Caras e caros colegas,
Dando continuidade aos pressupostos teóricos para o desenvolvimento da concepção de Transconstituição, falaremos no texto de hoje sobre a justiça como uma construção da racionalidade específica do direito, segundo a perspectiva trazida por Marcelo Neves em seu “Transconstitucionalismo”.
No “Momento Filosofia”, já tivemos oportunidade de discutir o termo “justiça” em diversas acepções, desde Aristóteles, passando por Aquino, Hobbes, Rousseau, Locke e tantos outros. Essas concepções têm como ponto em comum o essencialismo das suas formulações, ou seja, esses teóricos acreditam na preexistência de uma verdade imutável, intrínseca ao objeto.
A perspectiva sistêmica parte de pressupostos bem diferentes, talvez por isso seja de tão difícil compreensão na primeira leitura. São milênios de tradição essencialista e poucas décadas de ruptura desse modo de pensar, o que justifica a estranheza tanto pela linguagem utilizada pela teoria sistêmica quanto pelas suas ideias.
A teoria luhmanniana não trabalha com a lógica de elementos essenciais que devem ser revelados pelo teórico, mas sim com a construção de sentidos pelos sistemas sociais. Tais sentidos são selecionados por uma infinidade de possibilidades, tendo sempre latente a ideia de que poderia ter sido outra a escolha do sistema. Ou seja, diferente dos conceitos essencialistas, que acreditam em elementos naturalmente predeterminados, Luhmann reconhece a contingência, afirmando que algo que é poderia não ser.
Esclarecidos os pressupostos iniciais, tentaremos esboçar o sentido de justiça para a perspectiva sistêmica. Para tanto, precisamos entender a justiça como racionalidade específica construída pelo direito. Claro que o sentido de justiça perpassa o direito, abrangendo diversas esferas sociais, mas aqui trataremos da sua especificidade jurídico-sistêmica.
Utilizando Luhmann, Neves diz que justiça (para o sistema jurídico) implica a “consistência jurídica” no plano da autorreferência (fechamento normativo/operacional) e da “adequação à sociedade” (abertura cognitiva), podendo ser caracterizada como uma “fórmula de contingência”, “porque motiva a ação e a comunicação no âmbito jurídico” (NEVES, 2009, p. 63).
Em síntese, a racionalidade do direito (justiça interna) exigiria a consistência constitucional, que possibilitaria a orientação do comportamento das pessoas e a estabilização de expectativas normativas. Nesse sentido, o sistema garantiria a segurança jurídica.
Contudo, além da consistência, a racionalidade específica do direito (justiça externa) também exige que haja adequação social, no sentido de possibilitar a convivência não destrutiva de diversos projetos e perspectivas, que são característicos da sociedade mundial complexa.
A relação entre justiça interna e externa é um dos paradoxos funcionais do direito, não havendo equilíbrio perfeito entre ambas. Assim descreve Neves: “o excesso de ênfase na consistência jurídico-constitucional pode levar a graves problemas de inadequação social do direito, que perde, então, sua capacidade de reorientar as expectativas normativas e, portanto, de legitimar-se socialmente. Por outro lado, um modelo de mera adequação social leva a um realismo juridicamente inconsistente. Na falta de valores, de morais e de interesses partilhados congruentemente na sociedade moderna supercomplexa, a ênfase excessiva na adequação social tende a levar a subordinação do direito a projetos particulares com pretensão de hegemonia absoluta” (NEVES, 2009, p. 65).
Tal paradoxo é condição para a diferenciação funcional do direito. Caso fosse superado o paradoxo da justiça, teríamos o fim do direito como sistema autônomo, “levando a uma desdiferenciação involutiva ou ensejadora de um ‘paraíso moral’ de plena realização da justiça, assim como o fim da escassez como fórmula de contingência da economia conduziria a um ‘paraíso da abundância’, a saber, a fim da economia” (NEVES, 2009, p. 66).
