A controvérsia sobre o aproveitamento de crédito fiscal de ICMS: bem de insumo e bem de uso e consumo
Introdução
O presente artigo objetiva discutir a controvérsia existente com relação ao aproveitamento de crédito de ICMS de material de uso e consumo por algumas indústrias dos ramos cimenteiro e de bebidas sob o argumento de se tratarem de insumo.
Dentre esses materiais pode-se destacar: óleo combustível, tela de aço, explosivos, dentre outros utilizados no processo de fabricação desses produtos.
I – O porquê da controvérsia
A controvérsia reside no fato de que, se considerados materiais de uso e consumo, não podem, por expressa vedação contida na Lei Complementar n. 87/1966, ter os créditos pelas entradas aproveitados pelas empresas na apuração do ICMS devido.
Para Deonízio Koch[1], a “questão do crédito sobre o material de consumo, em especial, tem sido importante causa de lançamento tributário de ofício, glosando o crédito que o contribuinte julgava de seu direito, com imposição de pesadas multas. Grande parte dos trabalhos do aparelho fiscalizador de cada Estado tem sido direcionado a esta matéria. Discussões infindáveis e muitas vezes inglórias têm sido travadas sobre a definição do material de consumo. Dependendo da forma com que o material é consumido ou empregado nas atividades da empresa, se é consumido no processo de produção ou não, ele é classificado como de consumo, sem direito a crédito, ou de intermediário, neste caso, com direito a crédito”.
Na visão de José Jayme M. Oliveira[2], “a distinção entre esses tipos de bens emerge de sua destinação na empresa compradora. Se visam à satisfação imediata de necessidades e gastam (aniquilam-se) com a utilização, tem-se ou ‘bem de consumo’, ou ‘bem de uso’, este com utilização mais longa do que a daquele. Por exemplo: para um restaurante, o gás, que emprega nos fogões, é bem de consumo…”
A discussão no presente caso se resume no seguinte ponto: considerar alguns materiais utilizados no processo produtivo do cimento – por exemplo: óleo diesel, coque, palha de arroz e lubrificantes – como insumos ou como materiais de consumo. No primeiro caso, o creditamento é autorizado pela legislação, no segundo, não. O desafio é distinguir entre um e outro.
II – O que consta na Lei Complementar n. 87/1996 e as justificativas para as prorrogações no prazo de aproveitamento dos créditos
Consta a seguinte redação na Lei Complementar n. 87/1996, no art. 33, inciso I:
Art. 33. Na aplicação do art. 20 observar-se-á o seguinte:
I – somente darão direito ao crédito as mercadorias destinadas ao uso ou consumo do estabelecimento, nele entradas a partir de 1º de janeiro de 1998.
Essa foi a primeira redação. Posteriormente foram editadas mais cinco leis prorrogando o prazo de fruição desse benefício para outros anos. A última prorrogação ocorreu em 2010, pela Lei Complementar n. 138/2010, estendendo esse prazo para 1º/01/2020; ou seja, os contribuintes somente poderão se aproveitar desses créditos de aquisição de material de uso e consumo a partir dessa última data.
Dentre as justificativas para essas sucessivas prorrogações, pode-se destacar duas:
- Minimizar, para os Estados e o DF, em parte, os prejuízos tributários que lhes foram impostos pelas desonerações do ICMS e ampliações das possibilidades de apropriação de créditos de ICMS previstas pela Lei Complementar n. 87/1996;
- Garantia de receitas importantes para os entes federados, inclusive os municipais, das quais não podem abrir mão devido à escassez de recursos para atender a demandas cada vez maiores, seja de cunho social, seja de investimentos em infraestrutura.
III – Julgados no TARF – Tribunal Administrativo de Recursos Fiscais da Secretaria de Fazenda do Distrito Federal
Esta questão tem sido objeto de apreciação pelo TARF – Tribunal Administrativo de Recursos Fiscais da Secretaria de Fazenda do Distrito Federal[3], por meio de recursos voluntários e recursos extraordinários.
Algumas empresas fabricantes de cimento e de bebidas foram autuadas pela Secretaria de Fazenda do Distrito Federal – SEF/DF em face do aproveitamento de crédito de ICMS de materiais de uso e consumo, como os já exemplificados.
Os autos de infração foram julgados procedentes em primeira instância na SEF/DF. Irresignadas contra essa decisão, essas empresas impetraram recursos junto ao TARF.
