Introdução
Para se punir a prática da discriminação ou o preconceito por raça, etnia, cor, religião ou procedência nacional, existem delitos tipificados na Lei 7.716/1989, com redação determinada pela Lei n. 9.459/1997.
Tais leis foram editadas de acordo com o disposto no artigo 5º, inciso XLII, da Constituição Federal, norma constitucional de eficácia limitada, que estabelece, em sede constitucional, que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão.
A Lei n. 8081/1990 renumerou os artigos 20 e 21 da lei n. 7716/1989.
A Lei n. 9.459/1997 alterou o disposto nos artigos 1º e 20 da Lei n. 7.716/1989 e passou a punir com penas de até cinco anos de reclusão, além de multa, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Diferença entre Injúria Racial e Discriminação Racial
É imperioso registrar que a Lei n. 10.741/2003 acrescentou o parágrafo terceiro ao artigo 140 do Código Penal, tipificando a injúria com utilização de elementos relacionados a raça, cor, etnia, religião ou origem, com penas de reclusão de 1 a 3 anos, e multa.
Recentemente, a Lei n. 12.033/2009 alterou o parágrafo único do artigo 145 do Código Penal, tornando pública condicionada à representação a ação penal nos crimes de injúria qualificada. Cumpre ressaltar que os crimes previstos na lei de Discriminação Racial são de ação penal pública incondicionada.
Faz-se necessário diferenciar a injúria racial, crime previsto no art. 140 § 3º do Código Penal, do delito previsto no artigo 20 da Lei n. 7.716/1989.
Assim dispõe o art. 140 § 3º do Código Penal:
“Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
(…)
3° Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”
Já o artigo 20 da Lei n. 7716/1989 tem a seguinte redação:
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
No crime previsto no artigo 20 da Lei n. 7.716/1989, a ofensa é dirigida a um grupo de pessoas, sendo que a intenção do agente é discriminar a vítima de modo a segregá-la de alguma forma do convívio em sociedade. De outra parte, na injúria qualificada, a ofensa é direcionada à honra subjetiva do indivíduo, ofensa que é agregada a raça, cor, etnia, religião ou origem.
No mesmo sentido, assevera Celso Delmanto, in verbis:
comete o crime do art. 140, § 3º, do CP, e não o delito do art. 20 da Lei n. 7.716/1989, o agente que utiliza palavras depreciativas referentes a raça, cor, religião ou origem, com o intuito de ofender a honra subjetiva da vítima[1].
Injúria Preconceituosa
Sobre a injúria preconceituosa preleciona Rogério Greco:
O § 3º do art. 140 do Código Penal, com nova redação determinada pela Lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003, comina uma pena de reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa, se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.
Não se deve confundir a injúria preconceituosa com os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor, tipificados na Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989.
O crime de injúria preconceituosa pune o agente que, na prática do delito, usa elementos ligados a raça, cor, etnia etc. A finalidade do agente, com a utilização desses meios, é atingir a honra subjetiva da vítima, bem juridicamente protegido pelo delito em questão.
Ao contrário, por intermédio da legislação que definiu os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, são proibidos comportamentos discriminatórios, em regra mais graves do que a simples agressão à honra subjetiva da vítima, mas que, por outro lado, também não deixem de humilhá-la, a exemplo do que acontece quando alguém recusa, nega ou impede a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau, tendo o legislador cominado para essa infração penal, tipificada no art. 6º, da Lei n. 7.716/1989, uma pena de reclusão de 3 (três) a 5 (cinco) anos.[2]
Já decidiu o STJ:
1) A imputação de termos pejorativos referentes à raça do ofendido, com o nítido intuito de lesão à honra deste, importa no crime de injúria qualificada pelo uso de elemento racial, e não de racismo.
2) Não tendo sido oferecida a queixa crime no prazo de seis meses, é de se reconhecer a decadência do direito de queixa pelo ofendido, extinguindo-se a punibilidade do recorrente.
3) Recurso provido para desclassificar a conduta narrada na denúncia para o tipo penal previsto no §3º do artigo 140 do Código Penal, e, em consequência, extinguir a punibilidade do recorrente, em razão da decadência, por força do artigo 107, IV, do Código Penal.
