Por Guilherme Rizzo Amaral
É excelente a oportunidade apresentada pelo jurista Lenio Streck de debatermos a temática dos precedentes no direito brasileiro. O conjunto de quatro artigos, denominado de “tetralogia” por Streck, traz amplo material para reflexão.
O precedente não se confunde com a decisão judicial do qual emana. Ele deve ser dela extraído por quem o aplicará subsequentemente a partir daratio decidendi. Na clássica definição de Salmond, “o precedente é uma decisão judicial que contém em si mesma um princípio. O princípio subjacente que forma seu elemento de autoridade é geralmente chamado deratio decidendi”.[1]
Países do common law consideram precedentes emanados das jurisdições às quais está vinculado o julgador como fontes vinculantes e primárias de direito (binding doctrinal propositions), tais como as leis (statutory law). [2]Assim, quando Streck afirma que sua discordância com Hermes Zaneti Jr.reside na possibilidade de a jurisprudência ser alçada à condição de “fonte primária do direito junto à legislação”, deveria esclarecer que sua discordância é, em verdade, com a tradição do common law. É certo que o precedente não está acima da lei no common law, e que lá o legislador pode “revogar” o precedente. Mas isso não retira o status que o precedente tem defonte primária do direito.
Qual é, no entanto, a origem desse poder dado aos precedentes no common law?
Em célebre ensaio, A. W. B. Simpson aponta que o argumento de que a House of Lords, no caso London Street Tramways (1898), criou para si uma obrigação de seguir precedentes ou distingui-los não passa de um argumento circular, pois não prova que a House of Lords possuiria tal poder.[3] E, conclui, afirmando que apenas o reconhecimento contínuo da existência de tal poder, somado à inexistência de um corpo consistente de opiniões em sentido contrário, é que permite afirmar que tal poder, de fato, existiria. É dizer: antes de qualquer ato do Legislativo, é uma sequência de fatos e de comportamentos — de uma cultura, portanto — que se erige em autoridade para a força vinculante dos precedentes no Direito inglês. [4]
Nos países do civil law e, muito particularmente, no Brasil, aos precedentes sempre se reconheceu algum efeito persuasivo, mas não efeito vinculante.
Contudo, é inegável que o novo CPC propõe, mediante alteração legislativa,uma drástica mudança na forma de encarar precedentes no Brasil. A afirmação de Streck, de que “em nenhum país em que o precedente faz parte da sua tradição jurídica é necessário que a lei imponha um sistema de vinculação, definindo o que é precedente” deveria vir acompanhada da constatação, também inequívoca, de que o Brasil não tem o precedente vinculante como parte de sua tradição jurídica. O caso do Brasil é distinto daquele dos Estados Unidos ou do Reino Unido; em nossa tradição jurídica a vinculação dos precedentes é contraintuitiva, o que justifica sua adoção pela via legislativa.[5]
Assim, vemos com certa perplexidade a crítica de Streck: de um lado, processualistas brasileiros estariam buscando “importar” acriticamente o sistema de precedentes do common law; de outro, quando tentam fazê-lo de modo diverso ao do common law — por via legislativa — a crítica é justamente por não se ter feito assim no common law!
Além disso, ao insinuar, somente agora[6], que o vocábulo observarão, contido no caput do artigo 927, não tem o sentido de deverão observar,[7]Streck deveria explicar como harmonizar tal concepção com a norma contida no artigo 489, § 1º, VI, que considera não fundamentada qualquer decisão judicial que deixe de seguir jurisprudência ou precedente invocado pela parte de sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
Seria, no entanto, a criação de precedentes uma função consciente das cortes supremas? Ou tão somente um resultado acidental ou contingencial da resolução de disputas?
Em diversas oportunidades, Streck dá a entender que a segunda hipótese melhor descreveria a função das referidas cortes. Diz Streck, por exemplo, que “no common law, precedentes não são construídos para, a partir de teses, vincular julgamentos futuros”. Diz ainda: “Desafio a que demonstrem que alguém no common law diga que os precedentes são formados ‘enquanto teses generalizantes’ para vincular os juízes no futuro. De novo: os precedentes do common law não são respostas antes das perguntas”.[8]
Streck tem razão quando diz que os precedentes não são enunciados de teses generalizantes, assemelhado a súmulas ou mesmo às teses de recursos especiais ou extraordinários repetitivos.[9]
Contudo, as cortes no common law exercem duas funções; a de resolver disputas e a de enriquecer o ordenamento jurídico.[10] Essa segunda função é questionada por alguns que, como Streck, afirmam que a criação de normas aplicáveis a casos futuros é produto contingencial da resolução de disputas. Eisenberg expõe essa posição denominando-a como by-product model,modelo pelo qual “as cortes estabelecem regras jurídicas apenas como umby-product incidental da resolução de disputas”.[11] Em seguida, contrasta-a com o enrichment model, modelo pelo qual “o estabelecimento de regras jurídicas para governar condutas sociais é desejado em si mesmo – embora subordinado de várias e importantes maneiras à função de resolução de disputas – de modo que as cortes conscientemente assumem a função de desenvolver certos corpos de lei, embora façam-no caso a caso”.[12] Conclui Eisenberg que a análise das decisões judiciais no common law apontam para o enrichment model como sendo aquele seguido pelas cortes.[13]
Quando Streck cita Duxbury em amparo de sua tese, entendemos que o faz de modo impreciso. Afirma Streck: “Duxbury, por exemplo, apesar de perceber que os juízes podem decidir com o futuro em mente adverte que os mesmos não devem fazê-lo, (…)”.
