluções jurídicas apresentadas eram mais simples e envolviam, em especial, o acompanhamento processual, a gestão de informações e prazos voltados para escritórios de advocacia.
Nos últimos anos, no entanto, o número das mesmas cresceu significativamente, e novos ramos começaram a ser explorados. A IA tem sido direcionada para monitorar dados públicos, fazer juízos preditivos das decisões judiciais, automatizar petições, pronunciamentos judiciais, contratos e demais documentos jurídicos, contatar profissionais do Direito para diligências específicas, propor resolução on-line de conflitos, compilar dados e aplicar a estatística ao Direito.
Para aqueles que ainda não têm contato direto com as inovações trazidas pelas LTs, o peticionamento produzido unicamente pela IA pode parecer algo distante, tanto quanto uma sentença assim proferida. Contudo, já há algoritmos utilizados por grandes escritórios de advocacia no Brasil e no mundo, em especial os de trato da litigância massiva, que são capazes de sugerir a redação completa de petições. Da mesma forma, alguns sistemas prometem fazer a análise narrativa das mesmas e, em julgamento da demanda, elaborar um esboço da sentença referente ao conflito em apreço, muitas vezes, neste último caso, negligenciando-se grandes riscos[6].
Nos EUA, computações cognitivas, como o Watson, são utilizadas por escritórios advocatícios para fazer pesquisas jurídicas, analisar documentos, redigir contratos e prever resultados[7]. As vantagens do uso de tal tecnologia, que proporciona maior rapidez, precisão e qualidade na realização de trabalhos maçantes e repetitivos, têm feito com que cada vez mais escritórios invistam em sua utilização.
De acordo com uma pesquisa feita pela CBRE, cerca de 48% dos escritórios advocatícios de Londres já utilizam sistemas de IA e 41% pretendem implantá-los. Segundo a pesquisa, os algoritmos são utilizados, principalmente, para gerar e revisar documentos, para a eletronic discovery[8] e na due diligence — investigação prévia de companhias antes da realização de negócios[9].
O mesmo fenômeno se verifica no Brasil, apesar de ainda ser constatado em menor escala. O Watson, por exemplo, foi implantado em um escritório de Recife para a automatização de serviços repetitivos, aumentando a média de acertos, em relação ao preenchimento de dados, de 75% para 95%[10]. Sistemas de IA também são utilizados por escritórios para a análise de tendência de juízes ao julgar determinados temas, possibilitando uma maior especificidade à defesa. A AGU iniciou a implantação de seu Sistema AGU de Inteligência Jurídica (Sapiens) em 2014, o qual tem por objetivo “facilitar o trabalho do procurador, tornando mais rápida e simplificada a produção de peças, automatizando e eliminando a necessidade de registro manual da produção jurídica”[11]. Trata-se de ferramenta que auxilia, inclusive, na tomada de decisão, sugerindo teses jurídicas cabíveis em cada caso concreto.
No âmbito do Judiciário brasileiro, como no TJ-MG, está se desenvolvendo um sistema para indexação automática de processos a fim de identificar com maior facilidade a existência de demandas repetitivas[12]. Do mesmo modo, o TST, em parceria com a UnB, está elaborando um software que fará a triagem automática de processos bem como processamento de julgados envolvendo a questão jurídica para a sugestão de proposta de voto[13].
Outras inovações trazidas pelas LT, a fim de otimizar o processo, são as ferramentas de autocomposição on-line. Percebendo a morosidade do Judiciário, que, ainda com todas as modificações trazidas pelo CPC/15, não conseguiu dar vazão à quantidade de demandas judicializadas, procurou-se criar formas de interação entre os sujeitos processuais, visando viabilizar a composição, por vezes antes mesmo da audiência de conciliação, ou até antes da propositura da demanda judicial.
Essas LTs propõem o contato direto entre partes, ou mesmo por intermédio de seus advogados, para que, negociando, consigam atingir um acordo benéfico a todos. O contato entre partes, promovido pela IA, pode ocorrer durante o curso do processo judicial, como também de modo preventivo à própria ação judicial, ou mesmo posteriormente à propositura da demanda, mas antes da citação da parte ré. Isso porque alguns sistemas são desenvolvidos para captar, nos sites de um dado tribunal, processos distribuídos contra a empresa contratante. Nesse sentido, já não há necessidade nem sequer de adotar um sistema de publicações, pois a IA o faz de forma integrada.
