Voto de qualidade não é duplo voto do presidente das Turmas do Carf e da CSRF

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Por Roberto Duque Estrada

Na data da publicação dessa coluna já terá passado um mês da morte do professor Alberto Xavier. Também terá passado o dia de Nossa Senhora Aparecida, o dia do descobrimento da América, o dia das crianças e o aniversário do meu filho caçula, Frederico. Nesses 30 dias muito se passou. Mas a saudade do meu mestre, amigo de 25 anos, continuará me acompanhando.
Duas semanas após seu falecimento parti para a Espanha, meio anestesiado. Poucos dias antes da partida, fomos agraciados com uma bela homenagem prestada na abertura do XX Congresso da ABRADT pelo amigo colega de coluna Igor Mauler Santiago, que tão bem descreveu sua personalidade:
“Alberto era impaciente, enciclopédico, de uma lógica férrea – talvez o mais cartesiano dos juristas brasileiros, como muitas vezes ouvi do Professor Sacha Calmon.”
Minha viagem para a Espanha já estava marcada há alguns meses. No dia 25 de setembro se iniciaria, em Madri, o 70º Congresso anual da International Fiscal Association (IFA), a mais importante organização internacional dedicada aos estudos tributários. Em 2017, o congresso da IFA será realizado pela segunda vez – a primeira foi em 1989 – no Brasil, mais precisamente no Rio de Janeiro[1].
Honrado por fazer parte do comitê organizador a convite dos amigos Gustavo Brigagão, Marcos Catão e André Oliveira, me juntei neste ano ao time do Local Organizing Comittee (LOC) complementado pelos colegas Carlos Adolfo Teixeira Duarte e Flavia Cavalcanti. Em Madri tínhamos muito a fazer pelo congresso do Rio e como missão dada deve ser missão cumprida, arrumei as malas e parti.
Antes, porém, de Madri, devotei alguns dias à Andaluzia. Queria conhecer Sevilha, Granada e Córdoba, as joias mouriscas da Espanha, que guardam a memória de tempos de tolerância, de cultura e de equilíbrio das “Três nações” – islâmica, cristã e judaica. Tempos que não existem mais. Tempos tão bem descritos por Alberto no seu primeiro livro de ficção “Al-Gharb1146”[2].
Passado no último ano antes da tomada de Lisboa aos mouros por Afonso Henriques, o livro é uma fantasia do período em que boa parte do Portugal atual era o Gharb al- Andalus, ou simplesmente Al-Gharb (origem do nome Algarve).
Dentre muitas, a maior das emoções foi entrar na mesquita-catedral de Córdoba e ver de perto suas colunas e arcos bicolores que serviram de inspiração para a capa da edição brasileira do livro, edição que tive o privilégio de acompanhar desde o nascedouro, quando seus capítulos eram meros rascunhos escritos à mão, no intervalo de seus pareceres. Nesses momentos aparecia um culto escritor, capaz de dominar a fundo aquilo que lhe interessava; mas surgia também um grande humorista, capaz de fazer-nos rir, às gargalhadas, das aventuras de suas personagens, algumas inspiradas em pessoas e fatos reais.
O riso, a ironia, a cultura, as reflexões maduras e sempre sensatas, as boas memórias de Alberto foram recordadas em Madri com amigos do Brasil e de outros países do mundo. Após o jantar de encerramento no Palácio Cibeles e já de posse da bandeira da IFA, entregue ao amigo Gustavo Brigagão, presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro, a representação da IFA no Brasil, rumamos para um last drink no hotel em que estava hospedado o amigo colunista professor Heleno Torres.
Num lindo jardim a céu aberto, três colunistas do Consultor Tributário de corpo presente, e um em nossos corações e mentes, brindaram à memória do amigo Alberto; brindamos ao seu savoir vivre, brindamos às suas lições de direito e de vida.
Mas nessa mesma toada, nos encontros da delegação brasileira em Madri, não poderíamos deixar de refletir, com tristeza e desencanto, sobre os rumos do direito tributário no Brasil e sobre a profunda insegurança que os mesmos têm causado nos empreendedores, nacionais e estrangeiros, como argutamente diagnosticado por Gustavo Brigagão em sua última coluna[3].
Uma das vertentes dessa gravíssima insegurança é a forma como os lançamentos tributários têm sido ferrenhamente mantidos pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), outrora denominado Conselho de Contribuintes.
Mesmo antes da deflagração da operação zelotes, que paralisou as suas atividades no ano de 2015, o Carf vive uma grande crise de identidade e de legitimidade como órgão imparcial e paritário que a lei diz que é, mas que na prática não mais consegue ser.
O exercício da presidência do órgão reiteradamente nos últimos anos por secretários da Receita Federal acabou por impor uma influência fortíssima das diretrizes dos órgãos de lançamento ao órgão de julgamento, prejudicando sua imparcialidade orgânica de 2º grau ou não hierárquica, eis que o Carf (tal como sucedia com os Conselhos de Contribuintes) não tem legalmente vínculo de dependência hierárquica com a Secretaria da Receita Federal, ao contrário do que sucede com as Delegacias de Julgamento, órgãos integrados na mesma estrutura hierárquica que a dos órgãos de lançamento cuja atividade visam a controlar (imparcialidade orgânica de 1º grau ou hierárquica).[4]
