Heloísa é direta ao apontar um caminho para essa regulamentação: é preciso parar de fingir que o sigilo entre advogado e cliente é absoluto. Para ela, o sigilo só é inviolável quando envolver o direito de defesa, como quando um criminalista ou tributarista é consultado sobre o que fazer com uma quantia no exterior.
Já no caso de o profissional estar trabalhando em uma operação financeira ou imobiliária, é preciso que ele tenha orientação para fazer seu serviço de forma correta e, ainda assim, informar as autoridades financeiras. E sem ir parar no banco dos réus ao lado do cliente.
As opiniões da advogada são fruto do livro Exercício da advocacia e lavagem de capitais, que ela coordenou e acaba de lançar. As 395 páginas da obra trazem estudos sobre como diferentes países estão lidando com o problema e aprofundadas análises de casos que correm nos tribunais brasileiros, de autoria de Bianca de Britto Festino, Caio Almado Lima, Fábio Roberto Mello, Marcella dos Reis Manes, Luis Gustavo Veneziani Sousa, Theodoro Balducci de Oliveira, Alvaro Augusto Orione Souza, Bruno Garcia Borragine, Eduardo Ferreira da Silva, Fernando Barboza Dias e Lara Mayara da Cruz.
No Brasil, a Lei 9.613/1998 passou a definir em 2012 que têm obrigação de comunicar operações suspeitas as “pessoas físicas ou jurídicas que prestem, mesmo que eventualmente, serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência, de qualquer natureza, em operações”.
A norma, no entanto, não se aplica aos advogados, segundo a OAB. Para a entidade, o dever de comunicar operações suspeitas é incompatível com o sigilo profissional. Para Heloísa, a posição traz mais problemas do que soluções, pois algumas tarefas exercidas por advogados não são privativas da advocacia, ou seja, não se sujeitam ao Estatuto da Advocacia e da OAB, que prevê o sigilo.
Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Heloísa Estellita explica como a questão tem sido tratada mundialmente e no Brasil — com destaque para a operação “lava jato”, na qual ela aponta erros na interpretação adotada para definir a lavagem.
A Lei 13.254/2016 (Lei de Regularização de Ativos no Exterior ou Lei de Repatriação) também tem chamado a atenção da professora. Segundo Heloísa Estellita, a norma serve como alerta do governo a quem tem dinheiro fora do país. Isso porque os dados de correntistas nos Estados Unidos, por exemplo, já estão em posse das autoridades brasileiras e quem não aderir ao plano de regularização não terá desculpas para manter as quantias não declaradas fora do país.
Lei a entrevista:
ConJur — O sigilo entre advogado e cliente é absoluto?
Heloísa Estellita — Não acho que seja absoluto. Nunca achei. O dever de informar, tanto na União Europeia quanto no Brasil, se a OAB resolver regulamentar — e não estou dizendo que ela vá fazer isso —, está ligado a certas atividades. O advogado não precisa reportar a vida profisisonal dele. Primeiro, o sigilo está ligado a certas atividades e, segundo, a certas operações. Nenhum órgão de regulamentação cogitou obrigar um advogado do contencioso a reportar operações de seu cliente. Isso nunca foi objeto de sugestão de reforma.
ConJur — E como é essa experiência no mundo?
Heloísa Estellita — Tem um guia de boas práticas, editado em 2010 pela ABA [American Bar Association, espécie de OAB dos EUA]. A partir de 2012, a ABA começou a ficar preocupada com a lavagem de dinheiro, criando, inclusive, um site só sobre isso, em que eles ficam monitorando a legislação local.
ConJur — E encontraram muitas mudanças?
Heloísa Estellita — Eles começaram a ficar tão preocupados que fizeram o primeiro guia de boas práticas mundial, junto com a IBA [International Bar Association, associação internacional de advogados]. Inclusive, no guia, apontam situações de risco para a advocacia, com exemplos. O documento está livre na internet, tem 45 páginas. O mundo mudou, não adianta ficar apegado à ideia de que o advogado não precisa reportar nada. A União Europeia obriga os advogados a reportar operações suspeitas desde 2008. E cada legislação nacional elabora os seus indicadores de anomalia. Portugal fez uma coisa interessante: os advogados são obrigados a comunicar um órgão da OAB deles. E esse órgão é que vai analisar o reporte, para ver se não há violação do sigilo profissional.
ConJur — E reportar a consulta a um advogado de contencioso, por exemplo, seria uma violação ao sigilo?
Heloísa Estellita — Sim. A norma é clara e trata de advogado fazendo consultoria em certas operações: financeiras, societárias, imobiliárias. Quase como se ele fosse um agente imobiliário. E isso não afeta o sigilo, porque nesse tipo de atividade não está em jogo o direito de defesa.
ConJur — O sigilo, então, serve para o que será usado na defesa do cliente?
Heloísa Estellita — Por isso a Corte Europeia de Direitos Humanos julgou a legislação da França. E eles disseram exatamente isso: o direito do sigilo está para a proteção da defesa; onde não há uma defesa a ser protegida, não tem sigilo. A primeira coisa que teria que fazer no Brasil é estudar adequadamente quais são as atividades privativas do advogado. Ver exatamente qual é o âmbito de proteção.
