Continua atual a comparação entre os modelos de solução de conflitos criminais e a adoção, inegável, da chamada “Justiça penal negociada” como forma concorrente de solução dos problemas apresentados com a prática criminosa, seja ela individual, ou sob a forma organizada.
De acordo com a doutrina existem três modelos de solução de conflitos criminais: o modelo dissuasório ou clássico, o ressocializador; e o modelo consensuado O modelo clássico, fundado exclusivamente na resposta punitiva-retributiva estatal, trata o direito punitivo penal como o único meio de reprovação e prevenção de delitos.
O modelo ressocializador, por sua vez, atribui à pena privativa de liberdade a eficácia máxima de combate à criminalidade, por meio da ideia de prevenção especial positiva, que se alcança com a ressocialização do infrator.
Já o modelo consensuado é classificado como restaurativo, quando se alcança a reparação dos danos à vítima como forma de pacificação social; ou negociado, quando a solução do conflito de interesses, que envolve a tutela do Direito Penal, se alcança por meio da colaboração do acusado no curso do processo, em troca de imunidades processuais e mesmo materiais.
A colaboração premiada, instituto jurídico oriundo do modelo negociado de justiça penal, no entanto, não é objeto de discurso unânime quanto às suas virtudes; antes, é objeto de divergências doutrinárias que, com frequência, abandonam os tribunais, alcançando as páginas dos jornais nacionais e a imprensa televisionada.
Os principais problemas da colaboração premiada, dentre outros, são apontados por Lênio Streck, jurista gaúcho:
1º) a delação premiada pode servir como mecanismo de pressão sobre o delator, pois esse tipo de ato viola o direito constitucional do cidadão de não ser obrigado a fazer prova contra si mesmo;
2º) a colaboração premiada vem servindo como instrumento para decisões consequencialistas. Isto é, com a finalidade de combater a criminalidade, justifica-se a flexibilização de garantias processuais;
3º) a colaboração premiada pode flexibilizar o caráter de indisponibilidade da ação penal, permitindo-se que o Estado negocie o seu papel de interdição e aplicação da lei penal;
4º) a supressão do processo judicial e suas garantias pela aceleração procedimental dos espaços de consenso são fatores utilitaristas, consequencialistas. Permitir que o órgão acusatório negocie a pena com o cidadão investigado pode violar o pressuposto fundamental da jurisdição, pois a violência repressiva da pena não passa mais pelo controle jurisdicional;
5º) ainda que o artigo 4º da Lei 12.850/13 [sobre organizações criminosas] permita o perdão judicial ou a redução da pena em até dois terços ou a substituição por restritiva de direitos, não há uma criteriologia para estabelecer precisamente qual o prêmio do delator;
6º) não se sabe se o imputado tem direito ao acordo com o Poder Público ou se é um mero poder discricionário — de novo, o problema dos limites e dos critérios.
Não obstante as críticas que se faz ao aludido instituto de justiça penal negociada, a colaboração premiada é instituto de direito criminal (material e processual), previsto no capítulo II da Lei nº 12.850/13 (Lei da Organização Criminosa), intitulado “Da investigação e dos meios de obtenção de prova”.
A previsão legal para seu surgimento no ordenamento jurídico brasileiro se deu com a promulgação da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003, e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003.
A aludida convenção, também conhecida como Convenção de Mérida, previa, em seu art. 37, a adoção de medidas que importassem na redução da pena de toda pessoa acusada que colaborasse com o esclarecimento do fato criminoso, inclusive pela concessão de imunidades judiciais.
No mesmo diapasão, o Congresso Nacional aprovou, em 2003, o texto da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, ratificado pelo governo brasileiro, em 29 de janeiro de 2004.
A chamada Convenção de Palermo igualmente previa, em seu art. 26, a possibilidade de utilização de medidas adequadas para encorajar as pessoas que participem ou tenham participado em grupos criminosos organizados a fornecerem informações úteis às autoridades competentes para efeitos de investigação e produção de provas; mediante a redução da pena e/ou concessão de imunidades judiciais.
A colaboração premiada, a partir de sua origem convencional, obteve a definição de seus contornos de aplicação, no processo penal brasileiro, com o advento da Lei nº 12.850/13; prevendo o art. 4º do aludido diploma legal, como consequências de sua utilização, a possibilidade de concessão do perdão judicial, redução em até 2/3 (dois terços) da pena privativa de liberdade prevista para o crime do qual se é acusado, ou mesmo substituição desta por pena restritiva de direitos, daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal.
Cuida-se de um meio de obtenção de provas, ou meio de pesquisa ou investigação, com o escopo de obter elementos materiais que possibilitem ao juiz da causa a formação de sua convicção.
Ganhou relevância, recentemente, a discussão acerca da natureza de negócio processual da colaboração premiada, em face da apreciação, no Supremo Tribunal Federal, do HC 127483/PR. O enfrentamento da problemática apresentada carece da análise de outro instituto processual penal, a ação penal; bem como de seus princípios.
A ação penal é o meio necessário para o exercício do poder punitivo do Estado; um poder-dever conferido, na grande maioria das vezes ao Ministério Público (CF, art. 129, I), que apresenta, em juízo, a pretensão punitiva estatal. Cuida-se, ao mesmo tempo, de um direito do Estado, decorrente do exercício de sua soberania, em apenar as pessoas que violem mandamentos normativos de conformação social; mas também de um dever de tutela de direitos fundamentais ao exercício harmônico da vida em comunidade. A ação penal pública, regra no sistema processual penal brasileiro, a cargo do Ministério Público, portanto, tem por objeto a tutela de interesses indisponíveis, porque essenciais ao desenvolvimento do ser humano na sua inteireza.
