Por Osny da Silva Filho
Inicio aqui minha participação na coluna Direito Civil Atual, coordenada pelos ministros Luis Felipe Salomão, Humberto Martins e Antonio Carlos Ferreira, bem como pelos professores Ignacio Poveda, Otavio Luiz Rodrigues Junior, José Antonio Peres Gediel, Rodrigo Xavier Leonardo e Rafael Peteffi da Silva. É uma grande alegria participar deste importante projeto de revitalização do direito civil brasileiro, levado a cabo por um número crescente de professoras e professores de todo o Brasil. Um dos propósitos desta coluna é dar conta da ocorrência de eventos relevantes para a conformação teórica e prática do direito privado e de seus diferentes campos. É de um desses eventos, realizado há pouco mais de um mês, que eu gostaria de tratar nesta primeira intervenção.
Entre os dias 29 de junho e 1º de julho, a Faculdade de Direito da Universidade de Amsterdã, na Holanda, recepcionou o seminário Contract Law in a Liberal Society, coordenado pelos professores Aditi Bagchi, Hanoch Dagan e Martijn Hesselink. Além dos três autores, que circularam textos inéditos algumas semanas antes do evento, o encontro contou com a participação de quinze pós-graduandos e jovens professores da Europa, Ásia e América. Todos foram convidados a enviar trabalhos de reação à bibliografia dos organizadores. Eu apresentei um pequeno artigo, submetido a publicação na Revista de direito civil contemporâneo. Nele, procuro discutir o papel desempenhado pelo reconhecimento abrangente da desigualdade na teoria contratual, tomando esse reconhecimento como um traço comum às teorias de Bagchi, Dagan e Hesselink. Voltarei a este meu texto logo mais.
O mote do seminário, já sugerido em seu título, foi o papel desempenhado pelo Direito dos Contratos em sociedades que assumam ou persigam modelos liberais de organização política.[1] A diversidade de origens dos participantes não impediu a identificação de ao menos dois importantes pontos de contato entre suas propostas. Um deles é o caráter crescentemente pós-nacional do Direito dos Contratos, ditado não apenas pela internacionalização das relações contratuais, mas também pela globalização das reflexões a respeito de sua regulação. Outro corresponde ao alargamento do debate a respeito das relações entre direito e política no campo contratual, tema que ganhou relevo sobretudo a partir de uma provocação transatlântica já antiga, mas ainda viva.[2] Os três dias de seminário foram organizados em dois períodos. As manhãs foram dedicadas exclusivamente à discussão dos textos elaborados pelos organizadores, em sessões de aproximadamente quatro horas; à tarde, por mais quatro ou cinco horas, foi a vez dos pós-graduandos e jovens professores discutirem seus textos, sempre com a intervenção dos organizadores.
Aditi Bagchi, professora da Escola de Direito de Fordham, em Nova York, foi a responsável pela abertura do seminário. A autora organizou a primeira manhã de debates em torno de três temas extraídos de seu primeiro livro,Contract Law in a Liberal State. Primeiro, o papel do Estado no balanceamento de propósitos regulatórios conflitantes no campo contratual; segundo, os contornos da noção de vontade na definição do que chamaríamos de conteúdo dos contratos; terceiro, o problema da volubilidade no curso das relações contratuais. Quanto ao primeiro ponto, exemplificado pelo conflito entre redistribuição de recursos, redução de externalidades e promoção do ambiente de negócios, Bagchi destacou a crescente capacidade regulatória do Estado, hoje mais efetiva que outrora, como razão justificativa para uma atuação menos tímida diante de situações de injustiça. Quanto ao segundo ponto, a professora de Fordham procurou criticar noções binárias da voluntariedade contratual (conforme as quais um contrato é ou não voluntário, tertium non datur), defendendo o reconhecimento de diferentes graus de voluntariedade em diferentes arranjos contratuais concretos. Por fim, e em terceiro lugar, Bagchi apresentou argumentos em favor da tutela, hoje largamente denegada, do que chama de volubilidade contratual, ou seja, do comportamento que veicula alterações externamente injustificáveis, mas internamente resolutas, de um contrato ou determinação contratual singular.