Esses recursos foram julgados e desprovidos pelas câmaras e pelo Pleno desse Tribunal.
Cito a seguir o Acórdão da 1ª Câmara do TARF n. 011/2015, o qual espelha uma das decisões desfavoráveis a esses contribuintes.
ACÓRDÃO DA 1ª CÂMARA Nº 011/2015
EMENTA: ICMS. AUTO DE INFRAÇÃO. PRELIMINAR DE NULIDADE. REJEIÇÃO. Há que se rejeitar a preliminar de nulidade do auto de infração, tendo em vista que este foi lavrado em consonância com a legislação tributária aplicável prevista para as infrações cometidas. PRELIMINAR DE DECADÊNCIA. REJEIÇÃO. Deve ser rejeitada a preliminar de decadência, vez que o período fiscalizado abrangido pela autuação se deu no prazo previsto no art. 173, I, do CTN. CRÉDITOS FISCAIS. APROVEITAMENTO INDEVIDO. MERCADORIAS DE USO E CONSUMO. É procedente o auto de infração que exigiu o imposto não recolhido em face do aproveitamento indevido de crédito fiscal relativo a mercadorias de uso e consumo. DIFERENCIAL DE ALÍQUOTA. Há que ser cobrado, mediante auto de infração, diferencial de alíquota sobre mercadorias de uso e consumo e para o ativo imobilizado adquiridas de outra unidade federada. ESTORNO DE CRÉDITO FISCAL. MAJORAÇÃO NA BASE DE CÁLCULO E OUTROS CRÉDITOS NÃO COMPROVADOS. SERVIÇO DE TRANSPORTE PRESTADO POR AUTÔNOMO OU EMPRESA SEM INSCRIÇÃO NO CFDF. AUTUAÇÃO. PROCEDÊNCIA. É cabível a autuação nos seguintes casos: I) estorno de crédito fiscal aproveitado a maior em razão de majoração na base de cálculo; II) estorno de crédito fiscal escriturado no Livro Registro de Apuração do ICMS – LRAICMS no campo “Outros créditos” e não comprovados; III) estorno de crédito fiscal relativo a serviço de transporte interestadual efetuado por autônomo ou empresa não inscritos no Cadastro Fiscal do DF, sem comprovação de recolhimento do ICMS sobre o frete. MATÉRIAS PRIMAS. APROVEITAMENTO DE CRÉDITO FISCAL. ALEGAÇÃO. REQUISITOS. NÃO COMPROVAÇÃO. Não deve prosperar a alegação de que o aproveitamento de crédito fiscal se deu em razão de que os materiais eram matérias primas, e não de uso e consumo, tendo em vista não restarem presentes os requisitos de agregação ao produto final fazendo dele parte. AQUISIÇÃO DE MATERIAL DE USO E CONSUMO. PRAZO LEGAL. VEDAÇÃO. É vedado o aproveitamento de crédito na aquisição de material de uso e consumo antes do prazo previsto no art. 33, I, da Lei Complementar nº 87/1996. Recurso Voluntário que se desprovê.
IV – os argumentos dos contribuintes e do fisco acerca do aproveitamento dos créditos
Na fundamentação do entendimento acerca da regularidade ou não do aproveitamento de crédito de ICMS, existem argumentos das indústrias cimenteira e de bebidas e dos fiscos estaduais.
Destaco primeiramente os argumentos das indústrias.
Na produção/industrialização de cimento, esses materiais são considerados produtos intermediários, por exemplo: materiais de embalagem, combustíveis e lubrificantes, que são consumidos durante o processo de industrialização.
O óleo combustível integra o processo produtivo do cimento, pois é sempre aplicado como forma de energia, sendo essencial, e se incorpora ao produto final.
Explosivos, refratários, bolas de aço, placas de revestimento, paletes de madeira, roletes e pneus são produtos intermediários consumidos durante o processo produtivo, não sendo classificados como bens do ativo permanente, e sim como custo do produto.
O gás e o combustível não são materiais de uso e consumo da empresa, e sim mercadorias diretamente relacionadas à atividade do estabelecimento.
Tais combustíveis são utilizados nas empilhadeiras e nos veículos empregados nas vendas dos produtos comercializados.
Aduzo também os argumentos dos auditores autuantes e dos julgadores de primeira e segunda instância da Secretaria de Fazenda do DF.