Neves afirma, ainda, que a justiça constitucional interna e externa depende da igualdade e se utiliza do conceito de igualdade de Walzer, no sentido de que o princípio constitucional da igualdade, em relação à consistência jurídica, significa que as diferenças dos outros sistemas sociais (política, educação, economia etc.), mesmo que legítimas, não devem transitar imediatamente para o direito, da mesma forma que os critérios de igualdade jurídica não devem transitar imediatamente para os outros campos sociais, impedindo ou dificultando a construção das diferenças legítimas, mesmo as assimétricas. Ou seja, a igualdade jurídico-constitucional, no sentido de justiça externa, deve ser adequadamente complexa, conforme a respectiva esfera social.
Por exemplo, seria inadequado a negação do poder familiar na relação entre pais e filhos ou a imposição da igualdade contrária a diferenças legítimas no campo da economia. Ou seja, “na dimensão da adequação social, a igualdade complexa exige sempre uma abertura construtiva com variações e adaptações permanentes, para que não leve a uma igualdade jurídica ‘imperial’, uma pseudoigualdade” (NEVES, 2009, p. 67).
Mesmo não estando o princípio constitucional da igualdade destinado a uma igualdade de fato (ou mesmo de direitos concretos), mas sim a uma “imposição contrafactual do acesso igualitário a direitos e remédios jurídicos” (NEVES, 2009, p. 67), deve-se reconhecer que fortes assimetrias em outros campos sociais podem minar a igualdade jurídica, pois o direito “perde a capacidade de imunizar diferenças decorrentes de outras esferas sociais, o que implica privilégios e discriminações juridicamente ilegítimos” (NEVES, 2009, p. 68). “Nesse sentido, o princípio jurídico da igualdade torna-se inócuo se não oferece direitos que possibilitem igualdade de oportunidades nas outras esferas da sociedade” (NEVES, 2009, p. 68).
Aqui Neves abre um parêntese para fazer uma crítica ao conceito de igualdade na teoria dos sistemas de Luhmann, que entende como igualdade, no sentido jurídico, “que os casos sejam tratados igualmente”, e, em seu uso político, “que os homens sejam tratados igualmente”. Para Neves, Luhmann reduziria com isso a norma de igualdade à legalidade, o que não corresponde à compreensão do princípio da igualdade no plano reflexivo da constituição. Ou seja, para Luhmann, utilizando a formulação Kelseniana, a igualdade jurídica seria igualdade “perante a lei” e a igualdade política seria igualdade “na lei”. Claro que o princípio da igualdade pressupõe o tratamento igual de casos, mas não deve ser reduzido a isso (NEVES, 2009, p. 68-69).
Por fim, propõe que a isonomia (como racionalidade jurídica no plano tanto da coerência interna quanto da adequação externa) seja entendida como norma, enquanto forma de dois lados (igual/desigual), o que importaria “a preferência pelo tratamento igual, exigindo-se do tratamento desigual uma sobrecarga argumentativa” (NEVES, 2009, p. 69).
Bem, sei que pareceu um pouco complicado, mas não desista. Continuaremos na próxima semana.
Até breve,
Chiara Ramos
Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, em co-tutoria com a Universidade de Roma – La Sapienza. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Procuradora Federal, desde 2009. Atualmente exerce o cargo de Diretora da Escola da Advocacia Geral da União. É Editora-chefe da Revista da AGU, atualmente qualis B2. É instrutora da Escola da AGU, desde 2012. Foi professora da Graduação e da Pós-graduação da Faculdade Estácio Atual. Aprovada e nomeada em diversos concursos públicos, antes do término da graduação em direito, dentre os quais: Procurador Federal, Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Técnica Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho 6ª Região, Técnica Judiciária do Ministério Público de Pernambuco, Escrivã da Polícia Civil do Estado de Pernambuco.
REFERÊNCIA:
NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: VMF Martins Fontes Ltda., 2009.
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