Por intermédio desse tipo de ferramenta, as empresas com grande volume de ações judiciais contra si têm conseguido rejuvenescer sua carteira de processos, remunerando por menos tempo os escritórios de advocacia eventualmente contratados. Há empresas de menor porte, ou mesmo as maiores, mas que têm um jurídico interno mais robusto, que retém dado número de processos internamente até que a inteligência artificial faça a interface entre partes e, caso haja resultado positivo, o processo é encerrado via composição, antes mesmo de ser repassado a um jurídico externo anteriormente contratado para administrar e atuar em um número bem superior de processos.
Os benefícios de empresas dedicadas à resolução on-line de conflitos por formas alternativas ao processo judicial, como mediação, arbitragem e negociação de acordos, são, de fato, inegáveis. Tendo em vista que há audiências de conciliação que, hoje, estão sendo designadas, em alguns tribunais, para o início de 2019, oportunizar a composição antes mesmo da citação é, em tese, benéfico às partes.
Contudo, ainda que seja possível elencar uma série de pontos positivos nas inovações tecnológicas trazidas por essas startups, necessário se faz uma reflexão um pouco mais crítica acerca do tema.
Importante rememorar que, quando da implementação dos juizados especiais e da designação compulsória das audiências de conciliação para praticamente todas as demandas ajuizadas, o intuito era também o de ampliar o acesso à Justiça e de criar meios integrados à resolução de conflitos, antes do provimento estatal. Entretanto, ambas as medidas fracassaram em algum ponto. No mesmo sentido podem caminhar as tentativas de composição promovidas por IAs.
Ora, a contratação desses sistemas certamente será feita por empresas detentoras do maior capital. Em relações de consumo, em especial, a parte demandante ficará a mercê dos desígnios da demandada. Como sabido, nessas circunstâncias, dificilmente o bem da vida recebe a tutela devida se não houver a apreciação (de qualidade) por parte do Judiciário, especialmente quando os desígnios do neoliberalismo processual, com seus objetivos somente quantitativos (não qualitativos), se impõem[14].
É inegável que através desses sistemas encontra-se potencial solução administrativa para o passivo massivo do Judiciário. A dúvida é se é possível considerar que haverá, nesses casos, respeito ao devido processo constitucional e aos direitos fundamentais dos cidadãos. Aparentemente, enquanto ferramenta patrocinada por empresas de grande poder aquisitivo, há indícios de que o setor privado poderá se aproveitar de uma falha do serviço público para reduzir eventuais prejuízos, abusando, por exemplo, de situações não atribuíveis ao demandante, como a excessiva morosidade do Judiciário, para obter acordos mais vantajosos para si, em detrimento do direito do jurisdicionado.
Ainda há de se problematizar a relativização do ius postulandi dos advogados pelo emprego da IA. Seu uso no atual estágio, como anteriormente indicado, já pode, de modo autônomo, redigir petições inteiras, sem que haja necessidade da intervenção do advogado. A função deste, portanto, em alguns processos ou fases do procedimento, passará a ser meramente formal, tão somente para assinatura da petição. Sem questionarmos à praticidade e à celeridade que o referido mecanismo pode gerar aos escritórios de advocacia, necessário pensarmos criticamente até que ponto a “evolução” nesse sentido não fere o princípio do ius postulandi.
De acordo com o artigo 133 da CRFB/88, salvo exceções previstas em lei, o advogado é indispensável à administração da justiça, cabendo somente a ele o ato de postular perante as instâncias judiciárias como forma de se garantir aos cidadãos defesa técnica e respeito a seus direitos fundamentais.
Nesse sentido, ao se permitir que o peticionamento seja todo ele construído por uma IA que, não necessariamente será programada por um advogado, nos deparamos com, na melhor das hipóteses, a relativização do ius postulandi. Destarte, essencial que, acompanhando a evolução tecnológica no Direito, haja um estudo crítico a esse respeito, a fim de que não se permita a relegação da atividade do advogado a um segundo plano, tornando-o mero coadjuvante do procedimento[15]. O desenvolvimento desregulado da inteligência artificial pode fazer com que advogados de uma determinada área passem de juristas para “operadores de sistemas jurídicos”, resultando em um significativo empobrecimento da profissão, além dos evidentes prejuízos que a ausência de efetiva análise por parte de um profissional do Direito poderá ocasionar às partes sem olvidar a possível responsabilização pelos serviços realizados pelos algoritmos.
