Regressiva Direito Penal: A aplicabilidade dos institutos da transação penal e do sursis processual diante do princípio da isonomia
A transação penal e o sursis processual são institutos despenalizadores inseridos no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei nº 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Criminais no âmbito dos Estados, cumprindo a determinação constante do art. 98 da Constituição da República, que assim dispõe:
Art. 98 – A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau;
A transação penal, em linhas gerais, consiste na proposta por parte do Ministério Público de uma pena não privativa de liberdade ao agente indicado como suposto autor de infração penal de menor potencial ofensivo, assim considerada aquela cuja pena máxima não exceda a 2 (dois) anos. Sobre o assunto, assim dispõe o artigo 61 da Lei nº 9.099/95 consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa. (Redação dada pela Lei nº 11.313, de 2006)
Se aceita pelo suposto autor do fato, a transação é homologada pelo juiz e o processo penal não é deflagrado. É essa a previsão do art. 76 da referida Lei:
havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.(…) § 3º Aceita a proposta pelo autor da infração e seu defensor, será submetida à apreciação do Juiz. § 4º Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da infração, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos.
O sursis processual, também de iniciativa do Ministério Público, consiste na proposta de suspensão condicional do processo ao acusado da prática de crime cuja pena mínima não exceda a 1 (um) ano. Sobre o sursis processual, dispõe o artigo 89 da Lei nº 9.099/95:
nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal).
A proposta é feita por ocasião do oferecimento da denúncia. Se aceita pelo acusado, o processo é suspenso por 2 (dois) a 4 (quatro) anos e, após o cumprimento das condições previstas no § 1º do art. 89, é declarada a extinção da punibilidade do agente (§ 5º). Assim dispõe a mencionada Lei:
- 1º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do Juiz, este, recebendo a denúncia, poderá suspender o processo, submetendo o acusado a período de prova, sob as seguintes condições: I – reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo; II – proibição de freqüentar determinados lugares; III – proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz; IV – comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades.
(…)
- 5º Expirado o prazo sem revogação, o Juiz declarará extinta a punibilidade.
As propostas de transação penal e de sursis processual, de acordo com a Lei nº 9.099/95, estão inseridas nas atribuições do Ministério Público, o que permite inferir que a atuação ministerial, nesse caso, é discricionária.
No entanto, há quem defenda que ambos os institutos configuram direito subjetivo do acusado. Para essa corrente, preenchidos os requisitos legais, aquela proposta se torna obrigatória e sua inobservância poderia ser suprida pelo juiz, de ofício (nesse sentido: GRINOVER, Ada Pellegrini Grinover. Juizados Especiais Criminais – Comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 210) ou mediante provocação do interessado (nesse sentido: GOMES, Luiz Flávio. Suspensão Condicional do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 169; e BITENCOURT, Cezar Roberto. Juizados Especiais Criminais e Alternativas à Pena de Prisão. Porto Alegre: 1995, p. 118).
Posição interessante sobre a proposta de sursis processual adotou o Supremo Tribunal Federal, revelando que incumbe ao Ministério Público a palavra final sobre o assunto, mesmo quando o magistrado discorda de seu posicionamento. É o que se depreende do enunciado da Súmula nº 696, in verbis:
Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o Promotor de Justiça a propô-la, o Juiz, dissentindo, remeterá a questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal.
No âmbito da Justiça Militar sempre prevaleceu o entendimento contrário à adoção dos dispositivos da Lei nº 9.099/95 aos crimes militares, muito embora o Supremo Tribunal Federal, antes da publicação da Lei nº 9.839/99[1], reconhecesse a possibilidade de incidência daqueles institutos despenalizadores nos feitos da Justiça Militar, inclusive abrangendo os crimes propriamente militares, in verbis:
PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. MILITAR. HOMICÍDIO CULPOSO. CPM, ART. 206. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO: LEI 9.099/95, ART. 89. I. – Aplica-se ao processo militar o art. 89 da Lei 9.099/95, que prevê a suspensão condicional do processo (ou sursis processual). Precedentes: RHC 74.547-SP, Rel. Min. Octavio Gallotti, “DJ” 20/05/97; HC 75.706-AM, Min. Maurício Corrêa, “DJ” 19/12/97. II. – HC deferido (Habeas Corpus nº 77.037/AM, Relator Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, 16/06/1998. DJ de 14/08/1998)
A posição do STM ganhou força a partir da publicação da Lei nº 9.389/99, que acrescentou o artigo 90-A à Lei nº 9.099/95, determinado a vedação da incidência desta Lei aos crimes militares, nos seguintes termos: as disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar.
