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A afirmação de que a incorporação de institutos de origem anglo-saxã permeados pelo sistema da common law ao Direito Administrativo brasileiro estaria desvirtuando no seu caráter romanístico (mais atrelado ao domínio das leis) não é verdadeira, por uma incompreensão de origem. Isto por que temos de fugir à tendência de divisar os dois sistemas, a partir da explicação pela qual o direito de base romanística seria aquele cuja fonte predominante se consubstancia na lei, ao passo que o sistema da common law teria por base o modelo de precedentes. Embora não seja incorreto dizê-lo, essa pressuposição incorre no equívoco de ser demasiado simplificadora. É que, na França, por exemplo, que tem um ordenamento jurídico de base romanística, tem seu direito administrativo grandemente apoiado nos precedentes da jurisdição administrativa. Dúvida houvesse e bastaria lembrar o caráter angular que tem o o arrêt Blanco (1863). Nos Estados Unidos, por sua vez, que têm um ordenamento pautado pelas diretrizes da common law, o eixo angular do que por lá de designa por Administrative Law uma lei, a Administrative Procedure Act.
Na verdade, o direito administrativo brasileiro é um peculiar fruto de um sincretismo entre os dois sistemas[1]. É, nesse quadrante, que passa a vigorar o artigo 30 da Lei 13.655/ 2018 (Lei da Segurança para a Inovação Pública), de acordo com o qual “as autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas”. O dispositivo teve o objetivo de realizar o trespasse da stare decisis às decisões administrativas – racional que remonta ao precedente London Tramways v London County Council, de 1898, no qual se consagrou, pela primeira vez, a vinculação da House of Lords às suas próprias decisões. De acordo com tal teoria, terá o julgador de, preliminarmente, definir o holding, assim considerado como a norma, a ser extraída do caso concreto, que deverá vincular as futuras decisões. Sua identificação passa pela identificação dos fatos (material facts) e dos fundamentos necessários à constituição do precedente (racionale), excluindo-se, porém, o obiter dictum, que são as considerações marginais ao julgado paradigma, que não terão efeitos vinculantes. Por intermédio dessa sistemática, para além de se preservar a isonomia no tratamento dos administrados (treat like cases alike), pretende-conferir observância às decisões proferidas (backward-looking), bem como constituir os futuros precedentes (fooward-looking)[2].
Nesse quadrante, vislumbramos, pelo menos, quatro hipóteses que poderão ter lugar a partir da vigência do dispositivo em comento. A primeira delas será o precedente formado no âmbito de um procedimento administrativo, seja ele adversarial (no qual incidem o contraditório e a ampla defesa), de consentimento de polícia (por exemplo, que tenha por a obtenção de um título habilitante) ou não adversarial (que tenha por objeto a celebração de um acordo substitutivo, por exemplo). Cuida-se de hipóteses que já teriam amparo no disposto no artigo 2º, parágrafo único, XIII, da Lei 9.784/1999 (Lei de Processo Administrativo Federal), de acordo com o qual se prescreve que, nos processos administrativos, serão observados a “interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação”. E que, agora, se viu reforçada pelo disposto no artigo 23 da própria Lei 13.655/2018.
A segunda terá lugar, por intermédio da necessária edição de súmulas, que uniformizem interpretações reiteradas da Administração Pública. Verdade que não se trata de prescrição totalmente nova no ordenamento jurídico brasileiro. O artigo 43 da Lei Complementar 73/1993 (que institui a Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União), por exemplo, dispõe que “a Súmula da Advocacia-Geral da União tem caráter obrigatório quanto a todos os órgãos jurídicos enumerados nos artigos 2º e 17 desta lei complementar”. Do mesmo modo, no exercício da função reguladora estatal, é comum a edição de verbetes sumulares, a exemplo do disposto na Súmula Normativa 28/2015, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que dispõe sobre a suspensão e a rescisão unilateral de contrato individual de planos se saúde.
A terceira hipótese de que cogitamos é o precedente decorrente da prolação de parecer jurídico, ao qual seja atribuído efeitos normativos, a exemplo do parecer vinculante, previsto, por exemplo, no artigo 40, parágrafo 1º, da Lei Complementar 73/1993, o qual prescreve que “o parecer aprovado e publicado juntamente com o despacho presidencial vincula a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento”.
