A principal polêmica gerada pela Lei n. 13.774/18, que alterou a Lei de Organização da Justiça Militar da União (Lei n. 8.457/92), está na competência para processar e julgar ex-militares, ou seja, civis que perderam a condição de militar, mas que à época do crime possuíam essa condição.
Em outras letras, o autor, no momento do delito, possuía a condição de militar (da ativa ou inativo) e, no curso da persecução criminal, perde essa condição.
O exemplo mais recorrente é o do militar em prestação do serviço militar inicial que pratica o crime militar e, no curso do processo, é licenciado pela administração militar.
No caso de autores que eram militares à época do delito e que, ulteriormente, por qualquer razão, tenham perdido essa condição, a interpretação deve ser no sentido de que deve haver o início ou o seguimento do processo perante o escabinato.
Caso ainda não tenha havido recebimento da denúncia, ao recebê-la, o Juiz Federal deverá convocar ou sortear o Conselho de Justiça, conforme o caso. Caso já exista processo em curso e, então, ocorra a perda da condição de militar do réu, deverá o processo seguir sob a competência do colegiado.
Não é, entretanto, o que ocorria em grande parte das Auditorias das Circunscrições Judiciárias Militares.
Nos processos já instaurados, por exemplo, por via de Despacho, os Juízes Federais da Justiça Militar estavam dissolvendo (ou deixando de convocar) os Conselhos e seguindo em competência monocrática – em alguns casos, utilizam-se da expressão “avocar” o processo, embora tenham a mesma hierarquia do órgão colegiado, como órgão julgador.
Nestes casos, já ocorria uma primeira afronta à competência. O órgão jurisdicional competente para processar e julgar o caso, a partir do recebimento da denúncia, era o colegiado, o escabinato, cabendo apenas a ele, a partir de então, nos exatos termos do inciso V do art. 28 da Lei nº 8.457/92, “decidir as questões de direito ou de fato suscitadas durante instrução criminal ou julgamento”.
Ainda que se entendesse que a competência para processar e julgar ex-militares seja do juiz federal da Justiça Militar, a decisão pela incompetência do escabinato deveria ser declarada por ele próprio, posto se tratar de questão de direito enfrentada após o recebimento da denúncia.
Em uma frase, parafraseando parecer irretocável do Subprocurador-Geral de Justiça Militar Clauro Roberto de Bortolli, em manifestação nos autos do Recurso em Sentido Estrito nº 103-31.2019.7.00.0000: o Conselho Permanente de Justiça é competente, inclusive, para reconhecer sua incompetência.
Retomando a questão principal, repita-se que cabe ao escabinato processar e julgar ex-militares, desde que ostentassem a condição de militar na época do delito, mesmo diante da nova redação dos arts. 27 e 30 da Lei nº 8.457/92.
Autoriza essa conclusão o fato de a lei processual penal militar – embora por meio da Lei nº 8.457/92, não se pode negar o cunho processual penal militar das disposições em avaliação – adotar um critério penal para definir a competência, atrelando a condição do agente no momento do delito, ao se referir aos incisos I e III do art. 9º do CPM, ainda que se critique a menção ao inciso I, como acima exposto.
Em outros termos, o que importa para fixar a competência monocrática é o instante em que o crime é cometido, encontrando sua subsunção nos citados incisos I ou III. Sendo civil naquele instante, fixa-se a competência monocrática; sendo militar, no mesmo momento, haverá competência do escabinato.
A justificativa de encaminhamento do Projeto que resultou na Lei 13.774/18, evidencia essa preocupação com o momento do delito, sendo prudente repetir o trecho essencial:
Nesse contexto, destaca-se a necessidade do deslocamento da competência do julgamento dos civis, até então submetidos ao escabinato dos Conselhos de Justiça, para o Juiz-Auditor: se por um lado é certo que a Justiça Militar da União não julga somente os crimes dos militares, mas sim os crimes militares definidos em lei, praticados por civis ou militares; de outro, é certo também que os civis não estão sujeitos à hierarquia e à disciplina inerentes às atividades da caserna e, consequentemente, não podem continuar tendo suas condutas julgadas por militares. Assim, passará a julgar os civis que cometerem crime militar.
Teleologicamente interpretando, tem-se que o texto transmite a preocupação com o momento de cometimento do delito (“…julga somente os crimes dos militares, mas sim os crimes militares definidos em lei, praticados por civis ou militares…”) e que houve o cuidado com aquele que nunca esteve atrelado a valores de caserna (“…civis não estão sujeitos à hierarquia e à disciplina inerentes às atividades da caserna…”).
No caso de ex-militares, que chegam a essa condição por qualquer razão, tem-se que a hierarquia e disciplina, no momento do crime, foram efetivamente violadas, ainda que de forma mediata, pelo autor que era militar, situação que não é reparada com a simples perda da condição de militar do autor. No caso de civis, no momento da prática do delito – embora a hierarquia e a disciplina sejam valores constitucionalmente consagrados e, portanto, é um dever de todos assimilá-los e protegê-los –, não estão eles sujeitos aos rigores que envolvem a hierarquia e a disciplina, argamassa que dá solidez aos fundamentos das instituições militares.
