O Decreto n.º 9.785, de 07 de maio de 2019 trouxe diversas alterações relacionadas ao uso de armas de fogo no Brasil. Trata-se de um decreto complexo e que será muito estudado e comentado nas próximas semanas.
Isso sem falar nas inúmeras disposições que serão judicialmente questionadas. Sim, isso inevitavelmente vai ocorrer. Trata-se de tema polêmico na sociedade brasileira e com interesses conflitantes.
Agora, do ponto de vista dos concursos públicos, qual a relevância prática desse decreto?
Primeiro, precisamos compreender que decretos são atos normativos editados pelo Chefe do Poder Executivo e que têm como finalidade regulamentar a lei. Emanam, portanto, do poder regulamentar. E, mais importante, o decreto jamais pode ir de encontro ao que está estabelecido em uma lei, já que sua função é regulamentar e não alterar suas disposições.
Muito bem, a lei que o Decreto n.º 9.785/2019 visa regulamentar é a Lei n.º 10.826/03, também conhecida como Estatuto do Desarmamento, o qual é objeto constante de provas que cobram Direito Penal. Se, por um lado, o Estatuto do Desarmamento despenca em concursos públicos, por outro lado, os decretos que regulamentam a Lei n.º 10.826/03, raramente são objeto de prova.
Assim, a princípio, quero tranquilizar você, estudante. Não é porque esse decreto acaba de ser publicado que necessariamente será objeto da sua prova. Destaco que, para ser objeto de prova, ele deve estar expressamente previsto no conteúdo programático do edital. Nos concursos das carreiras policiais ele pode ter maior relevância, de forma que os dispositivos mais importantes serão comentados oportunamente.
Dito isso, quero analisar um ponto fundamental do decreto e que deve, este sim, repercutir em provas de concursos públicos. Trata-se da possibilidade de aplicação da retroatividade benéfica às normas penais em branco.
Como vocês bem sabem, os tipos penais previstos na Lei n.º 10.826/03 são considerados normas penais em branco heterogênea. Isto é, são tipos penais que exigem a complementação por meio de atos administrativos para que venham a ter aplicação prática.
Ora, como posso imputar a alguém o delito do artigo 12 do Estatuto do Desarmamento (posse irregular de arma de fogo de uso permitido), se a Lei 10.826/03 não apresenta o conceito de “arma de fogo de uso permitido”?
Quem apresenta esse conceito e possibilita a aplicação prática do artigo 12 e demais delitos do Estatuto do Desarmamento é o Decreto n.º 3.665/2000. Logo, que fique claro, os tipos penais do Estatuto do Desarmamento exigem complementação e, portanto, são normas penais em branco.
Muito bem, aqui chegamos em um ponto fundamental. O Decreto n.º 9.785/2019 apresenta uma nova distinção entre armas de fogo de calibre restrito e armas de fogo de calibre permitido.
Isso é relevante? Sem dúvida! Veja a seguinte situação: se o agente possui ou porta, sem autorização, uma arma de fogo de calibre permitido, devo lhe imputar os delitos do artigo 12 ou 14 da Lei n.º 10.826/03. Por outro lado, se o agente possui ou porta, sem autorização, uma arma de fogo de calibre restrito, devo lhe imputar o delito do artigo 16 da mesma lei. E, aqui, surge outro ponto a ser destacado: o delito do artigo 16 da Lei n.º 10.826/03 (posse ou porte ilegal de arma de fogo) é crime hediondo, conforme estabelecido na Lei n.º 8.072/90:
Lei 8.072/90 – Art. 1º (…)
Parágrafo único. Consideram-se também hediondos o crime de genocídio (…) e o de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, previsto no art. 16 da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, todos tentados ou consumados.
O Decreto n.º 9.785/2019 alterou o critério de definição de calibre restrito e permitido. A partir de agora, será de calibre permitido as armas de fogo que, com a utilização de munição comum, não atinjam, na saída do cano, energia cinética superior a mil e duzentas libras-pé e mil seiscentos e vinte joules (art. 2º, I, “a”, Decreto n.º 9.785/2019). A título de comparação, antes, o calibre restrito era a partir de 407 joules.
Em outras palavras, armamentos curtos que tinham o calibre restrito, como 9mm, .40, .45 e 357, passam a ser considerados de calibre permitido.
Assim, por exemplo, se o agente for flagrado portando, sem autorização, uma arma de fogo de calibre .40, a ele deve ser imputado o delito do artigo 14, da Lei n.º 10.826/03 e não o artigo 16. Veja que importante alteração: antes, este mesmo agente responderia por um delito mais grave e hediondo. Agora, passa a responder por um delito mais brando e não hediondo.
E o que acontece com quem foi preso ou condenado por portar uma arma de fogo que antes era de calibre restrito e agora passa a ser de calibre permitido?
Eu te respondo: RETROATIVIDADE DA LEI PENAL BENÉFICA.
Ou seja, o agente que praticou o delito de posse ou porte de arma de fogo de calibre restrito passa a ser beneficiado pelo novo decreto, desde que o armamento se enquadre como de calibre permitido, segundo a nova regulamentação do Decreto n.º 9.785/2019.
Cumpre ressaltar que há vozes contrárias à aplicação da retroatividade benéfica quando o benefício é oriundo do complemento da norma penal em branco. Todavia, o entendimento majoritário aponta que deve, caso a caso, ser aplicado a novatio legis in mellius (ainda que o benefício esteja previsto no complemento da norma penal em branco).
Portanto, atente-se a este ponto! Se surgir em sua prova, você já estará preparado(a).
Érico Palazzo
Delegado de Polícia do Distrito Federal, ex-agente da PCDF. Já atuou como advogado e consultor tributarista. É especialista em Direito Administrativo pela Fundação Getúlio Vargas e foi aprovado em diversos concursos públicos das áreas policial e jurídica nos últimos anos. É professor de Direito Penal e Legislação Extravagante Penal.
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