1 INTRODUÇÃO
Não bastasse a repulsa própria do estupro, a larga difusão de redes sociais digitais e de aplicativos de mensagens instantâneas favorece outro efeito negativo decorrente de crimes sexuais como aquele: a distribuição das imagens ou dos vídeos captados pelos criminosos durante a ação delitiva. Os danos às vítimas foram multiplicados, já que, além de terem suportado a violação indevida de seus corpos, passaram a ter expostas suas vergonhas e intimidades perante terceiros.
Com o espírito de frear e recriminar condutas da espécie, a Lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018, tipificou, no art. 218-C do Código Penal, a divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia, objeto desta análise.
2 CONDUTA
O crime do art. 218-C do Código Penal nasceu com a seguinte redação:
Divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia
Art. 218-C. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave.
Aumento de pena
§ 1º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação.
Exclusão de ilicitude
§ 2º Não há crime quando o agente pratica as condutas descritas no caput deste artigo em publicação de natureza jornalística, científica, cultural ou acadêmica com a adoção de recurso que impossibilite a identificação da vítima, ressalvada sua prévia autorização, caso seja maior de 18 (dezoito) anos.
O tipo é daqueles que se chamam misto alternativo, ou seja, possui mais de um núcleo ou verbo incriminador – são nove, na verdade (“oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar”) –, porém a consecução de mais de um deles importa um só crime, e não vários. Desse modo, se o sujeito ativo oferecer e, após isso, efetivamente transmitir vídeo que contenha cena de sexo, sem o consentimento da vítima, ainda assim só cometerá o delito uma vez, sendo o segundo ato proibido (“transmitir”) o exaurimento da primeira conduta vedada (“oferecer”). Há situação diferente, é evidente, quando se tratar de condutas variadas, praticadas em diversos estados de circunstâncias, contra vítimas distintas, por exemplo. Tem-se, aí, o concurso de crimes (material, formal ou continuado, conforme o caso).
Objetos materiais da infração penal, ou seja, aquilo que conjuga com os verbos recriminados, são “fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou […] cena de sexo, nudez ou pornografia”. O leque é bastante abrangente e parece suficiente para abarcar qualquer espécie de registro de cena de natureza sexual, seja estática ou em movimento, capaz de causar lesão à intimidade da vítima. Didaticamente, contudo, é bom distingui-los da seguinte maneira:
- a) fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável;
- b) fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena que faça apologia ou induza à prática de estupro ou de estupro de vulnerável; e
- c) fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de sexo, nudez ou pornografia.
É relevante perceber que a caracterização do crime não necessariamente pressupõe a violência ou o não consentimento da vítima para a realização do ato sexual captado, pois tanto a cena de estupro quanto a cena de sexo, nudez ou pornografia livremente produzida podem ser objeto do delito. A ausência de consentimento da vítima é elemento normativo e, portanto, requisito do crime quanto ao objeto material descrito na alínea c, acima, isto é, quando se tratar de divulgação de registro que contenha cena de sexo, nudez ou pornografia. Nessa hipótese, a captação pode até ter sido consentida, mas subsistirá a infração penal se sua divulgação não for autorizada, expressa ou tacitamente, pela vítima.
Ainda existe um elemento normativo complementar constante do tipo penal: “inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática”. A expressão é útil para lembrar, ao intérprete da norma, que as condutas proibidas podem ser praticadas livremente, até mesmo por intermédio de programas ou aplicações tecnológicas com extenso alcance. Tal circunstância, a propósito, se presente no caso concreto, é suficiente para permitir a elevação da pena-base para além do mínimo legal, quando da análise das circunstâncias judiciais (Código Penal, art. 59) por ocasião da dosimetria da pena.
3 SANÇÃO PENAL
A pena cominada ao delito de divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia é a reclusão de um a cinco anos, se o fato não constituir crime mais grave. Tecnicamente, tem-se um crime, segundo o art. 1º da Lei de Introdução do Código Penal (Decreto-lei nº 3.914, de 9 de dezembro de 1941), não sendo possível a aplicação da transação penal ou da suspensão condicional do processo, institutos próprios das infrações penais de menor potencial ofensivo (arts. 76 e 89 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995).
