Olá, queridas e queridos colegas.
Hoje abordaremos uma temática de extrema complexidade e relevância no contexto brasileiro: direito, inclusão e cidadania. Utilizaremos como referencial teórico o texto “Entre subintegração e sobreintegração: a cidadania inexistente”, de Marcelo Neves.
Inicialmente, é importante esclarecer que a noção de “direitos do cidadão”, no discurso das revoluções liberais burguesas, significa basicamente o direito de participação do indivíduo na formação da “vontade” do Estado. Gradativamente, esse sentido vai se tornando mais abrangente, incluindo não apenas os direitos individuais de liberdade, mas também os direitos políticos e sociais; todos, contudo, fundamentados em concepções individualistas e universalistas.
Pode-se falar, ainda, em uma quarta fase da cidadania, que se desenvolve com base nos chamados direitos de terceira geração (direitos coletivos, difusos), que viabilizaram ações contra práticas socialmente danosas das organizações impessoais, o que não seria possível nas fases anteriores.
A quinta fase do desenvolvimento do conteúdo da cidadania, por sua vez, abre-se fragmentariamente às diferenças, considerando o direito das minorias, por meio da noção de discriminações inversas (ações afirmativas, discriminações positivas, a exemplo das cotas raciais), sem as quais não se poderia pluralizar a cidadania.
E é justamente nesse contexto que ganha relevância o processo da juridificação na conquista e na ampliação da cidadania, mas o que significa esse termo? Bem, segundo Habermas, tal processo de juridificação da cidadania se desenvolveu em quatro fases. Vejamos.
A primeira diz respeito à fase dos clássicos direitos subjetivos privados, na qual não se podia falar em cidadania em razão da assimetria da relação entre soberano e súdito (Estado Absolutista).
A segunda fase, por sua vez, é fase da positivação dos direitos subjetivos de caráter liberal, na qual a cidadania surge como afirmação das liberdades negativas, oponíveis ao Estado (Estado Liberal/Burguês de Direito).
Já a terceira fase seria a de juridificação do processo de legitimação, com a emergência dos direitos subjetivos públicos democráticos, constituídos em liberdade positiva (Estado Democrático de Direito).
Por fim, temos a fase de positivação dos direitos sociais, na qual a intervenção do Estado se faz presente em todas as esferas sociais, da economia às relações familiares (Estado Democrático e Social de Direito).
Apesar de criticar a quarta fase da juridificação, pelas consequências desintegradoras da intervenção do direito no “mundo da vida”, Habermas reconhece seus efeitos positivos no que se refere à ampliação da cidadania.
Às quatro fases de Habermas, Marcelo Neves acrescenta uma quinta fase ao processo de juridificação, que seria justamente a instituição dos direitos coletivos/difusos e das discriminações positivas, as quais institucionalizam o direito de ser diferente.
Também na teoria sistêmica de Luhmann, a democracia é um pressuposto da positividade do direito, podendo ser lida como inclusão de toda a população na “prestação dos sistemas sociais”, ou seja, aos seus benefícios, vantagens e regras. Contudo, embora existam diferenças entre as teorias, sobretudo no que se refere à fundamentação ética do Direito, tanto em Luhmann quanto em Habermas, a autonomia do direito pode ser vista como pré-requisito de realização da cidadania.
A conquista dos novos direitos de cidadania passa, segundo Neves, por três momentos jurídico-políticos: a) o surgimento da semântica dos direitos humanos; b) a incorporação de tal semântica ao sistema constitucional interno, na forma de direitos fundamentais; e c) a concretização das normas constitucionais referentes aos direitos fundamentais. Caso esta última fase não se realize, a cidadania torna-se apenas uma “bela fachada” (Neves, 1994, p. 260).
Seria esse o caso do Brasil?
Bem, esse é o tema do nosso próximo encontro.
Sigamos com foco, força e fé.
Até breve,
Chiara Ramos
Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Clássica), em co-tutoria com a Universidade de Roma – La Sapienza. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Procuradora Federal, desde 2009. Membra da Comissão de Igualdade Racial da OAB-PE. Instrutora da ESA e da EAGU. Professora do Gran Cursos Online. Ocupou o cargo de Diretora da Escola da Advocacia Geral da União. Foi Editora-chefe da Revista da AGU. Lecionou na Graduação e na Pós-graduação da Faculdade Estácio Atual. Áreas de interesse: Direito Administrativo, Direito Constitucional, Ciência Política, Teoria Geral do Direito, Filosofia e Sociologia do Direito.
REFERÊNCIA:
Neves, Marcelo. “Entre subintegração e sobreintegração: a cidadania inexistente”. In: Dados, v. 37, 1994.
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