ConJur — Isso está no artigo 1º do Estatuto da Advocacia.
Heloísa Estellita — Sim. Ele fala que é a postulação a órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais e as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas. E é possível proteger isso no regramento sobre lavagem. A Europa determina que tudo conectado ao contencioso está protegido por sigilo, ou seja, consultas pré e pós litígio. No Brasil, o cliente já está protegido pelo sigilo profissional quando começa a procurar um advogado, por exemplo, para evitar a prática de um crime.
ConJur — Que tipo de crime?
Heloísa Estellita — Um cliente que consulte a gente para ver se adere ou não à Lei de Regularização de Ativos Financeiros no Exterior, buscando a anistia. Não tem nada de contencioso propriamente dito. Eu posso analisar o caso dele e falar para aderir ou não aderir, se houver impedimentos legais. E isso precisa estar protegido pelo sigilo. Então, se regulamentasse bem, isso não seria problema. Mas isso é diferente do advogado de operações dando consultoria. Ele age como agente imobiliário, como pode também ser feito por uma pessoa formada em Economia.
ConJur — O que não é privativo de advogado.
Heloísa Estellita — Exatamente, não é só ele que pode prestar esse tipo de serviço. Essa é a primeira preocupação, na primeira parte do livro. A segunda parte do livro estuda casos de advogados processados por lavagem. Fomos ver o que estava acontecendo nos tribunais brasileiros.
ConJur — E está acontecendo muita coisa?
Heloísa Estellita — Nossa base de dados era de 2013. No começo a nossa ideia era fazer uma pesquisa empírica quantitativa, descobrir quantos havia e cruzar os números. Mas eram pouquíssimos casos. Eu falava para um aluno contabilizar num TRF e ele voltava com quatro casos.
ConJur — Insignificante para estatísticas.
Heloísa Estellita — Nós decidimos, então, analisar os casos, sem expor os envolvidos. O recorte que é feito é a ponta do iceberg do que está acontecendo no Brasil, desde então. Na segunda parte do livro seis casos são analisados, inclusive alguns em que a acusação era absurda.
ConJur — E qual é a conclusão tirada a partir desses estudos?
Heloísa Estellita — Que, ao não regulamentar o dever de o advogado reportar operações suspeitas de lavagem, a OAB presta um desserviço à advocacia. Ela está colocando os advogados numa fria.
ConJur — Por quê?
Heloísa Estellita — Por exemplo: um escritório foi chamado para fazer uma operação, que envolve uma operação imobiliária. Quem vai trabalhar nessa operação? O advogado, o contador, talvez uma empresa de auditoria, o banco e o agente imobiliário. Então, todos eles veem na negociação que o aporte da empresa vai ser feito em cash. E sabem que o cliente é uma pessoa com influência política muito forte. São dois red flags [sinais vermelhos] de lavagem: operação em cash de um valor alto, e uma pessoa envolvida em política.
ConJur — E o que acontece?
Heloísa Estellita — O contador vai ofertar o serviço dele e depois vai reportar para o conselho. O agente imobiliário vai vender o imóvel e vai reportar. O consultor para operações imobiliárias também vai reportar. A junta comercial vai reportar. E o advogado vai ficar perdido. Ele vai prestar o serviço dele sabendo que há indícios de lavagem, mas, como não reportou isso a ninguém, vai ser chamado para sentar no banco dos réus, com o cliente dele. Todos os outros puderam prestar o serviço e, por terem uma regulamentação para o caso, ficarão de fora da acusação.
ConJur — E como ele poderia ficar de fora da acusação?
Heloísa Estellita — Hoje em dia, a única opção 100% segura para um advogado é, em caso de suspeita, não prestar o serviço. Todos os outros, por terem a opção e a obrigação de reportar o problema, podem prestar o serviço sem problemas.
ConJur — Mas ao reportar uma suspeita, a pessoa não ficaria impedida de auxiliar naquela prática?
Heloísa Estellita — Mas aí existe uma autorização para participar, que é uma sacada muito boa do legislador brasileiro. Na Europa, se há indícios de lavagem, não podem completar a operação. Mas a solução brasileira é interessante porque, geralmente, tem um gap entre prestar o serviço e reunir as informações necessárias para classificar aquela operação como de lavagem. A Europa, aliás, acaba de reformar a sua legislação, caminhando no mesmo sentido que o Brasil.
ConJur — E a comunicação protege quem está ali no meio mas não participa do crime?
Heloísa Estellita — Exatamente. A OAB não precisa criar necessariamente o dever de reportar, mas precisa dar uma direção para eles terem um pouco de segurança, dizendo como deve ser feita essa comunicação ao Coaf [Conselho de Controle de Atividades Financeiras], por exemplo.
ConJur — Mas o possível cliente não vai ficar com medo de contratar um advogado se souber que ele pode “dedurar” suas atividades?