Notável, também, a subsidiariedade do delito – “se o ato não constitui crime mais grave”, é o que consta da segunda parte da pena. Significa dizer que a divulgação de cena de estupro, sexo, nudez ou pornografia não elide a ocorrência de outra infração mais grave como a extorsão, v.g., se o agente divulga, aos poucos e em grau crescente de ofensividade, cenas de nudez e sexo da vítima para constrangê-la ao pagamento de determinada quantia em dinheiro. Nesse caso, o crime do art. 218-C cede espaço ao delito do art. 158 do Código Penal, mais grave do que aquele.
4 BEM JURÍDICO TUTELADO
A dignidade sexual (nome do título que abriga o crime) e a intimidade são os bens jurídicos tutelados pela norma penal. Na hipótese das vítimas de estupro, é a sua intimidade que resta violada quando, após terem vivido os horrores daquela conduta, veem-se expostas adicionalmente em razão da divulgação indevida das imagens do fato ocorrido. Já no caso das vítimas da divulgação de cenas de sexo, nudez ou pornografia consentidos, tanto sua intimidade quanto sua liberdade sexual são maculadas, porquanto foi ferido o direito que têm de escolher e preservar quando, como e com quem se relacionaram sexualmente.
5 SUJEITOS
Sujeitos ativo e passivo do delito podem ser quaisquer pessoas. Não há requisitos legais restritivos ao autor ou à vítima da divulgação de cena de estupro, sexo, nudez ou pornografia, que, por isso, podem ser de qualquer sexo ou opção sexual.
6 VOLUNTARIEDADE
O crime do art. 218-C do Código Penal exige o dolo do agente para a realização de qualquer das condutas proibidas. Para a consumação da infração penal, a lei demanda a vontade livre e consciente do autor quando da divulgação da cena de estupro, sexo, nudez ou pornografia.
Não há possibilidade de o crime ocorrer culposamente, por imprudência, negligência ou imperícia, ante a ausência de previsão legal (Código Penal, art. 18, parágrafo único: “Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente”).
7 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA
O crime é formal, consumando-se com a prática de ao menos um dos núcleos do tipo penal (“oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio”).
A tentativa do delito é possível, já que fracionáveis suas condutas. Assim, quando iniciada sua execução, o crime não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente, a conduta será punida com a pena correspondente à infração consumada, diminuída de um a dois terços (Código Penal, art. 14, inciso II e parágrafo único). Pense-se na hipótese de o autor executar o comando digital para a publicação, em sítio da internet, do registro audiovisual que contenha cena de estupro, o qual, por problema técnico estranho à sua intenção e ação, não chega a ser efetivamente publicado.
8 AÇÃO PENAL
A ação penal é pública incondicionada, segundo a atual redação do art. 225 do Código Penal, alterada pela Lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018. A autoridade policial e o ministério público, portanto, devem proceder de ofício para apurar o crime e processar seu autor, independentemente de provocação.
9 COMPETÊNCIA E PROCEDIMENTO
A competência para julgar o delito será, a rigor, da Justiça Estadual. Cumpre ressalvar, contudo, as hipóteses de competência da Justiça Federal, tais como as da Constituição Federal, art. 109, incisos V (“os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente”) e IX (“os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar”).
Aplicável aos crimes cuja sanção máxima cominada é igual ou superior a quatro anos de pena privativa de liberdade (Código de Processo Penal, art. 394, § 1º, inciso I), o procedimento comum ordinário será o cabível na espécie.
10 CIRCUNSTÂNCIAS ESPECIAIS
A divulgação de cena de estupro, sexo, nudez ou pornografia possui, além da forma fundamental do crime no caput do art. 218-C do Código Penal, uma causa de aumento de pena e uma hipótese específica de exclusão da ilicitude.
