Como a narrativa acusatória deve se confirmar, estabelece-se um duplo movimento em que a acusação busca conferir solidez e consistência, enquanto a defesa procura apontar inconsistência e dúvida razoável. A ausência de credibilidade faz com que a narrativa acusatória se enfraqueça e fomenta a dúvida, causa de absolvição.
Não há nada de errado, todavia, em se conversar com a testemunha/informante antes da audiência para saber que perguntas — táticas indagativas — se possa seguir. Diferente é orientar/sugerir a testemunha/informante. Há um certo pânico no sentido de que não se pode (Ministério Público e Defensor) falar com as testemunhas/informantes. Sem esta preliminar ao jogo, as perguntas a se formular terão respostas surpresas. Com a antecipação das respostas, pode-se escolher melhor a tática ou mesmo desistir-se da prova.
Recordar eventos passados exige que o sujeito — testemunha, informante, acusado, vítima, perito — possa dar sentido ao fragmento de momentos que teve conhecimento. Daí que a memória é filtrada e limitada, relegando o que não faz sentido e se focando naquilo que possa explicar o caso penal.
O fator tempo entre o testemunho e a declaração judicial faz com que o sujeito testemunhante tenha problemas de armazenamento e de indexação, ou seja, não se mantêm na memória consciente muitas coisas. Tente guardar na memória esse número de telefone 021 671514836. Não vale anotar. Escreva em um papel agora, sem olhar novamente. Os fragmentos se perdem na maioria das vezes e se armazena o padrão, o regular, o que sempre acontece. Não raro, então, policiais ao serem ouvidos em juízo somente se recordam do padrão, sendo que o restante recebe um sonoro: “não me recordo”. Não estão, na maioria das vezes, fazendo pouco caso do depoimento. Apenas recordam do que é padrão. Isso é humano e pode ser explorado.
A causalidade autoriza a construção de uma narrativa confortante em que o fluxo temporal é alinhado. Depois de assistir ao evento criminoso, não raro, chegam policiais, peritos, curiosos, a imprensa noticia, novas informações são acrescentadas à percepção original e, sem que seja intencional, o sujeito vai acomodando as informações posteriores na narrativa decorrente do fato pretérito. A sequência de informações vai se enriquecendo com o que não foi percebido, mas acrescido pelas informações posteriores e estranhas ao percebido originalmente. Nos depoimentos infantis isso é muito mais evidente (falsas memórias). O cérebro é uma máquina dinâmica de reescrever o mesmo.
Taleb sustenta: “Assim, usamos memórias ao longo de linhas causais, revisando-as involuntária e inconscientemente. Renarramos continuamente eventos passados sob a luz do que nos parece fazer sentido lógico, depois que tais eventos ocorrem”.[1] Daí que se pode inventar conexões causais, aumentar a nitidez de um fenômeno pelo acréscimo posterior de informações e isso pode se transformar em um caos discursivo no campo do jogo processual.
Muitas vezes se quer que a testemunha/informante responda simplesmente: (não) aconteceu. Como se as demais circunstâncias fossem irrelevantes. O esforço narrativo do declarante é sempre retrospectivo. Daí que uma das táticas dos jogadores é inverter a ordem das perguntas, a saber, ao invés de indagar o sujeito na lógica linear, pede-se para que conte do final para o início. A história decorada e prenhe de sentidos pode ficar em curto-circuito. Mas sempre é arriscado e depende qual a estratégia almejada. Especialmente quando há interesses na condenação/absolvição, a seleção manipulada dos eventos relevantes ao lado que se pretende favorecer pode significar, no limite, uma modalidade de doping processual, de certa forma, de trapaça.
Além disso, as informações trazidas pelos depoentes são articuladas em arrazoados que buscam (des)confirmar as teses apresentadas pelos jogadores e como linguagem que são, servem à manipulação. Daí que significantes abertos – perto, longe, medo, parecido, alto, baixo, etc. – são matreiramente utilizados para depois servirem de material confirmatório. E o mundo, todavia, é vago.
A maneira de falar, de se vestir, enfim, os mínimos detalhes, encontram no momento da audiência sua performance. Não há segunda chance, nova possibilidade de fazer a pergunta à testemunha. Não se pode ao final da audiência pensar: eu deveria ter perguntado isto. Daí que se deve preparar. As perguntas devem se focar na estratégia.
Por exemplo, a defesa quer alegar que a ação policial foi ilegal e não faz nenhuma pergunta nesse sentido. Logo, as expectativas de acolhimento diminuem. As ações em audiência devem ser coordenadas e executadas conforme o planejamento anterior. Acontecerão atritos, defesas de teses contrárias, mas cuidado com as provocações (in)diretas. Não faz sentido provocar o contendente, salvo para o desestabilizar emocionalmente, com os riscos de gerar revides, bem assim efeitos adversos no julgador.
Dessa interdependência e do que se mostra possível é que depende a escolha da melhor ação estratégica. No processo penal, em que a liberdade e a aplicação de pena estão em jogo, a aplicação da teoria dos jogos ganha contornos mais trágicos. Por um lado, o acusador público não dispõe da possibilidade de reabrir a partida em caso de perda e, de outro, as hipóteses de reabertura pela defesa — revisão criminal — são reduzidas. Logo, a batalha travada no jogo processual ganha dimensões épicas.
Um exemplo do dia-a-dia: a mesma piada contada por duas pessoas distintas, uma que sabe contar e outra que não leva jeito, implica reações diferenciadas. Logo, saber contar a história, buscar os meios em que possa ser escutado e vinculado à finalidade buscada, podem mudar os destinos de um jogo processual. A teoria da prova é a seleção dos temas relevantes para invocação no processo penal e isto pode ser apreendido, mas não na graduação em Direito. O estudo do comportamento processual dos jogadores é algo a ser apreendido por quem quiser ser profissional e deixar de atuar como amador.
Fonte: Conjur
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