Por Fabrício Motta
A contratação de serviços de advocacia pela Administração Pública constitui tema envolto em controvérsias e interpretações extremadas, seja por parte dos órgãos de controle, seja por parte dos advogados. Por essas razões, o tema é responsável por considerável número de ações judiciais movidas pelo Ministério Público e de processos de tomadas de contas especial no âmbito dos Tribunais de Contas.
As discussões são direcionadas principalmente à possibilidade de contratação direta dos serviços de advocacia por inexigibilidade de licitação, com amparo no artigo 25, inciso II, da Lei 8.666/93.
No que se refere à Administração Municipal, o tema possui particular interesse em razão da imensa gama de contratações de serviços de assessoria jurídica, pareceres (consultoria) e advocacia contenciosa, com maior incidência e largueza de objeto nos municípios despidos de procuradoria própria, composta por procuradores ocupantes de cargos públicos, como também nos Municípios que possuem procuradorias ainda incipientes e dependentes de fomento técnico e aparelhamento.
Em julgado recente, o Supremo Tribunal Federal analisou a possibilidade de contratação direta de serviços de consultoria jurídica e patrocínio judicial do município de Joinvile (um dos maiores de Santa Catarina) na retomada dos serviços concedidos de abastecimento de água e esgoto. O acórdão, cuja ementa segue abaixo, foi relatado pelo ministro Luís Roberto Barroso e enfrentou importantes questões que devem contribuir para diminuir as tensões e colocar rumos nas ações e processos em curso a envolver o tema.
“IMPUTAÇÃO DE CRIME DE INEXIGÊNCIA INDEVIDA DE LICITAÇÃO. SERVIÇOS ADVOCATÍCIOS. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA POR FALTA DE JUSTA CAUSA. A contratação direta de escritório de advocacia, sem licitação, deve observar os seguintes parâmetros: a) existência de procedimento administrativo formal; b) notória especialização profissional; c) natureza singular do serviço; d) demonstração da inadequação da prestação do serviço pelos integrantes do Poder Público; e) cobrança de preço compatível com o praticado pelo mercado. Incontroversa a especialidade do escritório de advocacia, deve ser considerado singular o serviço de retomada de concessão de saneamento básico do Município de Joinville, diante das circunstâncias do caso concreto. Atendimento dos demais pressupostos para a contratação direta. Denúncia rejeitada por falta de justa causa”. (Inq 3074-SC, julgado pela Primeira Turma em 26/08/14).
Em outra ocasião, o mesmo STF tratou, com proficiência, de questão semelhante. No Inquérito 3.077/AL, relatado pelo ministro Dias Toffoli, foi analisada denúncia ofertada contra a então Prefeita e contra o procurador municipal (que emitiu o parecer jurídico) pela prática do crime previsto no artigo 89, caput, da Lei 8.666/93, bem como contra sócios da contratada, pela prática do crime previsto no artigo 89, parágrafo único, da mesma lei. No caso, o município, alegando a necessidade de otimização da receita municipal por meio de serviços de consultoria e capacitação, contratou empresa de auditoria mediante inexigibilidade de licitação. Nesse último julgado, merece destaque o seguinte trecho da ementa:
“O que a norma extraída do texto legal exige é a notória especialização, associada ao elemento subjetivo confiança. Há, no caso concreto, requisitos suficientes para o seu enquadramento em situação na qual não incide o dever de licitar, ou seja, de inexigibilidade de licitação: os profissionais contratados possuíam notória especialização, comprovada nos autos, além de desfrutarem da confiança da Administração. Ilegalidade inexistente. Fato atípico”.