Heloísa Estellita — Mas é preciso evitar que o advogado entre como réu. Grande parte da corrupção, até mesmo na operação “lava jato”, era paga via consultoria e agência de marketing, porque são áreas não reguladas. Pode escrever que nos próximos anos as agências de publicidade vão ser obrigadas a reportar operações suspeitas de lavagem. Regulamentando, vamos acabando com os lavadores. Como o factoring, mercado de luxo, joalherias, concessionárias.
ConJur — Galeria de arte também, não?
Heloísa Estellita — Galeria também é obrigada.
ConJur — E o advogado sabe que está nesse barco?
Heloísa Estellita — Os criminalistas entendem, mas eu me surpreendo conversando com advogados de fora da área penal, pois muitos não conhecem a legislação. Em escritórios grandes, por exemplo internacionais, muitos advogados que atuam no Brasil não sabem que seus colegas na Espanha reportam operações suspeitas desde 2008. Mesmo sento parceiros de trabalho.
ConJur — A senhora acha que vai haver uma mudança a partir da regularização de ativos no exterior?
Heloísa Estellita — Acho. Esse é um tipo de caso que o advogado nunca deverá ter o dever de reportar, porque é uma consultoria preventiva de litígio — não só para criminalistas, como para tributaristas. Mas eu acho que isso é uma sinalização mais do que clara que se pegarem um sujeito, daqui a dois anos, que evadiu valores provenientes de crimes tributários, que hoje poderia ter aderido, ele vai ser “esfolado” em um processo criminal. Porque passa a ser visto como imperdoável, já que ele teve a chance de regularizar.
ConJur — A exigência do crime antecedente para caracterizar lavagem de dinheiro está sendo descartada na “lava jato”?
Heloísa Estellita — Sim, mas está errado. Esse é um dos maiores prejuízos dessa operação. Eu distribuí as denúncias da “lava jato” para meus alunos analisarem e eles ficaram impressionados com a inépcia, com o linguajar, com a falta de conexão entre os dados, a falta de rastreamento dos valores. Muita coisa ali não faz sentido. O que eu acho que está acontecendo, que é muito perigoso e pode contaminar tudo, é confundir consumação da corrupção com a lavagem. Isso vira um monstro.
ConJur — Por quê?
Heloísa Estellita — Porque o réu está sendo condenado por dois crimes, quando não cometeu dois crimes. É uma conduta só que está se consumando. Se fosse assim, todo mundo que tentou corromper e não conseguiu praticou tentativa de lavagem e corrupção ao mesmo tempo. Não faz sentido.
ConJur — Nessa questão das construtoras, apontam que a doação eleitoral foi usada como forma de pagar propina de forma declarada. Isso seria lavagem?
Heloísa Estellita — A lavagem é como ocultação de cadáver: tem que ter um corpo. O “cadáver”, na lavagem, é o dinheiro que a pessoa obteve com a prática de um crime. A tese usada pelo juiz Sergio Moro é que aquele montinho de dinheiro já está na posse da empresa porque ela fraudou a licitação e recebeu o pagamento do contrato com a Petrobras. Ou seja, a empresa só tem aquele dinheiro porque cometeu um crime. Mas acontece que a doação não seria ato de lavagem, porque não tem nem ocultação nem dissimulação de origem.
ConJur — A “lava jato” já chegou a 34 países e a lei de regularização de ativos no exterior está aí. Isso é parte de um movimento?
Heloísa Estellita — Essa matéria precisa ser regulamentada há tempos. Urgentemente, pois não tem como voltar atrás. Vai aumentar mais ainda com a troca automática de informações, que já começou. O Brasil já recebeu dados dos correntistas nos Estados Unidos do ano base de 2014. Já está tudo lá na Receita Federal. Ou seja, eles já têm a lista, mas estão aguardando para ver quem vai aderir ao plano de regularização.
ConJur — Só nos EUA?
Heloísa Estellita — A troca mundial mais disseminada começa em 2018. Será automática, não precisa pedir. Então é natural que se vá descobrir esses dados. E, depois, o Ministério Público, por exemplo, vai ter mais dados para começar a investigações e, evidentemente, vai precisar complementar informações, usando a cooperação. O problema da cooperação — que não é um fenômeno só no Brasil, é um fenômeno que acontece, também, na Europa — é que a cooperação é feita normalmente entre autoridades, e a defesa é excluída dela. O perigo de inviabilizar totalmente a defesa em processos de cooperação é muito alto. A União Europeia se deparou com isso. Há uns quatro anos que começaram outro movimento, que é o de proteger as pessoas afetadas por esses atos de cooperação.
ConJur — Como é essa resposta, esse segundo movimento?
Heloísa Estellita — São normas necessárias, como o direito básico de que a pessoa afetada pela cooperação tenha ciência de que há um pedido. O Brasil não cumpre. Só se alguém resolver que esse pedido vai ser processado no Superior Tribunal de Justiça, que traz no regimento interno a obrigação do contraditório. Mas a maioria dos pedidos não são processados no STJ. Para mim, isso é ilegal.
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