A Ilicitude da Confissão Informal Obtida mediante Coação e o Princípio da Legalidade da Atuação Estatal

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O presente artigo tem por objetivo analisar, sob o ponto de vista jurídico e à luz dos princípios constitucionais e processuais penais, o julgamento do Habeas Corpus nº 915.025/SP, proferido pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no qual se reconheceu a ilicitude de confissão informal obtida sob coação física, bem como de todas as provas dela decorrentes, culminando na absolvição dos acusados.

No caso concreto, o investigado foi abordado por policiais militares em uma rodovia. Nada de ilícito foi encontrado em sua posse. Contudo, após a abordagem, os policiais gravaram um vídeo em que ele confessava, de forma informal, ter escondido 50 porções de cocaína na casa de sua namorada. Com base nessa confissão, a polícia dirigiu-se até a residência, local onde encontrou os entorpecentes.

A confissão informal do investigado foi gravada em vídeo, enquanto ele estava sentado no chão, com as mãos escondidas. Durante o processo, ele relatou ter sido agredido fisicamente pelos policiais, o que lhe causou a fratura de um dedo — lesão esta confirmada por laudo pericial. Apesar disso, o juiz de primeira instância considerou a confissão válida, por entender que o denunciado estava “calmo” no vídeo, afastando a hipótese de coação.

Essa decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça, que também legitimou a entrada dos policiais na residência da namorada do réu. Ocorre que o Superior Tribunal de Justiça, sensível às garantias constitucionais e ao devido processo legal, concedeu a ordem no habeas corpus, reconhecendo a ilicitude da confissão e das provas dela derivadas.

A questão central da decisão do STJ está no reconhecimento de que a ausência de violência visível na gravação não é suficiente para afastar a alegação de coação física e moral, sobretudo diante de um laudo pericial que atesta a fratura em dedo do réu, lesão supostamente causada pela ação policial no momento da abordagem.

O ordenamento jurídico brasileiro adota o princípio da vedação das provas ilícitas, conforme disposto no artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. O Código de Processo Penal, em seu artigo 157, também veda expressamente a utilização de provas obtidas ilicitamente, bem como das que delas derivarem, por efeito da doutrina dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree).

Nesse contexto, a confissão informal de acusado, supostamente obtida mediante agressões físicas, configura prova ilícita por violar frontalmente os direitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da integridade física e psíquica, e do silêncio, além do direito de não autoincriminação (nemo tenetur se detegere), todos assegurados constitucionalmente.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça é pacífica ao afirmar que o ônus de demonstrar a legalidade da atuação estatal é do Estado. No caso em tela, a ausência de gravações completas, a escolha seletiva de registrar apenas parte da abordagem e a existência de laudo pericial atestando lesão física reforçam a tese de que a confissão foi obtida mediante métodos coercitivos.

A gravação parcial da diligência policial revela a quebra da cadeia de custódia da prova e levanta sérias dúvidas quanto à autenticidade e integridade da confissão. Em tempos nos quais muitos Estados contam com câmeras corporais como instrumentos de transparência, a ausência injustificada de registros audiovisuais contínuos torna-se um indício relevante de irregularidade.

O artigo 6º, inciso III, do Código de Processo Penal determina que o preso deve ser informado de seus direitos, inclusive o de permanecer calado. Esse direito também é previsto no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 14.3.g) e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8.2.g), que têm status supralegal, segundo entendimento do STF (RE 466.343/SP).

A tortura e o tratamento cruel, desumano ou degradante são expressamente proibidos tanto pela Constituição Federal (art. 5º, III), quanto pela Lei nº 9.455/1997, que tipifica o crime de tortura. A obtenção de prova mediante tal expediente macula o processo desde sua origem, exigindo a decretação de nulidade absoluta.

O princípio da proporcionalidade, ao ser aplicado em matéria probatória, exige que o meio de obtenção da prova não viole direitos fundamentais. A utilização de violência para extrair confissão afronta o núcleo essencial dos direitos humanos e compromete a integridade do processo penal como instrumento de justiça.

Importante destacar que o devido processo legal (art. 5º, LIV, CF) compreende o direito de ser julgado com base em provas legítimas e em conformidade com o contraditório e a ampla defesa. Quando o próprio processo se alimenta de elementos viciados, não há como se falar em justiça penal.

Além da ilicitude da confissão, o STJ reconheceu a ilicitude das provas obtidas por derivação, no caso, a busca na residência da namorada do réu. A entrada na casa da namorada do acusado só ocorreu em virtude da confissão ilícita, sem autorização judicial e sem fundadas razões prévias.

A entrada forçada em domicílio sem autorização judicial somente é admitida em hipóteses excepcionais, como flagrante delito, nos termos do artigo 5º, inciso XI, da Constituição. Quando a informação que justifica o ingresso é baseada em prova ilícita, toda a diligência subsequente também se contamina.

Assim, a atuação policial baseada em um vídeo que não retrata a integralidade dos fatos, colhido em circunstâncias suspeitas e após alegações de tortura física, compromete o valor jurídico da confissão e de qualquer diligência dela decorrente. A ilegalidade da prova primária irradia seus efeitos sobre todas as demais.

O julgado do STJ representa importante afirmação da função contramajoritária do Poder Judiciário e da centralidade dos direitos fundamentais na persecução penal. Ao proteger o indivíduo contra abusos estatais, reafirma-se o compromisso com um processo penal democrático e garantista.

A decisão também impõe ao Estado um dever de diligência e transparência na coleta de provas, especialmente em contextos de vulnerabilidade do acusado. A ausência de registros completos da abordagem e a existência de laudo confirmando agressões devem ser consideradas como fatores sérios e suficientes para afastar a presunção de legalidade da atuação policial.

Ao conceder a ordem de habeas corpus e absolver tanto o réu quanto a namorada dele, o STJ reafirmou que, em matéria penal, não se admite a perpetuação de condenações construídas sobre alicerces ilícitos e que, no Estado Democrático de Direito, os fins jamais podem justificar os meios.

Em conclusão, o HC 915.025/SP não apenas soluciona um caso concreto de violação de direitos, mas também oferece diretrizes importantes para a atuação dos órgãos de persecução penal e para os juízes, no sentido de valorizar os princípios constitucionais e assegurar que a justiça penal se faça dentro da legalidade e do respeito à dignidade humana.

Autora: Carolina Carvalhal Leite. Mestranda em Direito Penal. Especialista em Direito Penal e Processo Penal; e, Especialista em Ordem Jurídica e Ministério Público. Graduada em Direito pelo UniCeub – Centro Universitário de Brasília em 2005. Docente nas disciplinas de Direito Penal, Processo Penal e Legislação Extravagante em cursos de pós-graduação, preparatórios para concursos e OAB (1ª e 2ª fases). Ex-servidora pública do Ministério Público Federal (Assessora-Chefe do Subprocurador-Geral da República na Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – PFDC). Advogada inscrita na OAB/DF.

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