Uma noite na vida de um Delegado de Polícia

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Por Eujecio Coutrim Lima Filho
Fonte: canalcienciascriminais.com.br
Noite de sábado, 09 de julho de 2016. Com certeza existe um Delegado de Polícia de plantão respondendo pelas atribuições da Polícia Judiciária. Mas, o que faz um Delegado de Polícia, no exercício de sua atividade policial, durante a noite?
O art. 144, §4o, da Constituição Federal conferiu ao Delegado de Polícia de carreira as funções de polícia judiciária (competindo os atos de representações e de apoio ao Judiciário) e de polícia investigativa (responsável pela colheita de elementos informativos de materialidade e autoria delitiva) na apuração de infrações penais, exceto as militares (LIMA, 2015). Durante o plantão noturno, basicamente, caberá ao Delegado a análise jurídica dos fatos que lhe são apresentados determinando as providências que devem ser adotadas. De tal modo, é possível, após a subsunção do fato exposto à norma jurídica, a lavratura e ratificação de uma prisão em flagrante delito, a instauração de inquérito policial, de diligências preliminares, dentre outras medidas adequadas ao caso.
As primeiras providências investigativas devem ser adotadas ainda no local do crime determinando, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias (art. 6o do CPP). Na colheita dos elementos informativos acerca do fato criminoso, o Delegado de Polícia tem o poder de requisitar perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos (art. 2o, §2o, da Lei 12.830/13). Alguns exames, por influenciarem na decisão de ratificação ou não do flagrante, tem de ser realizados urgentemente como, por exemplo, o laudo de constatação da natureza e quantidade da droga e laudo pericial sobre a eficiência da arma de fogo/munição.
Ponto delicado do plantão noturno envolve o flagrante de ato infracional (conduta, praticada por adolescente, descrita como crime ou contravenção penal) cometido mediante violência ou grave ameaça a pessoa. Infelizmente, devido a falta de efetivação do Estatuto da Criança e do Adolescente, não é comum a existência de local apropriado para cumprimento de eventual internação do adolescente. Consequentemente, devido à proibição legal do adolescente cumprir medida sócio-educativa em estabelecimento prisional, somado a falta de instalações apropriadas em repartição policial, onde a lei prevê a hipótese do adolescente ficar custodiado pelo prazo máximo de cinco dias, tem-se a dificuldade do Delegado de Polícia em realizar gestões, durante a madrugada, no sentido de conseguir vaga em local adequado para que o menor seja transferido.
Portanto, em síntese, entre outras atribuições constitucionais, compete ao Delegado de Polícia a primeira análise jurídica do fato delituoso. Sabemos da faculdade que tem qualquer cidadão e do dever que tem a polícia de prender em flagrante o sujeito autor do delito (art. 301 do CPP). Essa primeira fase da prisão em flagrante constitui tão somente a captura e condução imediata do autor do delito, ao Delegado de Polícia, objetivando cessar a agressão com a finalidade de manter a paz e a tranquilidade social (LIMA, 2015). Em razão das peculiaridades que envolvem a prisão em flagrante tão frequente durante a noite, especialmente pela potencialidade em restringir direitos fundamentais, este ponto merece algumas observações que serão feitas na sequência.
Quando se diz que o Delegado de Polícia é o primeiro garantidor de direitos fundamentais resta claro que, como membro de carreira jurídica de Estado, lhe cabe a importante missão de proceder à análise jurídica do fato que lhe é apresentado. Assim, como desdobramento da fase de captura e condução do agente, o Delegado procederá à lavratura do Auto de Prisão em Flagrante Delito, ressaltando as hipóteses legais em que o auto pode ser lavrado pela autoridade judiciária ou mesmo por um parlamentar (NUCCI, 2014). No caso em que o crime não versar ação pública incondicionada é necessário que haja representação da vítima ou de seu representante legal.
Igualmente é possível que, pelas peculiaridades envolvendo, em regra, a pena máxima abstratamente cominada ao caso, após a fase de captura e apresentação do preso, o Delegado de Polícia, no exercício de sua função jurídica, enquadre o fato típico em uma norma legal relativa a crime de menor potencial ofensivo (contravenções e crimes cuja pena máxima não seja superior a dois anos) cabendo, então, a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência e não os demais passos inerentes à prisão em flagrante.
Após a apreciação do fato, presentes os elementos para lavratura do flagrante, o Delegado de Polícia realizará a oitiva do condutor, das testemunhas, da vítima (quando possível) e o interrogatório do acusado (art. 304 do CPP). O exame dessas provas subjetivas (e das objetivas existentes) embasará a decisão do Delegado de ratificar ou não a prisão em flagrante procedendo-se às demais formalidades legais como a comunicação ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada (art. 306 do CPP). Entretanto, é possível que o caso apresentado não contenha os elementos legais à ratificação da prisão em flagrante. Assim, ainda no plantão noturno, o Delegado, a depender do caso concreto, poderá instaurar o respectivo inquérito policial por meio de portaria ou determinar diligências preliminares visando colher elementos que fundamentem a instauração do procedimento investigativo.
Seja no plantão noturno ou no exercício de suas atribuições do dia a dia, frequentemente o Delegado de Polícia estará diante de situações em que direitos fundamentais aparecerão em conflito. Não raramente a liberdade do cidadão terá que ceder espaço a outros direitos tão caros ou até mais importantes ao indivíduo e à coletividade. É plenamente possível, sem se afastar da luz constitucional, a produção de uma investigação de qualidade entregando à Justiça e à sociedade, além de objetos e suspeitos de crime, relevantes dados acerca de autoria e de materialidade delitiva.
Nenhuma liberdade individual é absoluta. Existem mecanismos constitucionais de restrição de direitos fundamentais na luta pela preservação de outros direitos. O agente criminoso deve ser rigorosamente punido nos termos da lei. Entre outros fatores, a investigação criminal tem a missão de contribuir para que essa punição ocorra. Contudo, essas restrições de direitos fundamentais devem desenrolar no exato limite legal e constitucional, sob pena de se ter um ato arbitrário e ilegal, colocando em risco não só os direitos da pessoa humana como também todo trabalho sério de investigação. Não podemos deixar de discutir a importância de uma releitura do processo penal a partir dos preceitos constitucionais democráticos intimamente ligados à noção de dignidade, inclusive na fase investigativa, resultando na relevância de uma investigação preliminar eficiente e não arbitrária como direito fundamental (LIMA FILHO, 2016).
Em um mundo ideal, no campo do “dever ser” buscado por todos nós operadores do direito, os desdobramentos da condução em flagrante do sujeito indicado como autor do delito deveriam ocorrer no estrito limite constitucional, basicamente como sintetizado nesse texto, preservando ao máximo direitos fundamentais (ao máximo, pois não são absolutos) e as atribuições das instituições democraticamente fixadas. É importante destacar que normas restritivas de direitos não permitem interpretação abrangente. Contudo, no mundo real, muitas vezes, a violação de direitos pode aparecer como regra. Liberdades individuais constantemente são violadas tanto por homens quanto por leis. Aliás, nossa própria história recente mostra essa violação institucionalizada pelo Estado. Não é por isso que o Delegado de Polícia deve afastar de seu mister de garantidor da justiça e aplicador de direitos fundamentais. Seja de noite ou de dia, a garantia de segurança pública e de eficiente investigação criminal não passa pela violação irresponsável de direitos fundamentais que, a bem da verdade, dispensam a própria positivação, precedem a própria ordem jurídica, são inatos, são direitos do homem que, ao nascer vivo, tem a liberdade como regra.
A madrugada em uma Delegacia de Polícia também testemunha mulheres vítimas de todas as espécies de agressões e ameaças no contexto de violência familiar. Mulheres que procuram por socorro e são prontamente atendidas pela Autoridade Policial que, infelizmente, ainda encontra limitação legal em concretizar medidas urgentes aptas a cessar as agressões. Atualmente, o Delegado de Polícia deve remeter, no prazo de 48 horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência (art. 12, III, da Lei n. 11.340/06). Sobre o assunto, importante observar que tramita no Senado Federal o PLC n. 07/2016 prevendo, entre outras medidas, que a vítima de violência doméstica familiar tenha efetiva proteção imediata. Permite, sem retirar a análise essencial que deve ser feita pelo Poder Judiciário, que o Delegado de Polícia expeça medidas protetivas de urgência na defesa dessas vítimas que não podem esperar até o dia amanhecer.
Sobre as atribuições exercidas pelo Delegado de Polícia durante a noite, o planejamento, a organização e a execução de operações policiais merecem destaque. No exercício da função de polícia judiciária, constitucionalmente atribuída para investigação de crime comum (art. 144, §4o, da CF) o Delegado de Polícia é dotado de capacidade postulatória imprópria possuindo a prerrogativa de provocar diretamente o Poder Judiciário nas situações vinculadas ao exercício de suas atribuições. Portanto, após trabalho de investigação, sempre realizado em equipe, com a contribuição técnica de investigadores, escrivães e demais policiais civis, o Delegado de Polícia tem a atribuição de recomendar, por meio de representação, ao Poder Judiciário “os fatos e fundamentos que demonstram e justificam a necessidade da decretação de uma medida cautelar ou a adoção de outra medida de polícia judiciária indispensável à solução do caso investigado” (SANNINI NETO, 2016).
Assim, caso a representação seja acolhida pelo magistrado, após a expedição do mandado (prisão, busca e apreensão, interceptação telefônica etc), cabe ao Delegado de Polícia organizar o cumprimento do mesmo. Comumente, a complexidade da operação exigirá um trabalho estratégico da Polícia Judiciária. Não raramente, o Delegado de Polícia e sua equipe entram a madrugada planejando o trabalho que, sem violar o direito fundamental da inviolabilidade domiciliar, ao primeiro raio do sol, visa o cumprimento de ordens judiciais, garantindo sempre que possível o sucesso da medida, apreendendo objetos essenciais à investigação e tirando de circulação criminosos que, em liberdade, comprometiam a paz social e/ou o próprio processo penal.


REFERÊNCIAS
LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. 3. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2015.
LIMA FILHO, Eujecio Coutrim. Defesa técnica e democratização do inquérito policial. Disponível aqui.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
SANNINI NETO, Francisco. O Delegado de Polícia possui capacidade postulatória?. Disponível aqui.



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