É certo que o Carf está subordinado ao Ministério da Fazenda, mas se trata de uma subordinação organizacional ou burocrática, mas não hierárquica, eis que o ministro da Fazenda não detém no que concerne ao núcleo essencial da competência judicante tanto do conselho quanto da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), os atributos essenciais do poder hierárquico que são o poder de direção – faculdade de dar ordens através de comandos individuais e concretos ou gerais e abstratos e o poder de revisão –faculdade de o superior revogar ou suspender atos praticados pelo subalterno.[5]
Para imprimir maior segurança e transmitir confiança aos particulares, Carf e a CSRF deveriam reforçar uma das características essenciais de órgãos judicantes da Administração que são, que é a de “não deverem obediência a nenhum outro órgão ou entidade, não incorrendo em desobediência se tomarem decisões diversas das desejadas ou pretensamente impostas de fora, de tal modo que os titulares desses órgãos não podem ser responsabilizados pelo fato de tomarem deliberações contrárias a quaisquer ordens ou diretrizes exteriores”[6].
O excessivo uso dos votos de qualidade em desfavor dos contribuintes, fenômeno que vem sendo reiteradamente discutido nas colunas doConsultor Tributário[7], acabou por conduzir à judicialização das decisões do Carf e da CSRF tomadas com base nessa modalidade de desempate. Tem-se notícia de recente decisão proferida pelo Juízo da 22ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, no último dia 5 de outubro,que concedeu a segurança para anular decisão da CSRF proferida pelo voto de qualidade[8]. A sentença traz interessante observação sobre o que se deve entender pelo “voto de qualidade”, senão vejamos:
“Na realidade, a previsão legal de voto de qualidade em caso de empate não significa que o Presidente do órgão julgador votará duas vezes em caso de empate, mas que, ainda não tendo votado o Presidente e tendo ocorrido o empate, deve-se buscar colher seu voto, não sendo aplicável o entendimento do art. 112, II, do CTN, segundo o qual “A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado (….).
Por outro lado, os casos de empate no julgamento em que já tenha sido colhido o voto do Presidente, a aplicação do art. 112, II, do CTN se torna imperativa, restando a controvérsia decidida em favor do contribuinte.
Isso decorre da consideração da formação paritária do CARF. Outra interpretação, conferindo voto duplo ao Presidente do órgão colegiado, beneficiaria a Administração Fazendária [uma vez que a “presidência do CARF será exercida por conselheiro representante da Fazenda Nacional” (art. 11 do Regimento Interno do CARF)], ferindo também o princípio da isonomia; e contraria frontalmente a determinação expressa no art. 112, inciso II, do CTN, comando que tem como endereço notório a solução de conflitos interpretativos em julgamentos nos quais há dúvida, devendo permear tanto o voto individual do julgador, quanto a decisão coletiva, por ser verdadeira norma-princípio”.
Na visão da sentença – e isso é relevantíssimo – o voto de qualidade não é um duplo voto do Presidente, que não tem o poder de votar duas vezes; mas apenas e tão somente o voto – único, frise-se -, de desempate. Em apoio ao seu entendimento, está o acórdão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que, invocando disposição do CPP, é cristalino no sentido de que “somente se admite voto de qualidade – voto de Minerva ou voto de desempate – nos julgamentos recursais e mandamentais colegiados em que o Presidente do órgão plural não tenha proferido voto quantitativo; em caso contrário, na ocorrência de empate nos votos do julgamento, tem-se como adotada a decisão mais favorável ao acusado” (ROMS 200701653771, Rel. Min. Naploeão Nunes Maia Filho, DJE 01/02/2010) (grifos nossos).
Ou seja, se houver empate, a solução – no âmbito tributário – está dada pelo CTN, com estatura de lei complementar: o lançamento deve ser anulado, pois há de prevalecer a interpretação favorável ao acusado, e não àquela favorável ao Fisco.
Como ensinou o professor Xavier a respeito do tema:
“Na ordem jurídica brasileira não pode duvidar-se da solução a dar ao problema em causa: o respeito pela propriedade privada, consagrado constitucionalmente, e que em matéria tributária se reflete no princípio de uma rígida legalidade, revela só por si que no caso de incerteza sobre a aplicação da lei fiscal são mais fortes as razões de salvaguarda do patrimônio dos particulares do que as que conduzem ao seu sacrifício (in dubio pro libertate; melior est conditio possidentis)”.[9] (grifos nossos)
Note-se que não é sequer necessário legislar ordinariamente sobre o tema, como consta de projeto de lei 6.064/2016, de autoria do deputado Carlos Bezerra (PMDB-MT) que consagra a aplicação da regra do art. 112 do CTN nos casos de empate, mas que abre perigosa brecha ao permitir, nessas hipóteses, o recurso da fazenda ao Poder Judiciário, o que é absolutamente descabido, já que a revisão judicial é privativa de lançamentos mantidos e não de lançamentos anulados, seja por decisões unânimes, majoritárias e – oxalá se consolide o entendimento – empatadas e decididas in dubio contra fiscum.