(RHC 18.620/PR, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 14/10/2008, DJe 28/10/2008) (Grifo nosso)
O STF também já se manifestou sobre o assunto:
QUEIXA-CRIME – INJÚRIA QUALIFICADA VERSUS CRIME DE RACISMO – ARTIGOS 140, § 3º, DO CÓDIGO PENAL E 20 DA LEI Nº 7.716/89. Se a um só tempo o fato consubstancia, de início, a injúria qualificada e o crime de racismo, há a ocorrência de progressão do que assacado contra a vítima, ganhando relevo o crime de maior gravidade, observado o instituto da absorção. Cumpre receber a queixa-crime quando, no inquérito referente ao delito de racismo, haja manifestação irrecusável do titular da ação penal pública pela ausência de configuração do crime. Solução que atende ao necessário afastamento da impunidade. (Inq 1458, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 15/10/2003, DJ 19-12-2003 PP-00050 EMENT VOL-02137-01 PP-00077)
Uma vez conhecidas as distinções entre injúria racial e os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor (Lei n. 7.716/1989). É fundamental mencionar que, em julgamento proferido no caso Ellwanger[3], foi reconhecido pelo Pretório Excelso que não há divisões entre raças, nesse sentido:
(…) 3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista (…)(HC 82424, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003, DJ 19-03-2004 PP-00017 EMENT VOL-02144-03 PP-00524) (Grifo nosso).
Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei n. 9.459, de 15 de maio de 1997)
É importante conceituar raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional antes de analisarmos os crimes previstos na lei em estudo.
16.4 Raça
Sobre o emprego da palavra raça assinala Roberta Fragoso Menezes Kaufmann:
A palavra raça pode ser empregada nas mais diferentes maneiras. Pode ter um sentido de fenótipo, a revelar um conjunto de características físicas, como cor da pele, cor e textura do cabelo, cor e formato dos olhos, formato do nariz e espessura dos lábios. Pode, ainda, significar uma região específica do planeta, como por exemplo, quando se fala em raça africana, raça oriental, raça ocidental. Ou, além, pode ter um sentido biológico, como a reunião de pessoas em grupos de indivíduos que possuam características específicas e distintas dos outros grupos. Até o final do século XIX, os cientistas promoveram diversas tentativas de classificar biologicamente as pessoas em raças distintas. Mas como afirma o geneticista Cavalli-Sforza: “Os resultados, muitas vezes contraditórios, constituem um bom indício da dificuldade do empreendimento. Darwin compreendeu que a continuidade geográfica frustraria toda tentativa de classificar as raças humanas. Ele observou um fenômeno recorrente ao longo da história: diferentes antropólogos chegaram a contagens totalmente discrepantes do número de raças – de três a mais de cem” (CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca.2003: p. 37).
O interesse científico em classificar os homens em raças biologicamente distintas chocava-se com a mobilidade com que as características raciais mudavam. Nesse sentido, o geneticista Sérgio Pena explicou que a espécie humana é “demasiadamente jovem e móvel para ter se diferenciado em grupos tão distintos” (PENA, Sérgio et. al. 2000: p. 17-25). E, ainda que se quisesse fazer uma aproximação da quantidade de raças existentes no mundo, os números poderiam ultrapassar um milhão de raças distintas (CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca. 2003: p. 52). Nessa óptica, o mapeamento do genoma humano confirmou a impossibilidade de divisão dos homens em raças.(…)
Na verdade, o conceito de raça subsiste, atualmente, porque, a despeito de não poder ser analisado sob o espectro biológico, permanece o interesse pela construção cultural do tema (Ver em FERREIRA, Nayara. (2007: p. 245). O fato de, biologicamente, não ser possível classificar as pessoas segundo as raças, não quer dizer que o conceito cultural de raça inexista. A importância da classificação advém do aspecto social, para estudarmos o modo como cada comunidade classifica seus indivíduos e analisarmos as razões que justificaram a opção pelos critérios eleitos em cada sociedade.[4]
Assim, tem-se que biologicamente não há distinções entre raças, porém o conceito cultural de raça existe.
No que tange ao racismo, entende-se que essa palavra limita a área de incidência da discriminação, ao passo que as manifestações preconceituosas são genéricas, podendo ser variadas e envolver a raça, cor, idade, sexo, grupo social etc.
16.5 Racismo, Discriminação Racial e Preconceito Racial
Oportuna é a transcrição dos ensinamentos do Professor Ricardo Antônio Andreucci acerca dos temas em estudo:
O termo “racismo” geralmente expressa o conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre raças, entre etnias, ou ainda uma atitude de hostilidade em relação a determinadas categorias de pessoas. Pode ser classificado como o fenômeno cultural, praticamente inseparável da história humana. A “discriminação racial’, por seu turno, expressa a quebra do princípio da igualdade, como distinção, exclusão, restrição ou preferência, motivado por raça, cor, sexo, idade trabalho, credo religioso ou convicções políticas. Já o “preconceito racial” indica opinião ou sentimento, quer favorável, quer desfavorável, concebido sem exame crítico, ou ainda atitude, sentimento ou parecer insensato, assumido em consequência da generalização apressada de uma experiência pessoal ou imposta pelo meio, conduzindo geralmente à intolerância[5].
16.6 Cor, Etnia, Religião e Procedência Nacional
Segundo Guilherme de Souza Nucci, valendo-se dos ensinamentos de Christiano Jorge Santos: “cor é termo melhor utilizado para definição cromática de qualquer matéria, do que propriamente para distinção de pessoas, embora seja empregado para definição da pigmentação epidérmica dos seres humanos” [6].