O aproveitamento de crédito fiscal do ICMS é indevido, pois o óleo combustível é material de uso e consumido no processo produtivo do cimento.
Os conceitos de matéria-prima e insumo são claros, sendo aqueles materiais que se agregam ao produto final, fazendo parte dele. No caso do cimento, um dos insumos empregados na sua fabricação é a argila. Esta e o calcário são considerados matérias-primas, presentes na composição do cimento pronto.
Não é o caso do óleo diesel, de bolas de aço e de explosivos, que não estão presentes no produto final cimento, pois se extinguem no processo produtivo.
O gás e o óleo combustível empregados na indústria de bebidas não podem ser considerados insumos do produto final bebida, porque dele não fazem parte.
O fato de determinada mercadoria participar direta ou indiretamente na preparação de matérias-primas, materiais intermediários, suporte físico ou no processo fabril não garante o direito ao aproveitamento do crédito do ICMS pela sua entrada, mas condiciona-se a ter uma nova saída tributada.
Uma simples relação de mercadorias indicando sua utilização no suporte físico ou no processo industrial não é suficiente para haver direito ao crédito, sendo indispensável que haja nova e efetiva saída tributada para possibilitar a compensação do ICMS.
Uma outra argumentação dos contribuintes é a de que utiliza sistematicamente a expressão “no processo”. Quanto a esse ponto, cito parte de manifestação dos autuantes, em um dos processos de auto de infração, contra-argumentando: “Ocorre que os dispositivos da lei não adotam a expressão ‘empregado no processo’ ou mesmo ‘no processo’, como quer fazer crer o contribuinte. Na verdade, a lei adota fatos jurídico-tributários afetos à utilidade econômica, se referindo a créditos por entradas ‘para integração ou consumo em processo’, ‘consumida no estabelecimento’, ‘destinadas ao uso ou consumo do estabelecimento’. Para disciplinar o modelo de não cumulatividade, a lei adotou algumas categorias para diferenciar os regimes de créditos, distinguindo as mercadorias destinadas à revenda das mercadorias destinadas a uso, consumo ou ativo permanente, individualizando, ainda, a energia elétrica consumida no estabelecimento e a mercadoria destinada à integração. Esta é a grande diferença necessária para entender a tese do contribuinte, pois ela nega a existência destas categorias”.
V – Entendimento jurisprudencial
O Superior Tribunal de Justiça – STJ tem firmado entendimento jurisprudencial no sentido de que o aproveitamento dos créditos de material de uso e consumo são indevidos, se feitos antes de 1º/01/2020, conforme determina a Lei Complementar n. 87/1996.
Cito a seguir Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n. 517939/PR:
AgRg no AREsp 517939 / PR
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL
2014/0094334-0
Relator: Ministro HUMBERTO MARTINS (1130)
Órgão Julgador T2 – SEGUNDA TURMA
Data do Julgamento 14/10/2014
Data da Publicação/Fonte DJe 24/10/2014
Ementa
TRIBUTÁRIO. ICMS. ATIVO PERMANENTE. CREDITAMENTO. LIMITAÇÃO TEMPORAL. LEGALIDADE. SÚMULA 83/STJ. MATERIAIS QUE NÃO FAZEM PARTE DO PROCESSO PRODUTIVO. SÚMULA 7/STJ.
- Ao apreciar a controvérsia acerca da possibilidade de creditamento de ICMS sobre produtos adquiridos pela empresa recorrida, integrantes de seu processo produtivo, o Tribunal de origem manifestou-se em consonância com a jurisprudência desta Corte Superior, no sentido de que são legítimas as restrições impostas pela Lei Complementar n. 87/96, inclusive a limitação temporal prevista em seu art. 33 para o aproveitamento dos créditos de ICMS em relação à aquisição de bens destinados ao uso e consumo, ou ao ativo permanente do estabelecimento contribuinte.
- A Corte de origem concluiu que os materiais em discussão, quais sejam, a) Correia e Esponja Massageadora de Rótulos, b) Materiais de Segurança (EPIs), e c) Serviços de Telecomunicações estão compreendidos no conceito de mercadorias de uso ou consumo do estabelecimento, para o fim de impedir o imediato creditamento de ICMS em relação à aquisição desses itens.