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Terminado o Congresso passei o fim de semana em Barcelona e, no inspirador museu da Fundação Miró, deparei-me com um quadro intitulado “O sorriso de uma lágrima”. Miró nessa obra fala em “buscar o ruído escondido no silêncio, o movimento na imobilidade, a vida no inanimado, o infinito no finito, as formas no vazio e a mim mesmo no anonimato”.
Cada coisa contém, de algum modo, seu contrário. Nesse dia pude entender a contradição de estar triste e feliz, de aceitar a inevitabilidade da morte e carregar dentro de mim a vida que se foi. Só assim fiz das lágrimas sorriso, da tristeza saudade e voltei para casa.


[1] Para mais informações cfr. http://www.ifa2017rio.com.br/
[2] Edição brasileira: Editora Gryphus, Rio de Janeiro, 2005; Edição portuguesa: Editora Bertrand, Lisboa, 2006.
[4] Cfr. Alberto Xavier, Princípios do Processo Administrativo e Judicial Tributário, 1ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 2005, p. 46.
[5] Cfr. Alberto Xavier, Princípios, cit., p. 47.
[6] Cfr. Alberto Xavier, Princípios, cit., p. 47.
[8] Cfr. processo 1007189-70.2016.4.01.3400
[9] Cfr. Do Lançamento no Direito Tributário Brasileiro, Ed. Forense, 3ª ed., Rio de Janeiro, 2005, p. 159.

 
Fonte: www.conjur.com.br
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