O aumento de pena está contido no § 1º, majorando-se a sanção penal privativa de liberdade original (reclusão de um a cinco anos) de um a dois terços se o crime for praticado:
a) por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima; ou
b) com o fim de vingança ou humilhação, o que significa o acréscimo de um fim especial de agir (dolo específico) à conduta vedada penalmente.
A exclusão de ilicitude decorre do § 2º da norma penal, em virtude da qual “não há crime quando o agente pratica as condutas descritas no caput deste artigo em publicação de natureza jornalística, científica, cultural ou acadêmica com a adoção de recurso que impossibilite a identificação da vítima, ressalvada sua prévia autorização, caso seja maior de 18 (dezoito) anos”. São duas, então, as causas de exclusão da antijuridicidade:
a) empregando-se “recurso que impossibilite a identificação da vítima”, não há crime na divulgação de cena de estupro, sexo, nudez ou pornografia praticada em publicação de natureza jornalística, científica, cultural ou acadêmica; de outro modo,
b) havendo prévia autorização da vítima, não incide o crime pela divulgação de cena de estupro, sexo, nudez ou pornografia em publicação de natureza jornalística, científica, cultural ou acadêmica, ainda que não empregado o tal recurso que impossibilite sua identificação.
No mais, deve-se lembrar das demais causas de aumento de pena genéricas previstas no Capítulo IV – Disposições gerais, do Título VI – Dos crimes contra a dignidade sexual, da Parte Especial do Código Penal, que incidem, por óbvio, na hipótese do crime em estudo:
Aumento de pena
Art. 226. A pena é aumentada:
I – de quarta parte, se o crime é cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas;
II – de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tiver autoridade sobre ela;
III – (Revogado pela Lei nº 11.106, de 2005)
IV – de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), se o crime é praticado:
Estupro coletivo
a) mediante concurso de 2 (dois) ou mais agentes;
Estupro corretivo
b) para controlar o comportamento social ou sexual da vítima.
11 CLASSIFICAÇÃO
A classificação doutrinária do delito remete a um crime comum (praticado por e contra qualquer pessoa, não se exigindo qualidade especial dos sujeitos), formal (independe de resultado naturalístico que modifique o estado de coisa ou pessoa), de forma livre (pode ser praticado de qualquer maneira), de dano (sua consumação exige a efetiva lesão ao bem jurídico tutelado, qual seja, a dignidade sexual ou a intimidade da vítima), comissivo (requer conduta ativa do agente, mesmo na modalidade “expor à venda”), instantâneo ou permanente (este, por exemplo, nas modalidades “expor à venda”, “publicar ou divulgar”), unissubjetivo (um autor basta à consumação, embora seja admita a participação de terceiros) e plurissubsistente (de condutas fracionáveis).
12 DISTINÇÕES
O princípio da especialidade penal impõe que se distinga, da figura do art. 218-C do Código Penal, os crimes previstos nos arts. 241, 241-A, 241-B da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).[1] Esses tipos incriminam, respectivamente:
- a) “vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente”;
- b) “oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente”;
- c) “adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente”.
São condutas voltadas, então e obviamente, à participação de menores em cena de sexo, nudez ou pornográfica (cf. art. 241-E do ECA), que as distanciam do tipo geral de divulgação de cena de estupro, sexo, nudez ou pornografia, previsto no art. 218-C, do CP.
[1] A esse respeito, vale conferir a Tese de Repercussão Geral nº 393 (“Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes consistentes em disponibilizar ou adquirir material pornográfico envolvendo criança ou adolescente (arts. 241, 241-A e 241-B da Lei 8.069/1990) quando praticados por meio da rede mundial de computadores.”), elaborada por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário nº 628624/MG, em 28 de outubro de 2015, pelo Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do Ministro Edson Fachin.
Gustavo Souza
Delegado de Polícia Federal Mestre em Políticas Públicas. Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal. Instrutor da Academia Nacional de Polícia. Foi Advogado, Agente de Polícia Federal e Delegado de Polícia Civil na Paraíba. É Delegado de Polícia Federal desde 2006.
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