Por Vladimir Passos de Freitas
A madrugada do dia 30 de novembro foi inusitada no Câmara dos Deputados. Os parlamentares, examinando Projeto de Lei oriundo do Ministério Público, que propunha medidas contra a corrupção, inverteram a ordem da proposta, promoveram 11 mudanças e criaram outro PL que atribui crimes de abuso de autoridade e cria regras de Penal, Processo Penal, Eleitoral, Improbidade administrativa e exercício da advocacia.
A alteração feita na calada da noite, quando os aparelhos de TV estavam desligados e população dormia, desprezou dois milhões de assinaturas de brasileiros. [i] Não há razão para surpresa. Afinal, entre perder parte da popularidade ou tentar salvar-se de denúncias, optaram os Parlamentares pela segunda hipótese. Vejamos as novidades.
1. A redação do PL 4.850-C de 2016
O crime de abuso de autoridade foi introduzido na legislação pátria pela Lei 4.898, de 8/12/1965, para coibir excessos dos agentes públicos durante o regime militar. Em livro escrito com Gilberto Passos de Freitas [ii], registrei que a lei não era só para policiais, mas sim para todos os agentes públicos e que, inclusive, o artigo 4º, “d”, previa um delito exclusivo de juízes.
Agora, o PL 4.850-C da Câmara vai muito além. Tem desde providências programáticas, como as do Título I que ordena aos tribunais que prestem contas das ações criminais e de improbidade administrativa, e do Título II, que recomenda o treinamento de agentes públicos, até detalhadas condutas que configuram abuso de poder. Vejamos.
2. Crimes de juízes e agentes do Ministério Público
O Título III dedica um Capítulo a juízes e outro a procuradores da República (federais) e promotores de Justiça (estaduais). Deixa fora todas as outras profissões em que é possível cometer-se abusos, como prefeitos ou diretores de órgãos administrativos. Seus dispositivos surpreendem pela especificidade de cada situação, dando a impressão de que quem soubesse de algum problema devia aproveitar a oportunidade para transformá-lo em um fato criminoso.
2.1 Crimes de juízes
No artigo 8º estão as condutas de juízes e desembargadores (ministros dos tribunais superiores foram excluídos implicitamente) que passam a ser crime, punido com 6 meses a 2 anos de detenção e multa. Vejamos.
O inciso I, criminaliza “proferir julgamento, quando, por lei, seja impedido”. É difícil imaginar um julgamento em que o juiz tenha impedimento. Veja-se que não se trata de competência, mas sim de impedimento. O inciso II fala em atuar com motivação político-partidária. É óbvio que esta conduta é absolutamente errada. Mas não será fácil distinguir se houve ou não a motivação política, porque uma decisão deste tipo jamais será explícita. Com isto, entrará no perigoso subjetivismo de quem interpreta.
O inciso III criminaliza o ser desidioso. Sempre achei que o juiz que não trabalha tem que ser afastado de suas funções, porque sua improdutividade causa sério dano a um número de pessoas indeterminado. Contudo, criminalizar a preguiça é algo que foge à lógica e que, se tivesse sentido, deveria estar no Código Penal e não ser imposto só a juízes.
O inciso IV é de todos o mais perigoso. Torna crime “proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções”. Todas estas condutas são extremamente subjetivas, é tema mais para a esfera administrativa.
Os incisos V a VIII tratam de desvios funcionais ligados ao aumento de renda ou exercício de outras atividades, como receber custas, exercer a advocacia ou outra função pública. Tais hipóteses, mesmo sendo condenáveis, não configuram abuso de autoridade, mas sim corrupção passiva ou outro delito. Até se admite que sejam criminalizadas, mas não em lei de abuso de autoridade, cujo fim é diverso.
O inciso IX dispõe ser abuso de autoridade “expressar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério”. Não se vê maior utilidade neste tipo penal, simplesmente porque raramente um juiz ou desembargador antecipa decisões. Mas, de qualquer forma, seria muito oportuno as Corregedorias lembrarem que juiz fala nos autos.
2.2 Crimes de agentes do MP
O Capítulo II, com 13 tipos penais, é direcionado aos representantes do MP. Alguns não se sabe o motivo de lá estarem, por exemplo, o VII, que criminaliza exercer a advocacia. Atualmente, salvo situações excepcionais no MPF, anteriores à Constituição de 1988, dificilmente se achará quem advogue. E se isto ocorrer, evidente que o caso é de perda do cargo.
Alguns incisos são semelhantes aos existentes para juízes. Por exemplo, ser desidioso (IV), proceder de forma inadequada (V) ou “atuar, no exercício de sua atribuição, com motivação político-partidária” (X). Este último, no MP merece cuidado especial, pois alguns se apaixonam pela causa, por vezes com as melhores intenções e podem passar dos limites.
O inciso XII parece ter por objetivo evitar as audiências coletivas, leia-se
“lava jato”. Este é um tema que merece discussão detida, com especialistas em comunicação de massas. Quais as vantagens e desvantagens em proibir? Evidentemente, não é algo para ser criminalizado madrugada a dentro, sem qualquer aprofundamento e sem saber o que disto pensa a sociedade.