Como o mencionado art. 90-A não excepciona o crime militar praticado por civis, o STM firmou o posicionamento segundo o qual aquela determinação legal obsta, de forma genérica, a aplicação dos institutos da transação penal e do “sursis” processual no âmbito da Justiça Militar da União, independentemente da situação jurídica do agente (militar ou civil) e da natureza do crime praticado (propriamente militar ou impropriamente militar).
A problemática envolvendo o princípio da isonomia em relação aos aspectos da Lei nº 9.099/95 já foi objeto de calorosos debates entre os operadores do Direito, e guarda relação com os exemplos acima citados, o que culminou em outra alteração daquela Lei. Isso porque a redação original do art. 61 estabelecia que as infrações de menor potencial fossem assim consideradas quando a pena máxima não excedia a 1 (um ano), in verbis:
Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial.
Por ocasião da criação dos Juizados Especiais Federais, a Lei nº 10.259/01 estabeleceu o seguinte conceito para as infrações de menor potencial ofensivo no âmbito da justiça federal:
Art. 2º Compete ao Juizado Especial Federal Criminal processar e julgar os feitos de competência da Justiça Federal relativos às infrações de menor potencial ofensivo.
Parágrafo único. Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa.
A partir de 2001, portanto, o ordenamento jurídico passou a conviver com dois conceitos de infração de menor potencial: aquele do artigo 61 da Lei nº 9.099/95, para as infrações penais com pena máxima até 1 (um) ano; e aquele do artigo 2º da Lei nº 10.259/01, para as infrações penais com pena máxima até 2 (dois) anos. Com efeito, para o agente que praticava crime de competência da justiça comum, o alcance da norma era menor, ao passo que o agente que cometia crime de competência da justiça federal tinha mais possibilidade de ser contemplado pelos benefícios penais.
O problema, nesse caso, residia na distinção de tratamento prevista no art. 2º da Lei nº 10.259/01, ocasionando algumas aberrações jurídicas, considerando que estabeleceu uma definição legal diversa daquela já sedimentada na jurisprudência e na doutrina acerca do conceito de infração de menor potencial ofensivo.
Exemplificando: um desacato praticado contra um policial civil sujeitava o agente à prisão em flagrante sem direito ao benefício da transação penal, ao passo que o desacato contra um policial federal gerava o simples registro de um termo circunstanciado, com dispensa do flagrante delito e com a possibilidade do benefício da transação penal.
À época, antecipou-se a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao reconhecer, por unanimidade, que deveria ser ampliado o conceito de infração de menor potencial ofensivo no âmbito da Justiça Estadual, em isonomia às regras estabelecidas para os Juizados Criminais Federais, in verbis:
PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 16 DA LEI DE TÓXICOS. INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL LESIVO. TRANSAÇÃO PENAL. LEI Nº10.259/01 E LEI Nº 9.099/95. I – Com o advento da Lei nº 10.259/2001, que instituiu os Juizados Especiais Criminais na Justiça Federal, por meio de seu art. 2º, parágrafo único, ampliou-se o rol dos delitos de menor potencial ofensivo, por via da elevação da pena máxima abstratamente cominada ao delito. II – Desse modo, devem ser considerados delitos de menor potencial ofensivo, para efeito do art. 61 da Lei n. 9.099/95, aqueles a que a lei comine, no máximo, pena detentiva não superior a dois anos, ou multa, sem exceção. Ordem concedida[2].