A quarta terá lugar na hipótese da edição de regulamentos administrativos, com o objetivo, por exemplo, de uniformizar procedimentos, a exemplo do Decreto 6.759/2009, que regulamenta a administração das atividades aduaneiras, e a fiscalização, o controle e a tributação das operações de comércio exterior. É de se destacar que os precedentes administrativos não se confundem com os normativos editados pela administração pública (a exemplo dos regulamentos dos quais se cogita). Isto porque, enquanto aqueles servem dar respostas institucionais a casos concretos, estes têm o desiderato de disciplinar, para o futuro, situações genéricas e abstratas. Porém, nos termos do novel diploma, os seus efeitos se assemelham.
Tais instrumentos, a teor do parágrafo único do artigo 30, “terão caráter vinculante em relação ao órgão ou entidade a que se destinam, até ulterior revisão”. Tal importa dizer que, de acordo com os novos quadrantes trazidos pelo dispositivo em comento, a aplicação da vinculação aos precedentes administrativos será predicadora da existência de identidade subjetiva. É dizer, que a interpretação materializada, por intermédio da norma veiculada pelo ato administrativo paradigma (seja uma súmula, uma decisão, uma normatização, ou um parecer jurídico) seja construída e aplicada no âmbito da mesma entidade administrativa (a exemplo de uma súmula que terá o condão de vincular a autarquia que a expediu).
O racional trazido pelo novo diploma, também, predica a existência de uma identidade objetiva entre o provimento atual e o paradigma, ou, mais tecnicamente, o que os americanos chamam de holding, como vimos acima Temos que, por se tratar de uma vinculação entre as normas que se extraem de atos administrativos, essa norma vinculante (holding) deverá ser extraída do seu motivo e do seu objeto. O motivo do ato administrativo, sabemos, é composto pelos fatos e pelos fundamentos jurídicos que determinam a sua produção. O objeto, por sua vez, é a criação, modificação ou extinção de direito por ele produzida – o qual costuma se divisado em vinculado ou discricionário. Assim é que o holding do precedente administrativo deverá ser formado pela norma que será extraída da congruência entre o motivo e o objeto do administrativo.
Um exemplo ilustra o que estamos dizendo. Cogite-se a hipótese em que uma concessionária tenha sido apenada, por uma agência reguladora, em razão de não ter revertido 75% das receitas acessórias à modicidade tarifária. E que, após o devido processo sancionador, a responsabilidade dela tenha sido excluída, por ter sido considerado que o valor do referido repasse era abusivo, e militaria em desfavor exploração dessas atividades. Dessa forma, outra concessionária, que esteja com um processo administrativo instaurado em face de si, com o mesmo objeto, poderá, com fulcro no disposto que ora se comenta, pleitear a extensão do holding desse precedente para o seu processo.
Assim é que, para que trespasse do holding seja interditado, a agência reguladora terá agora o ônus de proferir uma decisão fundamentada, por meio da qual demostre que há diferenças substanciais entre o precedente e a demanda atual, a justificar a prolação de decisão diversa (distinguising); ou a necessidade de superação do precedente (overruling), seja por razões jurídicas, seja por razões econômicas, seja pela cambialidade da situação de fato. O que, de resto, já encontraria fundamento no disposto no artigo 50, VII, da Lei 9.784/1999, de acordo com o qual se prescreve o dever de motivação das decisões que “deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais”, só que agora aplicável a todos os âmbitos, inclusive aqueles não sujeitos ao regramento do processo administrativo.
se desconhece que a aplicação da Teoria dos Precedentes Administrativos já teria aplicabilidade ao ordenamento jurídico brasileiro, em razão do disposto no artigo 15 com correspondência com o artigo 927, I a V, do CPC/2015. Nada obstante, alçar tal sistemática à qualidade de uma norma interpretativa é, por assim dizer, “levar os precedentes administrativos a sério”.
É passada a hora de todas as esferas com poder decisório, nos termos da lei, a judicial, controladora e administrativa tomarem a sério suas decisões, evitarem o casuísmo e o randomismo decisório e, assim, poderem sinalizar ao cidadão quais as condutas e parâmetros decisórios a seguir. Isso em si já será um enorme ganho em termos de segurança jurídica.
[1] AZEVEDO NETO, Floriano Marques de. O direito administrativo no sistema de base romanística e de common law, Brazilian administrative law: under the influence of common law and civil law. Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro, n. 268, 2015.
[2] No Direito Brasileiro, V. OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende de. Precedentes no Direito Administrativo. Editora Gen: Rio de Janeiro, 2018.
Fonte: Conjur
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