Por: Projeto Exame de Ordem | Cursos Online
1. Introdução
O ordenamento jurídico se legitima a partir da capacidade que possui de bem regular os fatos da vida e quando demonstra aptidão de constantemente evoluir para responder às demandas da sociedade.
Nos últimos anos, as relações sociais de um mundo em constante transformação, por certo, convidam o Direito de Família a transformar-se, a reescrever-se, para que as mais novas situações recebam regulamentação adequada.
Na verdade, antes mesmo da nova codificação civil de 2002, em meados da década de oitenta, o avanço das relações sociais mostrou-se tão evidente que o monopólio do casamento para a constituição da família, assim como a alegada inferioridade da mulher frente ao marido, foram incapazes de se sustentar, impondo-se a realidade à ficção jurídica.
O novo perfil da sociedade era, então, deveras contrastante, quando comparado ao ordenamento até então vigente, exigindo-se a realização de uma verdadeira revolução normativa que reconhecesse expressamente outros arranjos familiares, rompendo-se com a tradição secular em que o casamento, civil ou religioso, era o único instrumento vocacionado à formação da entidade familiar.
Avançando um pouco mais, em 1988, inaugurou-se nova fase no direito de família, agora fundada na adoção de explícito polimorfismo familiar, em que arranjos multifacetados passam a ser legitimados a constituir núcleo de conviventes, apto a receberem, todos eles, a “especial proteção do Estado”, antes conferida unicamente à família instituída a partir do casamento.
Nesse ponto, imprescindível a referência ao paradigmático art. 226 da Constituição Federal de 1988, que, de maneira eloquente, abandona de vez a antiga fórmula – consagrada em todos os demais diplomas anteriores -, de vincular inexoravelmente a família ao casamento, estabelecendo em seu caput que, como “base da sociedade, tem especial proteção do Estado”, sem ressalvas quanto à forma de sua constituição.
A nova sistemática anunciou, assim, o rompimento expresso com o paradigma constitucional superado, porque mais importante que a forma pela qual a família é edificada, vale mais a maneira pela qual é protegida, porquanto por trás dessa “proteção especial” reside a dignidade da pessoa humana, alçada a fundamento da República (art. 1º, inciso III, da CF/88).
Ao instrumentalizar a dignidade humana, “a família passa a servir como um verdadeiro elemento de afirmação da cidadania”, de modo que todas as pessoas estão resguardadas por mandamento constitucional, no dizer elegante de Farias e Rosenvald.
De fato, a CF, redigida sob viés progressista, democrático e garantista por excelência, cumpre com o papel de possibilitar a sujeição das normas infraconstitucionais – mesmo as anteriores à vigência da Carta Magna –, às próprias demandas de determinado contexto social, uma vez que o Direito não se perpetua e deve mudar de acordo com a realidade e as perspectivas da sociedade.
Nesse passo, o CC de 2002 ampliou consideravelmente seu campo de proteção, especialmente quando comparado a diplomas legais pretéritos. O mote de significativa mudança foi, sem sombra de dúvidas, o destacamento de valores como a dignidade, a igualdade de tratamento perante a lei e o direito de filiação, gradualmente reconhecidos como os mais caros à pessoa humana.
Diante do numeroso plexo de temas postos ao exame do STF e do STJ, envolvendo o direito de família, a proposta desse artigo é debater, particularmente, algumas questões contemporâneas, não pela importância que, porventura, precederia a outras, mas pela possibilidade de abordá-las com conforto, sem cansar o leitor, e que foram objeto de recentes julgamentos no Supremo Tribunal e no STJ.
2. A coisa julgada nas ações de investigação de paternidade, o julgamento do RE 363.889/DF (STF) e seus desdobramentos no STJ
2.1. Evolução do direito de filiação no Brasil
No direito brasileiro, inegável reconhecer a imensa evolução no tratamento conferido pelo legislador acerca do direito de filiação, ao longo dos tempos.
O art. 337 do Código de 1916 afirmava que “são legítimos os filhos concebidos na constância do casamento”, preconizando, a seguir, no art. 358: “os filhos incestuosos e os adulterinos não podem ser reconhecidos”.