O exercício deste poder-dever que é a ação penal, via de regra, não se faz de maneira discricionária, mas sim vinculada; regendo-se pelo princípio da obrigatoriedade (Nec delicta maneant impunita). A obrigatoriedade da ação penal pública representa um fundamento imprescindível para o respeito ao princípio da igualdade, norteador dos direitos fundamentais elencados no art. 5º, caput, e incisos, da Constituição Federal; bem como, uma garantia indireta ao cidadão, no que constitui um ponto de convergência com o princípio basilar do sistema processual penal acusatório, que é a independência funcional do Ministério Público, prevista no art. 127, §1º, da Carta Magna.
Muito embora o conjunto de regras adotadas para o exercício do poder punitivo do Estado brasileiro tenha como gênese a tradição romano-germânica, é inegável a influência do sistema do Common Law, não só pela valorização da decisão judicial como fonte indispensável do Direito; mas também, pela utilização de institutos de justiça penal consensual, próprios dos ordenamentos de tradição consuetudinária.
Dentre tais institutos, destaca-se a plea bargaining. Esta consiste em um processo de negociação através do qual o réu aceita confessar culpa em troca de alguma concessão por parte do Estado, que pode ser de dois tipos básicos: (1) redução no número ou na gravidade das acusações feitas contra o réu; e (2) redução da pena aplicada na sentença ou na recomendação de sentença feita pela acusação.
Parte considerável da doutrina sustenta que, com a entrada em vigor da Lei nº 9.099/95, adotou-se o princípio da oportunidade no processo penal brasileiro, senão absoluta, ao menos regrada, por meio dos institutos da transação penal e processual (suspensão condicional do processo). A legalidade, portanto, a partir da adoção de institutos de justiça penal consensual no processo penal brasileiro, não deve ser tratada como obrigatoriedade no exercício da ação penal pública, mas sim indisponibilidade do interesse público, a cargo do Parquet, no exercício da pretensão punitiva do Estado.
É forçoso reconhecer a semelhança entre os institutos da transação penal, prevista no art. 76 da Lei dos Juizados Especiais Criminais, e a colaboração premiada, que encontra guarida no art. 4º da Lei de Organizações Criminosas; já que, nos exatos limites delineados pela legislação de regência respectiva, admite-se o não oferecimento da opinio delicti, em troca da aceitação, e eventual cumprimento, das condições legalmente fixadas. A semelhança apresentada permite, a partir do exame do primeiro, chegar-se à identificação da natureza jurídica do segundo.
Afrânio Silva Jardim, processualista carioca, refuta os argumentos contrários à adoção da colaboração premiada, com fundamentação no garantismo. Para o autor, o Estado é indispensável para atuar na sociedade e mitigar as diferenças entre as classes sociais; e, sendo democrático, utiliza o Direito como seu instrumento de transformação. E conclui que:
“A toda evidência, a aplicação do Direito material deve tutelar valores outros diversos, frutos do processo civilizatório. Não é valioso punir a qualquer preço. Por outro lado, a falta de eficácia do processo penal e a ineficiência das instituições do Estado de Direito só levam à desmoralização da democracia.”
Não se pode olvidar, contudo, citando Fauzi Choukr, que a democracia é o regime político que consente o desenvolvimento pacífico dos conflitos, e por meio destes as transformações sociais e institucionais. Legitimando e valorizando igualmente todos os pontos de vista externos e as dinâmicas sociais que os exprimem, ela legitima a mudança por meio do dissenso e do conflito.
Os acordos desformalizam o processo penal, abreviam-no, barateiam-no e expandem a capacidade da justiça penal de processar maior número de casos; no entanto, têm um elenco de princípios constitucionais e processuais fundamentais como inimigos naturais: publicidade das audiências (porque conciliação requer decência e discrição); juiz natural (porque a proposta de se introduzir a participação de juízes leigos é pouco convincente); princípio da legalidade (porque, compreensivelmente, não será o conteúdo do direito penal material aplicável ao caso que guiará a decisão final, e sim a avaliação oportunista das perspectivas de desfecho do processo e da disposição dos ‘Partners’ para o acordo); princípio inquisitório (porque o ‘grande achado’ do acordo consiste exatamente em evitar investigações de outro modo inevitáveis); nemo tenetur se ipsum accusare (porque só faz sentido participar de uma conciliação se se tem algo a oferecer); igualdade de tratamento (porque deve-se proceder de tal modo que o acusado pouco disposto ou pouco capaz de cooperar seja por esta razão mesma tratado com mais rigor).
A utilidade da norma deve emergir do bem que se deseja; sendo que a ideia de fim, no Direito Penal e, por conseguinte, no processo penal, por meio do qual se materializa, consubstancia o escopo maior da política criminal. É imprescindível se observar, em conclusão, com base nas lições de Ada Grinover, que o processo não é um jogo, em que pode vencer o mais poderoso ou o mais astucioso, mas um instrumento de justiça, pelo qual se pretende encontrar o verdadeiro titular do direito.
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Flávio Milhomem Mestre em Ciências Jurídico-Penais, Doutorando em Direito e Políticas Públicas, Docente nas disciplinas de Direito Penal e Processo Penal desde 1997, Docente titular do curso de Direito (bacharelado) e da pós-graduação do Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP, Brasília/DF, professor de cursos preparatórios para concursos, Promotor de Justiça Criminal do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios desde 1.997.
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