A análise dos dois acórdãos permite a observação de questões centrais sedimentadas na jurisprudência do STF e que não raro são negligenciadas nas ações judiciais propostas pelo MP e nas tomadas de contas instauradas pelos tribunais de contas:
a) É possível a contratação precedida de inexigibilidade de licitação, com base no artigo 25, II, atendidos os requisitos da lei. As interpretações extremadas que pretendem simplesmente aniquilar a possibilidade fática de contratação direta não se coadunam com as disposições da Lei de Licitações;
b) Esta hipótese de contratação direta tem cabimento mesmo quando haja uma pluralidade de especialistas aptos a prestarem os serviços à Administração, porquanto não se trata de hipótese de exclusividade. Desta forma, não cabe o argumento de que a existência de potenciais outros profissionais ou empresas aptos a prestarem o serviço impede a inexigibilidade de licitação;
c) Uma vez presentes os requisitos da Lei 8.666/93, a decisão de contratar e a escolha do contratado — dentre os que cumprem os pressupostos, obviamente — inserem-se na esfera de discricionariedade própria da Administração Pública;
d) A eventual existência de corpo jurídico próprio não obsta a possibilidade de contratação direta, cumpridos os requisitos legais. Se a existência do corpo jurídico fosse impeditivo, o artigo 13, incisos II, III e V da Lei 8.666/93 seria inconstitucional, porquanto admite expressamente a contratação de pareceres, consultoria, assessoramento e patrocínio de causas judiciais e administrativas. Além disso, é de rigor avaliar concretamente a aptidão profissional do corpo jurídico disponível para a Administração e a questão da confiança, ligada a aspectos discricionários, deve ser considerada para fins de licitude da decisão.
Para além dessas questões, convém ressaltar que a caracterização objetiva do serviço a ser contratado é o primeiro requisito essencial para a validade da contratação direta. Esse aspecto passa pela adequada percepção do que se deve entender por serviço de natureza singular. O fato é que nem todo serviço é singular; tampouco todo serviço é comum. É ainda possível que serviços a priori comuns transmudem-se, a depender das circunstâncias fáticas e das necessidades da Administração, em serviços singulares.
A característica singular dos serviços de advocacia deve ser apta a exigir a contratação de advogado ou escritório com qualificações diferenciadas: atividades jurídicas rotineiras, próprias do dia a dia do funcionamento dos Municípios — desempenháveis de maneira idêntica e indiferenciada (tanto faz quem o executa) por qualquer profissional — não haverão de ser objeto de contratação direta por inexigibilidade (ver TCU: Acórdão 5.318/2010-2ª Câmara, TC-030.816/2007-2, Rel. Min-Subst. André Luís de Carvalho, 14.09.2011). Essa afirmação não implica juízo contrário à existência da advocacia pública municipal, estruturada em carreira, como impõe interpretação sistemática da Constituição. Ao contrário, essa interpretação é necessária para que se compatibilize a aplicação das normas constitucionais e legais com a diversidade imperante no cenário fático municipal: nosso país possui 5.570 municípios, de portes variadíssimos, sujeitos às mesmas leis gerais.
Por outro lado, não se vê impeditivo à contratação direta, mesmo que o município possua quadro próprio de procuradores, quando se estiver diante, entre outras, de situações: (a) que requeiram conhecimentos específicos e diferenciados (considerando-se a estrutura administrativa própria e as capacidades técnicas existentes); (b) que envolvam teses inovadoras e importantes, com a potencialidade de trazer benefícios financeiros e/ou administrativos para o município; (c) que necessitem de conhecimentos altamente especializados (STF, Inquérito 3.077), inclusive para dirimir controvérsias internas ou para conferir maior segurança à decisão administrativa diante de divergências doutrinárias e jurisprudenciais; (d) que possam periclitar administrativa ou financeiramente a Administração Municipal, restando a situação devidamente comprovada; ou (e) que haja conflito de interesses relativamente aos próprios procuradores.