Nesse sentido, o esclarecedor magistério de Gustavo Tepedino:
A hostilidade do legislador pré-constituinte às interferências exógenas na estrutura familiar e a escancarada proteção do vínculo conjugal e da coesão formal da família, ainda que em detrimento da realização pessoal de seus integrantes – particularmente no que se refere à mulher e aos filhos, inteiramente subjugados à figura do cônjuge-varão – justificava-se em benefício da paz doméstica. Por maioria de razão, a proteção dos filhos extraconjugais nunca poderia afetar a estrutura familiar, sendo compreensível, em tal perspectiva, a aversão do código civil à concubina. O sacrifício individual, em todas essas hipóteses, era largamente compensado, na ótica do sistema, pela preservação da célula mater da sociedade, instituição essencial à ordem pública e modelada sob o paradigma patriarcal. (A disciplina civil-constitucional das relações familiares. In. A nova família. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, pp. 49-50).
Os filhos havidos fora do casamento acabavam, assim, por sofrer as maiores consequências dos atos praticados pelos seus pais.
É por isso que o § 6º do inciso VII do art. 227 da CF/88 veio estabelecer que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
O que antes era contemplado como instrumento de manutenção da “paz matrimonial” – vedação ao reconhecimento de filhos “adulterinos” ou “incestuosos” –, recebeu explícita glosa pelo constituinte originário, que igualou em direitos todos os filhos, havidos ou não do casamento.
Por sua vez, preceitua o art. 1.596 do atual CC: “Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
O art. 20 do Estatuto da Criança e do Adolescente – lei 8.068/90 – normatiza: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Já o art. 27 desvincula o conceito de filiação ao modo em que a família é constituída, assegurando que “o reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça”.
Destarte, o direito de filiação abrange o direito à própria vida, à identidade, ao conhecimento das origens do ser humano.
A relação que se estabelece entre pais e seus descendentes traz, na maior parte das vezes, consequências indeléveis na vida do indivíduo, afetando até mesmo a própria trajetória a ser por este trilhada.
Desse modo, inevitável que o tema relativo à investigação de paternidade também tenha sido objeto de grandes discussões e evoluções na doutrina e jurisprudência.
É bem por isso que as ações de investigação de paternidade buscam, ao mínimo, regular as responsabilidades decorrentes da procriação, exigindo a paternidade responsável, porquanto o ideal é que fossem também amados. O filho não pode ser punido pelos atos dos pais, mormente tendo em vista que a origem genética é fundamental para o desenvolvimento pleno do ser humano.
Nesta seara, o advento do exame de DNA revolucionou as ações de investigação, viabilizando a verdade real sobre a paternidade.
Por sua vez, a coisa julgada, decorrente do princípio da segurança jurídica, estava prevista no art. 467 do CPC/73, segundo o qual “denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”.
O artigo 499 do novo CPC não altera esta ideia.
Humberto Theodoro Jr. esclarece:
Ampla corrente doutrinária ensinava outrora que o principal efeito da sentença era a formação da coisa julgada. Para o Código de 1973, no entanto, o efeito principal da sentença, no plano do processo de conhecimento, é apenas “esgotar o ofício do juiz e acabar a função jurisdicional” (art. 463), como adverte Ada Pellegrini Grinover.
A res iudicata, por sua vez, apresenta-se como uma qualidade da sentença, assumida em determinado momento processual. Não é efeito da sentença, mas a qualidade dela representada pela “imutabilidade” do julgado e de seus efeitos, depois que não seja mais possível impugná-los por meio de recurso (Curso de Direito Processual Civil, v. I. 55ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 576).
Diante deste quadro, a doutrina preconiza que a possibilidade de relativização da coisa julgada deve ser avaliada com cautela pelo julgador. Isso porque propugna a abalizada doutrina que, por decorrência de fatores de interesse público, notadamente a segurança das relações jurídicas, a racionalidade, estabilidade e prestígio da função jurisdicional – mesmo em face de eventuais decisões contaminadas por erro, em regra – há mais nocividade jurídico-social ocasionada pela insegurança geral oriunda da relativização da coisa julgada, visto que o Estado Democrático de Direito, necessariamente, deve conferir proteção aos princípios da “segurança jurídica” e “proteção da confiança”.
No entanto, ainda que essa matéria venha sofrendo mitigação no âmbito do direito de filiação, vale o registro de que, como bem lembrado no voto do ministro Dias Toffoli a seguir esmiuçado, houve projetos legislativos com o intuito de afastar a coisa julgada em ações de investigação de paternidade sem a realização do exame de DNA, tanto no Senado Federal como na Câmara dos Deputados, e que não obtiveram êxito (PL 116/01 e 6.960/02).
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