Doravante ao que aqui se resumiu, percebe-se que não há como frear o progresso tecnológico, tão pouco a sua influência e utilização no meio jurídico. Contudo, para que não se enfrente uma nova crise jurídico-tecnológica é preciso melhor estudar a implementação da IA, seus limites de atuação e consequências. Como se pontuou em recente relatório francês:
É necessário aumentar a transparência e a auditabilidade dos sistemas por um lado, desenvolvendo as capacidades necessárias para observar, compreender e auditar o seu funcionamento e, por outro lado, investindo massivamente na pesquisa sobre ‘explicabilidade’. Em segundo lugar, a proteção dos direitos e liberdades deve ser adaptada ao abuso potencial relacionado ao uso de sistemas de aprendizado de máquina. Acontece que a legislação atual, focada na proteção do indivíduo, não está em sincronia com a lógica introduzida por esses sistemas — isto é, a análise de uma massa de informações consideráveis, a fim de identificar tendências e comportamentos mascarados — e seus efeitos em grupos de indivíduos. Para preencher esta lacuna, é necessário agir com a criação de direitos coletivos sobre os dados. Ao mesmo tempo, deve-se assegurar que as organizações que implantam e usam estes sistemas permanecem sujeitos à lei por qualquer dano causada por eles[16].
Tais ponderações corroboram a preocupação noticiada ao início pela OAB e que deveria ter ressonância em todas as instituições jurídicas, de modo que o ufanismo no emprego de tais tecnologias não se transforme num cavalo de troia para o exercício legítimo da aplicação do Direito.
[2] Recente protesto no RJ mostra algumas das preocupações: OAB-RJ protesta contra sistema automatizado de solução de conflitos. Cf. https://goo.gl/afi2Bd.
[3] “Batizado de VICTOR, a ferramenta de inteligência artificial é resultado da iniciativa do Supremo Tribunal Federal …em conhecer e aprofundar a discussão sobre as aplicações de IA no Judiciário.” Inteligência artificial vai agilizar a tramitação de processos no STF. Cf: https://goo.gl/HH5pz8
[4] Startup é um termo usado para definir uma empresa que está começando suas atividades no mercado com a visão de ganhar espaço usando ideias inovadoras.
[5] Cf: https://goo.gl/dJzaJs
[6] Em outra sede se comentou os problemas dos vieses algorítmicos: NUNES, D.; VIANA, A.. Deslocar função estritamente decisória para máquinas é muito perigoso. Cf: https://goo.gl/sSgj7M.
[7] A utilização de algoritmos para a previsão de resultados colabora para análise da viabilidade da demanda e elaboração de estratégias. Em um estudo realizado nos Estados Unidos, desenvolveu-se um algoritmo para prever as decisões da Suprema Corte, o qual obteve um índice de acerto de 70,2% em relação à resolução do caso e de 71,9% quanto aos votos dos juízes. Ver: Katz DM, B.; MJ II, J. A general approach for predicting the behavior of the Supreme Court of the United States. Cf: https://goo.gl/3LS4t6.
[8] “…descreve qualquer processo em que dados eletrônicos são procurados, protegidos, localizados, explorados e recuperados com o uso intencional como evidência em um processo civil ou criminal”. Cf: https://goo.gl/oHrskq.
[9] Cf: https://goo.gl/kFPwXB.
[10] Inteligência artificial da IBM está ajudando escritório de advocacia brasileiro. Cf: https://goo.gl/uJnxCc.
[11] Ver: Advocacia-Geral aposta em inteligência artificial e automação de processos para agilizar trabalhos jurídicos. Cf: https://goo.gl/rdVz7M.
[12] Trata-se da ferramenta Ágil, que analisará, de maneira constante, o banco de dados do tribunal, informando os juízes acerca de distorções na distribuição. Cf: https://goo.gl/td3kjf.
[13] RACANICCI, J. Judiciário desenvolve tecnologia de voto assistido por máquinas. Cf: https://goo.gl/QZz7Hg.
[14] NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático. 2008.
[15] Entidades de advogados reagem a robô que ajuda em ações trabalhistas. Cf: https://goo.gl/bYc51n.
[16] VILLANI, C. Donner uns sens à li’intelligence artificielle: pour une stratégie nationale et européenne. 2018. p. 140-142.
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