O voto do ministro Dias Toffoli no Inquérito 3.077-AL fez referência a outra questão importante: o âmbito de comprovação da notoriedade do profissional ou empresa. Com efeito, uma interpretação muito restritiva do âmbito da notoriedade poderia inviabilizar a aplicação do dispositivo no âmbito municipal e também dar ensejo à caracterização de indesejável reserva de mercado para profissionais determinados:
“[Há] profissionais que são conhecidos em todo o país, cujos estudos são tomados como referência aos demais que militam na área. Não haverá, aqui, dúvida alguma de que esses agregam notória especialização. Ocorre que, em sentido diametralmente oposto, existem profissionais que não são nem remotamente conhecidos; recém-formados, sem experiência alguma, sendo igualmente extreme de dúvida que os mesmos não detém notória especialização. Ocorre que, entre um grupo e outro, se afigura um terceiro, composto por profissionais não tão conhecidos quanto os primeiros, nem tão desconhecidos quanto os segundos. Trata-se, é certo, da maioria, daqueles que ocupam posição mediana: estão no mercado; possuem alguma experiência, já realizaram alguns estudos, de certa forma são até mesmo conhecidos, mas igualmente não podem ser reputados detentores de notória especialização. É que a expressão exige experiência e estudos que vão acima da média, tocante a profissionais realmente destacados. Nesse ponto reside a chamada zona de incerteza, em que já não é possível distinguir com exatidão quem detém e quem não detém notória especialização. Aí vige a competência discricionária atribuída ao agente administrativo, que avalia a experiência dos profissionais com margem de liberdade, pelo que é essencial a confiança depositada no contratado. Em outras palavras, a notoriedade deve ser aferida no âmbito de atuação da própria entidade contratante. Muitas vezes não haveria sentido em se exigir a contratação de escritórios ou advogados com renome nacional e internacional cujos honorários talvez sequer pudessem ser suportados pelos cofres municipais. Especificamente no tocante à denúncia apreciada, averbou o Ministro-Relator: “Não se apurou, outrossim, que houvesse, naquela região, empresa mais bem capacitada para a realização dos serviços, tampouco que tenha havido descompasso entre o valor do contrato (de R$ 139.068,00) e o valor real dos serviços prestados”.
A existência de uma pluralidade de profissionais aptos à satisfação do objeto, como se disse, não descaracteriza a inexigibilidade, tampouco retira a carga de subjetividade relativa à execução do objeto: cada profissional ou empresa o executaria de uma forma, mediante a aplicação de seus conhecimentos, critérios, técnicas e táticas. Diante dessa pluralidade de opções para satisfazer o objeto desejado, a questão que naturalmente surge é a de como escolher a solução que melhor atenda ao interesse público, remanescendo, na espécie, típico exercício de competência discricionária. Cabe à autoridade competente e aos seus auxiliares avaliar, motivadamente, a contratação conveniente e oportuna para o município.
Assim é que diante de diversos advogados ou escritórios que sejam portadores de especialização e reconhecimento para a efetiva execução do objeto (serviço) pretendido pela Administração, a escolha que é subjetiva — mas devidamente motivada — deve recair sobre aquele que, em razão do cumprimento dos elementos objetivos (desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica) transmite à Administração a confiança de que o seu trabalho é o mais adequado (confira-se, no TCU, o Acórdão 2.616/2015-Plenário, TC 017.110/2015-7, rel. Min. Benjamin Zymler, 21.10.2015).
Tendo como exemplo os precedentes do STF e do TCU e a voz da doutrina especializada, não se pode simplesmente presumir a existência de crime e/ou improbidade na contratação direta de serviços de advocacia e consultoria jurídica, como se tem visto na atuação dos órgãos de controle.
Mais importante do que se preocupar com disputas interpretativas e com a criação de requisitos não impostos pelo ordenamento é conhecer as circunstâncias de cada contratação, avaliar motivadamente a conduta dos agentes envolvidos em cada caso, os benefícios que a Administração objetivou e/ou colheu pela execução dos serviços e a compatibilidade dos valores ajustados com os praticados no mercado. No mais, deve-se afastar em definitivo a punição dos “delitos de exegese”, trate-se de advocacia pública ou privada.
Fonte: Conjur
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