Nucci diz que a etnia “é o grupo de pessoas que apresenta homogeneidade cultural ou linguística[7]”. Em Ruanda, por exemplo, existem duas etnias: tutsis e os hutus.
Ainda usando as lições do festejado autor, a religião “é a crença em uma existência sobrenatural ou em uma força divina, que rege o Universo e as relações humanas em geral, embora de um ponto de vista metafísico, com manifestações através de rituais ou cultos. Ex: religião católica” [8].
Por fim, Guilherme Nucci conceitua procedência nacional: “é a origem de nascimento de algum lugar do Brasil. Exemplos: paulista (nascido em São Paulo), carioca (nascido no Rio de Janeiro), gaúcho (originário do Rio Grande do Sul)”[9].
QUESTÃO COM GABARITO COMENTADO
- (Delegado de Polícia Federal/2004/Regional/Cespe) Pedro pediu em casamento Carolina, que tem 16 anos de idade, e ela aceitou. O pai de Carolina, porém, negou-se a autorizar o casamento da filha, pelo fato de o noivo ser negro. Todavia, para não ofender Pedro, solicitou a Carolina que lhe dissesse que o motivo da sua recusa era o fato de ele ser ateu. Nessa situação, o pai de Carolina cometeu infração penal.
Gabarito: Verdadeiro.
Comentários: A assertiva está de acordo com o que rege o art. 14 da Lei n. 7.716/1989: “Impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social. Pena – reclusão de dois a quatro anos”.
O bem protegido pelo Direito Penal no crime em tela é a preservação da igualdade dos seres humanos perante a lei. Qualquer pessoa pode praticar tal delito sendo que o sujeito passivo é a pessoa discriminada.
A conduta vem representada pelos verbos “impedir”, que significa interromper, e “obstar”, que significa causar embaraço.
O elemento subjetivo é o dolo. Trata-se de crime formal, pois independe da ocorrência de qualquer efetivo prejuízo para pessoa discriminada, embora seja possível que aconteça. A tentativa é admissível na forma plurissubsistente.
Sobre o crime em comento, já decidiu o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo:
AÇÃO PENAL – Justa causa – Racismo – Indiciada que impede namoro do filho com a vítima, em razão da diferença de raças – Denúncia baseada no art. 14 da Lei Federal n. 7.716, de 1989 – Admissibilidade – Respaldo, ademais, na prova oral colhida no inquérito policial – Recebimento da referida inicial determinado – Recurso provido (TJSP – JTJ, 183/264).
[1] DELMANTO, Celso e outros. Código Penal comentado. 6ª ed., Renovar, p. 305.
[2] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. Volume II. Introdução à teoria geral da parte especial: crimes contra a pessoa. 5ª ed. Niterói – RJ. Ed. Impetus. 2008. p. 466-467.
[3] Caso que trata sobre o conflito entre a liberdade de manifestação do pensamento e as expressões de ódio racial, que transgridem os valores tutelados pela própria ordem constitucional.” Ellwanger Siegfried é um editor e autor de Porto Alegre, de inequívoca orientação nazista. Dedica-se, de forma sistemática, a reeditar os livros de estridente antissemitismo em voga nos anos 30, como a conhecida falsificação “Os Protocolos dos Sábios de Sião”. É, ele mesmo, autor de obra intitulada “Holocausto judeu ou alemão?” nos bastidores da mentira do século, que denega o fato histórico do crime de genocídio, conduzido pelo regime nazista. Por sua conduta, voltada para deliberadamente incitar a discriminação e o preconceito, Ellwanger foi condenado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul por crime da prática do racismo, crime que a Constituição declara inafiançável e imprescritível. Habeas-corpus em seu benefício foi impetrado e denegado pelo Superior Tribunal de Justiça. Daí novo pedido de habeas-corpus ao STF”. (LAFER, Celso. RACISMO – o STF e o caso Ellwnager. Disponível na Internet <http://afrobras.org.br/index.php?option=content&task=view&id=305>)
[4] KAUFMANN, Roberta Fragoso Menezes. Ações afirmativas à brasileira: necessidade ou mito? . R. Jur. UNIJUS. Uberaba-MG, V.10, n. 13, p.117-144, Novembro, 2007.
[5] ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Legislação penal especial. 5ª ed. rev. e atual. São Paulo. Saraiva. 2009. p.433.
[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas . 4ª ed. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais. 2009. p 304.
[7] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas . 4ª ed. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais. 2009. p 304.
[8] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas . 4ª ed. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais. 2009. p 305.
[9] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas . 4ª ed. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais. 2009. p 305.
Sérgio Bautzer
Delegado da Polícia Civil do Distrito Federal. Bacharel em Direito, Professor de Legislação Especial e Direito Processual Penal, Professor de cursos preparatórios, graduação e pós-graduação.
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