Quem assim lê entende que os juízes estariam impedidos (“não devem”) de decidir com olhos no futuro. Mas não é o que sustenta Duxbury. No original, consta “do not have to”, o que é muito diferente de não devem. Melhor seria se Streck houvesse traduzido a frase como “não necessariamente devem” ou “não estão obrigados”, o que modificaria completamente seu sentido.[14]Também seria interessante se houvesse reproduzido a afirmação de Schauer transcrita na página imediatamente anterior da obra de Duxbury, de que o precedente “envolve a responsabilidade social acompanhada do poder de se comprometer para o futuro antes de o alcançarmos”.[15]
Há outro ponto que chama à atenção na crítica de Streck: a repetição reiterada de que o precedente vincula pela qualidade de suas razões, e não por sua autoridade.[16]
Tomamos tal afirmação como uma opinião pessoal do articulista, para quem “tal visão não é funcional, mas, sim, disfuncional”.[17]
Tal opinião não está alinhada com a teoria dos precedentes oriundas docommon law, na qual a diferença entre um precedente vinculante e um precedente persuasivo não é uma diferença de grau, mas uma diferença deespécie.[18]
Um precedente persuasivo apresenta razões substanciais para alguém segui-lo. O juiz que segue um precedente persuasivo aprende[19] com ele,acredita[20] nele e somente o segue convencido[21] de seu acerto. Ao se deparar com um julgamento defeituoso gerador do precedente persuasivo ou com razões substanciais para duvidar de sua correção, o juiz poderá decidir não seguir o precedente.[22] É por isso que se diz que a ninguém é dado reconhecer o precedente como persuasivo, segui-lo e expressar arrependimento ou inconformidade com o resultado.[23]
Um precedente vinculante, por outro lado, determina ações em alguém independentemente de seu poder de convencimento ou suas razões substanciais. Como autoridades práticas, precedentes vinculantes apresentam razões para ação e não razões para convencimento ou crença(“reasons for action, rather than reasons for belief”).[24] Essas razões são também conhecidas como razões independentes de conteúdo (“content-independent reasons”),[25] dado que exsurgem não do conteúdo substancial das razões do precedente, mas sim de sua fonte. [26] Alguém pode estar convencido do equívoco de um precedente e ainda assim ter de segui-lo: a única outra opção viável seria distingui-lo.[27]
Ao lidar com um binding precedent, o juiz do common law não necessita percorrer o mesmo caminho da corte de precedentes. Isso equivaleria areinventar a roda, nas palavras de Duxbury.[28] Por isso não vemos razão para a crítica de Streck à postura do Supremo Tribunal Federal no julgamento do 655.265/DF. O que Streck vê como “ode ao stare decisis” pode ser visto como pura e simples mudança cultural, estimulada pela mudança legislativa, resultando no respeito aos precedentes.
Aliás, aqui se faz também necessário enfrentar a crítica de Streck, endossada por Igor Raatz,[29] de que “no final das contas os ‘precedentalistas’ aceitam que alguém ‘erre’ por último, uma vez que, para eles, é mais importante segurança jurídica que respostas corretas”.
Sim, errar é da natureza humana, e a aceitação de que alguém errará por último nada mais é do que a aceitação dessa natureza. A alternativa seria a eternização dos conflitos. Não é, contudo, uma tese dos precedentalistas deterrae brasilis, como costuma afirmar Streck. É algo tranquilamente aceito em países que adotam uma teoria de precedentes.
Nesse aspecto, é notória a diferença cultural — e, portanto, comportamental — entre juízes brasileiros e juízes do common law. Um relato do então juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, Lewis Powell Jr., é ilustrativo: ao acompanhar os demais juízes na manutenção de um precedente, afirmou que se não houvesse decisão sobre o tema, estaria inclinado a concordar com aqueles que votavam pelo novo entendimento, dada a persuasão dos argumentos apresentados. Estes, no entanto, haviam chegado tarde demais, dado que o precedente já existente era maduro e recente, não se sentindo o juiz livre para desconsiderá-lo.[30]
Além disso, erros quanto à descoberta dos fatos, por vezes com consequências muito mais graves do que os erros de direito, são cometidos há décadas por último pelas cortes ordinárias no Brasil sem que contra isso tenham se revoltado os críticos da teoria dos precedentes.
Cabe, assim, às cortes supremas, dar a última palavra (e, assim, errar por último) em matéria constitucional ou infraconstitucional, e às cortes ordinárias toca dar a última palavra (errando, também, por último), sobre a descoberta dos fatos. Nada diferente do que se passa no Estados Unidos.[31]
E não há nada de realismo jurídico aqui, como alerta Benjamin Cardoso, ex-Chief Justice da Suprema Corte Estadunidense:
“Em reconhecendo, como faço, que o poder de declarar o direito carrega com ele o poder, e nos limites do dever, de criar o direito, não pretendo me colocar entre aqueles juristas que parecem sustentar que, em realidade, não há direito a não ser a decisão das cortes”.[32]
Por fim, só posso encerrar como iniciei: cumprimentando Lenio Streck pelo fundamental debate que está a propor. Como ele muito bem diz na abertura de sua tetralogia, estamos “discutindo também o seu futuro, caro leitor”.
Ps. A íntegra deste artigo, aqui apresentado em sua versão resumida, pode ser encontrada neste link.
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