O segundo dia de evento foi capitaneado por Hanoch Dagan, professor ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Tel Aviv, em Israel, e professor visitante das escolas de direito de Columbia e Michigan, nos Estados Unidos. Dagan apresentou uma versão bastante avançada de seu livro The Choice Theory of Contracts, escrito em coautoria com Michael Heller, de Columbia. Em sua apresentação, o professor israelense ofereceu um contraponto às antigas proposições teóricas de Samuel Williston, autor de um célebre tratado de Direito dos Contratos muito pouco conhecido no Brasil,[3] e de Charles Fried, professor da Escola de Direito de Harvard (ainda na ativa, aos 81 anos) e autor do clássico Contract as Promise.[4] De Williston, Dagan rejeitou a ideia de um Direito dos Contratos orientado paradigmaticamente pela prática empresarial e alheio a particularidades setoriais, advogando por um modelo regulatório plural, orientado por modelos contratuais socialmente assentados, que chama, sem recurso aos sentidos que esta palavra assumiu na tradição europeia continental, de “tipos”. De Fried, o autor israelense procurou negar a noção de autonomia como independência ou incolumidade, propugnando pela retomada da ideia de autonomia como autodeterminação — uma ideia que, ao menos à primeira vista, legitimaria a atuação positiva do Estado na vida contratual privada.
Na última manhã do seminário, o responsável pelos debates foi Martijn Hesselink, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Amsterdã. O autor apresentou uma síntese de sua produção no campo contratual e procurou aprofundar sua reflexão sobre as relações entre democracia e Direito dos Contratos.[5] Hesselink é um escritor prolífico, que transita de modo fluente entre problemas teóricos e doutrinários, e já conta com uma bibliografia significativamente extensa. Ele também é um dos poucos privatistas europeus contemporâneos a estabelecer pontes intelectuais e institucionais sólidas entre a Europa e os Estados Unidos, e os textos referidos em sua síntese (quase todos disponíveis em sua página na Social Science Research Network) revelam esse traço com particular nitidez. Um tema recorrente em seus últimos trabalhos, que também marcou a discussão levada adiante em sua apresentação, é o papel de diferentes orientações filosófico-políticas na conformação do direito privado em geral e do Direito dos Contratos em particular, bem como a melhor forma de apurar e concretizar essas orientações. Embora indisfarçavelmente simpático ao liberal-igualitarismo de matriz rawlsiana,[6] Hesselink fez questão de enfatizar sua rejeição a modelos paternalistas, aristocráticos ou autoritários de definição do direito, reiterando seu endosso a uma atraente, mas ainda bastante abstrata noção de “Direito dos Contratos democrático”, conforme a qual mesmo proposições jurídicas de caráter alegadamente técnico — proposições doutrinárias, poderíamos dizer — devem ser submetidas ao debate público.
As diferenças entre as teorias de Bagchi, Dagan e Hesselink não são negligenciáveis. Cada um desses autores concebe o papel do Direito dos Contratos em uma sociedade liberal de modo próprio, ainda que convergente. Seus contendores, por outro lado, parecem ser os mesmos: teóricos da vontade, prosélitos da análise econômica do direito de matriz eficientista, entusiastas da ideia de contrato como instrumento de promoção justiça comutativa, defensores da retomada do historicismo como método de legitimação do direito dos contratos. Sugiro, e aqui retomo o texto que apresentei em Amsterdã, que isso não é mera coincidência. O reconhecimento de desigualdades de partida, tradicionalmente deixadas de lado na regulação contratual, é o que separa autores tão diferentes quanto Bagchi, Dagan e Hesselink de seus antípodas. É a apropriação teórica da desigualdade, em contraste com sua rejeição ou negação, que ao mesmo tempo une e desagrega o pensamento contratual contemporâneo e sua respectiva literatura. A ideia de contrato como desigualdade representa, por isso, não apenas uma nova concorrente entre as orientações normativas disponíveis, à maneira da comutação ou da eficiência; mais do que isso, ela corresponde àquele que parece ser, hoje, o mais abrangente critério de organização da teoria contratual.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).
[2] O texto que reacendeu a discussão teórica internacional a respeito das relações entre direito e política no campo dos contratos foi publicado por um professor norte-americano em uma revista europeia no início dos anos 2000. v. Kennedy, Duncan. The Political Stakes in “Merely Technical” Issues of Contract Law. European Review of Private Law, 1, 2001. Para uma reproposição mais recente e pormenorizada desse debate, v. Hesselink, Martijn W. Five Political Ideas of European Contract Law. European Review of Contract Law, 7, 2011.
[3] Williston, Samuel. The Law of Contracts (4 vols.). New York: Baker, Voorhis, 1920. Williston foi o relator do primeiro Restatement of Contractsnorte-americano, publicado em 1932.
[4] Fried, Charles. Contract as Promise. A Theory of Contractual Obligation.Cambridge: Harvard University Press, 1981.
[5] Hesselink, Martijn W. Democratic Contract Law. European Review of Contract Law, 11, 2015.
[6] A inclinação liberal-igualitária de Hesselink pode ser extraída de seu já citado Five Political Ideas of European Contract Law (v. nota 2 supra). Suas intervenções no seminário reforçaram essa impressão.
Fonte: www.conjur.com.br
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