Essa interpretação, adicione-se, já está versada, após detido estudo, no âmbito do Ministério Público Militar, notadamente pela Câmara de Coordenação e Revisão que emitiu enunciado sobre o assunto. Trata-se do recente Enunciado nº 19 – CCR/MPM, de 12 de fevereiro de 2019, verbis:
Para aferimento da competência dos Conselhos de Justiça e do Juiz Federal da Justiça Militar, órgão judiciais da 1ª Instância da Justiça Militar da União, nos termos do art. 27 e art. 30 da LOJM (Lei nº 8.457, de 04/09/1992, com a redação dada pela Lei nº 13.774, de 19 de dezembro de 2018) deve ser considerada a condição do agente (civil ou militar), no momento do fato, não alterando esta competência a posterior modificação de tal condição”.
Mas, como se disse no início, a visão não era pacífica, havendo, inclusive, no Poder Judiciário, a compreensão oposta, ou seja, de que, nesses casos, a competência deveria ser monocrática.
Havendo polêmica sobre o tema e partindo-se do pressuposto de que decisões conflitantes poderiam ser lavradas, o Procurador-Geral de Justiça Militar arguiu o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, buscando a fixação, como já se mencionou, a tese pela competência do órgão de julgamento colegiado de primeira instância, quando se tratar de sujeito ativo que, embora civil, fosse militar à época do delito, sendo utilizados alguns dos argumentos acima já postulados.
O incidente (IRDR n. 7000425-51.2019.7.00.0000, Rel. Min. Péricles Aurélio Lima de Queiroz) foi admitido em sessão do Superior Tribunal Militar de 16 de maio de 2019, tendo seu mérito julgado na sessão de 22 de agosto de 2019.
Em primoroso voto do Relator, na sessão de julgamento do mérito, assentou-se, em resumo, que o instrumento (IRDR) é constitucional, adaptando-se às garantias e princípios constitucionais, a exemplo da segurança jurídica, da isonomia e da duração razoável dos processos.
Que os pressupostos do instituto estavam presentes no caso concreto, aliás, como já definido na sessão de data anterior, em que a admissibilidade fora avaliada, ou seja, tratava-se de efetiva repetição de processos, com controvérsia sobre questão unicamente de direito e com risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.
No mérito, o que mais interessa, definiu que a Lei 13.774/18 não visou a modificação da regra para o processamento de ex-militares que cometeram delitos castrenses em atividade, segundo se extrai da Justificativa ao Projeto de Lei 7.683/2014. Ademais, a “interpretação da nova redação do inciso I-B do art. 30 da LOJM, que menciona expressamente os incisos I e III do art. 9º do CPM, e olvida propositadamente o inciso II, que dispõe acerca das situações de crimes praticados somente por militares. Inserção por analogia importaria em ativismo judicial, eis que não manifestada a vontade do legislador ordinário”.
Deve-se adotar o princípio tempus regit actum, “o qual dispõe que a competência deve ser fixada na data do fato, sob pena de possibilitar a criação de juízos de exceção, bem como a escolha do órgão julgador pelo acusado”, isso em obediência à garantia do juiz natural.
Prossegue indicando não haver violação ao “Pacto de São José da Costa Rica ou à jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos”, vez que os parâmetros adotados nesses casos “envolvem civis que cometeram delitos castrenses nessa qualidade e não como integrantes das Forças Armadas”, o que diverge da discussão colocada à Corte.
Assentou, ainda, ser descabida a “analogia ao foro por prerrogativa de função e à remessa dos feitos ao 1º grau de jurisdição após o término do mandato parlamentar”, pois a “condição de militar não se amolda à ideia de cargo eletivo”.
Finda com a assertiva de que o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas é procedente, determinando a adoção da seguinte tese jurídica em toda a Justiça Militar da União: “Compete aos Conselhos Especial e Permanente de Justiça o julgamento de civis que praticaram crimes militares na condição de militares das Forças Armadas”.
Assim, indiscutível no âmbito da Justiça Militar da União, a competência dos Conselhos de Justiça para processar e julgar ex-militares que à época do delito detinham a condição de militares.
Claro que a visão pode ainda ser alterada no Supremo Tribunal Federal, mas esta é a última palavra na Justiça Castrense.
Cícero Robson Coimbra Neves
Promotor de Justiça Militar na Procuradoria de Justiça Militar de Santa Maria/RS. Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Membro colaborador da Comissão de Preservação da Autonomia do Ministério Público (CPAMP) junto ao Conselho Nacional do Ministério Público. Coordenador de Ensino do Ministério Público Militar junto à Escola Superior do Ministério Público da União. Professor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA).