Hoje analisaremos criticamente o que a doutrina constitucional convencionou chamar de neoconstitucionalismo, que consistiria em um movimento teórico pós-segunda guerra, com intensa carga ideológica, sendo uma contraposição ao positivismo jurídico.
Após os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, a teoria do direito tenta reaproximar direito e moral, direito e justiça. Nesse contexto, o neoconstitucionalismo surge na busca de introduzir uma fundamentação axiológica para o direito. Em razão da carga ideológica envolvida na sua construção teórica, o próprio conceito de neoconstitucionalismo pode ser caracterizado como um conceito antitético-assimétrico, ou seja, é um conceito que desmoraliza os que se lhe opõe (KOSELLECK, 2006).
Nesse contexto, o termo neoconstitucionalismo é muito difícil de se delimitar conceitualmente; por essa razão, preferimos trazer um apanhado das principais características desse movimento teórico, a partir da compilação realizada por Humberto Ávila, que distingue quatro fundamentos do neoconstitucionalismo (ÁVILA, 2009).
Em primeiro lugar, teríamos o fundamento normativo, que adota a primazia dos princípios sobre as regras, destacando a dignidade da pessoa humana, que surge como supraprincípio. Essa é uma consequência direta do holocausto nazista, que demonstrou a necessidade de se colocar o homem no centro do sistema jurídico.
O fundamento metodológico do neoconstitucionalismo propõe que a subsunção seja substituída pela ponderação. Já o seu fundamento axiológico parte da justiça geral para a justiça particular, adequando o direito às peculiaridades do caso concreto, o que pode gerar o problema de consistência do ordenamento jurídico. Por fim, há o fundamento organizacional, que diz respeito à mudança de primazia do Poder Legislativo para o Poder Judiciário.
Muito embora se reconheçam alguns benefícios trazidos pelo modelo proposto pelos chamados neoconstitucionalistas, diversas são as críticas que vêm sendo levantadas ao movimento no Brasil. Uma delas merece especial atenção, qual seja: o agravamento do problema da consistência do sistema jurídico (já tão característico da história constitucional brasileira), sobretudo, em razão do uso abusivo dos princípios e da aplicação da “ponderação desmedida”. Tal prática gera o risco de construirmos um modelo no qual a consistência jurídica acabe por se diluir no social, permitindo que os princípios sejam articulados para encobrir favorecimentos a interesses particularistas envolvidos na solução do caso.
A principiologia neoconstitucionalista representa, com poucas exceções, uma importação acrítica de construções teóricas e dogmáticas, sem o crivo seletivo de uma recepção jurídico-constitucionalmente apropriada, que se apresentou desde o início como uma panaceia para solucionar todos os males da nossa prática jurídica e constitucional, enquanto, de outro lado, servia “ao afastamento de regras claras e ‘completas’, para encobrir decisões orientadas à satisfação de interesses particularistas” (NEVES, 2013, IX).
Uma das análises desse fenômeno com as quais mais concordo é feita por Marcelo Neves no seu “Entre Hidra e Hércules”. Apoiando-se na mitologia grega, Neves inverte a concepção de Dworkin, propondo que os princípios constitucionais sejam encarados como Hidra, uma vez que ampliam a possibilidade de argumentação, em decorrência do seu caráter plural ou policéfalo. Assim, no contexto de uma sociedade complexa, ao abrir a cadeia argumentativa, os princípios “estimulam a expressão do dissenso em torno de questões jurídicas e, ao mesmo tempo, servem à legitimação procedimental mediante a absorção do dissenso” (NEVES, 2013, XVIII). Por outro lado, propõe que as regras sejam entendidas como hercúleas, responsáveis por fechar a cadeia argumentativa, sendo indispensáveis, portanto, para a solução de todos os casos jurídicos.
Em suas palavras, “as regras, embora sejam balizadas ou mesmo construídas a partir de princípios, servem à domesticação desses, viabilizando, em caráter definitivo, o fechamento da cadeia argumentativa que contorna a interpretação e aplicação concreta do direito” (NEVES, 2013, XVIII).
Dito de outra forma, as regras não são suficientes para lidar com a complexidade dos “casos difíceis”, por isso os princípios são tão necessários para lidar com a complexidade, tornando-a relativamente estruturada, ou mesmo estruturável. Em contrapartida, também os princípios não são suficientes, pois as regras jurídicas reduzem seletivamente a complexidade já estruturável por força dos princípios, viabilizando a solução do caso concreto (NEVES, 2013, XIX).
Em síntese, regras e princípios são fundamentais para concretização jurídica, não havendo hierarquia entre essas duas espécies normativas. A relação entre regras e princípios, contudo, é paradoxal, conflituosa, existindo uma tendência a superestimar os princípios em detrimento das regras.
Em suma, de um lado, o uso abusivo dos princípios torna altíssimo o grau de incerteza e pode descambar em uma situação de insegurança jurídica incontrolável, relacionada à própria quebra da consistência do sistema jurídico e, pois, à destruição de suas fronteiras operativas.
Por outro lado, a tendência a superestimar as regras em detrimento dos princípios torna o sistema excessivamente rígido para enfrentar problemas sociais complexos, em nome de uma consistência incompatível com a adequação social do direito.
Portanto, trata-se, na relação entre princípios e regras, de superar (ou “desparadoxizar”), em cada caso concreto, no plano argumentativo, o paradoxo entre consistência jurídica e adequação social, que, em termos gerais, constitui o paradoxo da justiça como “fórmula de contingência do sistema jurídico” (NEVES, 2013, XX).
Resumidamente, a relação entre regras e princípios é circular, sendo impossível solucionar um caso concreto sem uma regra, nem que esta tenha que ser construída pelo órgão julgador (norma individual no sentido kelseniano). Também não se faz justiça sem a adequação da regra às peculiaridades do caso concreto.
A discussão é muito mais complexa, e o que expomos hoje representa apenas uma gota no oceano de debates. Em breve falaremos mais a respeito.
Até breve,
Chiara Ramos
Chiara Ramos
Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, em co-tutoria com a Universidade de Roma – La Sapienza. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Procuradora Federal, desde 2009. Atualmente exerce o cargo de Diretora da Escola da Advocacia Geral da União. É Editora-chefe da Revista da AGU, atualmente qualis B2. É instrutora da Escola da AGU, desde 2012. Foi professora da Graduação e da Pós-graduação da Faculdade Estácio Atual. Aprovada e nomeada em diversos concursos públicos, antes do término da graduação em direito, dentre os quais: Procurador Federal, Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Técnica Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho 6ª Região, Técnica Judiciária do Ministério Público de Pernambuco, Escrivã da Polícia Civil do Estado de Pernambuco.
IHERING, Rudolf von. La posesión. México: Tribunal Superior de Justicia del Distrito Federal, 2003.
________. A luta pelo direito. São Paulo: Martin Claret, 2000.
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