Outros são inúteis. O inciso I proíbe que se emita parecer quando por lei seja impedido e o II que se recuse a praticar ato que a lei lhe incumba. Difícil imaginar-se em que tipo de situação isto se daria. Provavelmente, são práticas isoladas que geraram revolta em caso concreto. Para o item II, sempre que o MP se recusava a praticar certo ato (p. ex., opinar em mandado de segurança) eu seguia com a ação normalmente.
O inciso III fala em promover investigação civil ou administrativa sem justificativa. Esta seria uma forma especial de prevaricação. Uma investigação causa sério gravame a quem é investigado e, em tese, pode haver abuso na instauração. Não me parece que seja excessivo considerar a ausência de justificativa um abuso de autoridade.
Finalmente, o inciso XI aponta para receber auxílios ou contribuições indevidas. Não se vê utilidade neste tipo, vez que tal conduta é corrupção passiva, cuja pena é mais grave.
3. Outras propostas do PL da Câmara
O PL tem nada menos 25 artigos desmembrados em parágrafos e incisos. Os temas são os mais diversos, tudo, evidentemente, preparado anteriormente. Um deles chama minha atenção, qual seja, a redação dada artigo 43-B do Estatuto da OAB que torna crime, punido com detenção de 1 a 2 anos, violar direitos ou prerrogativas de advogado.
Deixo bem claro, desde logo, que em 36 anos de MP e magistratura federal, sempre tive com advogados e a OAB um excelente relacionamento. E por isso até tive o dissabor de responder um processo no Tribunal de Contas da União, por ter, como presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, designado dois colegas para representar o tribunal em solenidades de posse na presidência das OABs do Paraná e de Santa Catarina. Felizmente, não fui condenado a pagar as diárias de ambos.
Pois bem, o PL 4.850-C da Câmara cria um tipo penal que acaba caindo na interpretação sobre a forma de cumprimento das prerrogativas. Sabendo-se que o Brasil já tem mais de um milhão de advogados, é evidente que sucessivos conflitos ocorrerão diariamente.
Alguns serão simples, como alguém querer falar com um juiz que não pode atender porque está analisando uma liminar, disto resultando uma representação criminal. Outros mais complexos, como incidentes em audiência, alegando-se ofensa à prerrogativa de ampla defesa. Outras ocorrências serão insolúveis, como as diligências de busca e apreensão em escritório de advocacia, eventualmente necessárias, como no recente caso de advogados acusados de ligação com o PCC. [iii]
Outrossim, a legitimidade ativa dada à OAB e a ONGs de defesa de direitos humanos ou liberdades civis para intentar ação penal subsidiária (artigo 9º, § 5º) foge a qualquer previsibilidade, sendo caso único em que o órgão de defesa passa a acusador e este a réu.
PL 280/2016 do Senador Renan Calheiros
O presidente do Senado tentou pautar o PL 280/2016, [iv] sobre abuso de autoridade. O PL de Calheiros nada tem a ver com o da Câmara, foi proposto em julho passado. Os crimes estão previstos nos artigos 9 a 38. Alguns repetem o que já consta na Lei 4.898/65. Outros inovam, com resultados diversos. Em algumas hipóteses a iniciativa é perfeita, como a proibição do artigo 22, II, que pune acessar dados protegidos por sigilo fiscal ou bancário sem motivação funcional.
Porém na atividade policial o PL é por demais minucioso e suscita dúvidas sobre o acerto do procedimento policial a cada momento. Não se pode detalhar este tipo de atividade, porque ela é, por si só, plena de surpresas e incidentes. Colocar tudo dentro de regras, punidas com penas elevadas, estimulará o que já é vem se acentuando há algum tempo. Cada vez menos policiais querem trabalhar na investigação e arriscar-se.
4. Os PLs e a omissão dos órgãos de controle
Pessoas inteligentes procuram tirar lições das crises vivenciadas. Em meio a um PL da Câmara que altera estruturas e põe em risco a independência da magistratura e do MP, as lideranças desses órgãos devem perguntar-se como se chegou a tal extremo. Na minha opinião, estas ainda não aprenderam como tratar os casos de desvios funcionais, não percebem que o corporativismo prejudica o próprio órgão e agora pagam o preço da inércia.
5. Tribunais Superiores
O PL 4.850-C de 2016 da Câmara, explicitamente, direcionou-se a tribunais de segunda instância e aos juízos, excluindo os Tribunais Superiores. A separação induz a crer que ninguém cometeria um abuso de autoridade no STF, STJ, TSE, TST e TJM. É difícil crer.
Assim postas as considerações sobre o PL 4.850-C, inevitável é concluir que com certeza todos devem submeter-se a limites na sua autoridade, agentes do MP e magistrados também, mas, regras plenas de subjetivismo podem ser mais um passo no nosso ineficiente sistema de Segurança Pública e Justiça.
Fonte: www.conjur.com.br
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