Com o tempo, a jurisprudência foi se consolidando no sentido de reconhecer que o novo conceito de infração de menor potencial ofensivo (infração penal com pena máxima até dois anos) deveria ter incidência também no âmbito dos juizados estaduais, com fundamento nos princípios da igualdade e da proporcionalidade.
Assim, chegou-se à conclusão que a esfera jurisdicional não poderia servir de critério determinante para a incidência dos institutos despenalizadores. O discrimen, nesse caso, deve levar em conta a situação do agente e não a competência para o seu julgamento (justiça federal ou estadual).
A doutrina também apresentou suas críticas. Diante da evidente contradição legislativa, destaca-se o oportuno registro de LUIZ FLÁVIO GOMES:
Não se pode admitir o disparate de um desacato contra policial federal ser infração de menor potencial ofensivo (com todas as medidas despenalizadoras respectivas) e a mesma conduta praticada contra um policial militar não o ser. Não existe diferença valorativa dos bens jurídicos envolvidos. O valor do bem e a intensidade do ataque é a mesma. Fatos iguais, tratamento isonômico. (GOMES, Luiz Flávio. Lei dos Juizados Especiais Federais (10.259/2001): Aspectos Criminais (Wunderlich, Alexandre. org. Escritos de Direito e Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 223/235).
Interessante também as observações de GERALDO PRADO, quando aborda a questão do réu que goza do foro por prerrogativa de função e, por essa razão, não pode ser julgado no âmbito do Juizado Especial Criminal, in verbis:
Se o réu gozar de foro por prerrogativa de função e, portanto, tiver de ser processado e julgado originariamente por um tribunal, neste tribunal terão de ser aplicadas as “vantagens” assim concebidas, no caso a conciliação civil com efeitos penais, a transação penal e a suspensão condicional do processo. (PRADO, Geraldo. Elementos para uma Análise Crítica da Transação Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 132)
É certo que o princípio da individualização tem a finalidade de tornar individual uma situação genérica, no intuito de distinguir alguém dentro de um contexto. Nesse sentido as lições de EDGAR MAGALHÃES NORONHA:
O julgador não se pode limitar à apreciação exclusiva do caso, mas tem de considerar também a pessoa do criminoso, para individualizar a pena. (…) A pena não tem mais em vista somente o delito. Ao lado da apreciação dos aspectos objetivos que ele apresenta, há de o Juiz considerar a pessoa de quem praticou, suas qualidades e defeitos, fazendo, em suma, estudo de sua personalidade sem olvidar sobretudo a possibilidade de tornar a delinqüir, ou a periculosidade (NORONHA, Edgar Magalhães. Direito Penal: parte geral. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 250).
No entanto, permitir tratamento distinto para situações muito semelhantes configura verdadeira agressão à isonomia constitucional.
Por todas essas razões é que foi publicada a Lei nº 11.313/06, estabelecendo um conceito único para as infrações penais de menor potencial ofensivo, findaram-se aquelas discussões. A nova redação do art. 61 da Lei nº 9.099/95 assim passou a dispor: consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.
[1] A Lei nº 9.839/99 incluiu o art. 90-A na Lei nº 9.099/95, com os seguintes termos: as disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar.
[2] Habeas Corpus nº 25195/SP. Relator Min Felix Fischer, 5ª Turma, Julgamento em 27/05/2003, DJ de 30/06/2003, p. 274
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Marcelo Ferreira – Mestre em Direito Público, Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Autor da obra Segurança Pública e Prisão Preventiva no Estado Democrático de Direito (Editora Lumen Juris). Assessor de Ministro do Superior Tribunal Militar. Professor de Direito Penal e Processo Penal do Centro Universitário do Distrito Federal (UDF), da UNIEURO e da
pós-graduação do UniCEUB. Coordenador da Equipe Exame (cursos presenciais de prática penal para OAB). No Rio de Janeiro, além de professor universitário e de cursos preparatórios para concursos, atuou como presidente e membro de várias bancas de concurso público, em especial, os concursos para os cargos de Delegado de Polícia do Estado do Rio de Janeiro e de Oficial integrante do Sistema de Assessoria Jurídica Consultiva da Marinha.
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