- De fato, de acordo com o contexto fático probatório delineado pelo Tribunal de origem, vê-se que os referidos materiais adquiridos pela recorrente não são integralmente consumidos no processo de industrialização, não estando intrinsecamente ligados, de maneira indissociável, à essa cadeia produtiva.
- Nesse contexto, entender que tais materiais dizem respeito ao uso e consumo do estabelecimento e, por isso, o creditamento de ICMS em razão dessas entradas não está sujeito à postergação de que trata o art. 33, I, da LC 87/96, demandaria a incursão no contexto fático dos autos, impossível nesta Corte ante o óbice da Súmula 7/STJ. Agravo regimental improvido.”
CONCLUSÃO
Conforme discutido ao longo deste artigo, trata-se de tema controverso e de relevância, em vista das consequências que tem produzido, tanto para os contribuintes envolvidos quanto para os fiscos estaduais.
O argumento de que o aproveitamento de créditos de ICMS de materiais de uso e consumo levado a cabo pelas indústrias de cimento e de bebidas é indevido e tem prevalecido tem sido o mais forte na minha visão.
Justifica-se esse argumento pelo fato de que o coque e o óleo combustível são materiais de uso e consumo, e não matéria-prima/insumo no processo produtivo do cimento, pois o conceito de insumo é claro, sendo aquele material que se agrega ao produto final, fazendo parte dele.
Há que se registrar que esse aproveitamento de crédito é autorizado pela Lei Complementar n. 87/1996, contudo somente a partir de 1º/01/2020. Dessa forma, as empresas que se creditaram do ICMS nas aquisições de material de uso e consumo antes dessa data o fizeram em desacordo com a legislação de regência.
Por fim, não se pode desconsiderar os argumentos das indústrias, que, conforme exposto, não têm prevalecido nos tribunais de recursos fiscais estaduais e no STJ.
REFERÊNCIAS
KOCH, Deonísio. Manual do ICMS – Comentários à Lei Complementar 87/96. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2010.
OLIVEIRA, José Jayme de Macedo. Impostos Estaduais: ICMS, ITCD, IPVA. São Paulo: Saraiva, 2009.
[1] KOCH, Deonízio. Manual do ICMS – Comentários à Lei Complementar 87/96. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2010, p. 323.
[2] OLIVEIRA, José Jayme de Macedo. Impostos Estaduais: ICMS, ITCD, IPVA. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 217.
[3] TARF – Tribunal Administrativo de Recursos Fiscais, órgão de julgamento de segunda instância da Secretaria de Fazenda do Distrito Federal, que é composto por quatorze conselheiros, sendo metade representantes dos segmentos econômicos (indústria, agricultura, ensino, telecomunicações) e a outra metade, por auditores-fiscais da Receita do DF, os quais têm competência de julgar recursos voluntários, por exemplo: autos de infração julgados procedentes pela primeira instância, e recursos de jurisdição voluntária, por exemplo: reconhecimento de isenção de ICMS para portadores de deficiência física que se enquadram nos requisitos da lei.
Rudson Domingos Bueno – Auditor Fiscal da Receita da Secretaria de Fazenda do Distrito Federal, Conselheiro do Tribunal Administrativo de Recursos Fiscais – TARF, Funções exercidas na Secretaria de Fazenda do DF: chefe da Divisão de Tributos Imobiliários, chefe do Núcleo de Monitoramento do ISS, chefe do Núcleo de Monitoramento de Regimes Especiais, coordenador técnico da Diretoria de Fiscalização Tributária.Mestre em Direito Internacional Econômico pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Ciências Econômicas pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal-AEUDF, Pós-graduado em Política e Administração Tributária pela Fundação Getúlio Vargas/Brasília, Pós-graduado em Engenharia Econômica pelo ICAT/AEUDF, Pós-graduado em Finanças Públicas pela University of Bath – Reino Unido, Instrutor em cursos e seminários sobre: ICMS, ISS, IPTU, IPVA, ITBI, ITCD, ITR, Simples Nacional e Auditoria Fiscal-Contábil nas seguintes empresas/órgãos: Ione Cursos, Meta Treinamentos, ESAF, Escola Nacional de Governo, Gran Cursos, Ônix Treinamentos, RPO Consultoria, Prime Treinamentos, CDT/UnB e IBMEC. Autor do livro: Tributação Sobre Serviços, Ed. Juruá.
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