A extensão da imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro sofreu ao longo do tempo inúmeras transformações que, gradativamente, restringiram o seu âmbito de aplicação. No decorrer da história, passou-se da inicial e prevalecente ideia de imunidade absoluta para a atual imunidade relativa.
Durante muito tempo, a imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros reinou com caráter plenamente absoluto. No campo jurisprudencial, a concepção absoluta da imunidade dos Estados foi consagrada por meio do paradigmático caso da Escuna Exchange (Schooner Exchange v. McFaddon), julgado pela Suprema Corte americana no ano de 1812 e que teve significativa importância, repercussão e influência no campo das imunidades, sendo a primeira ou, ao menos, a mais clara formulação da doutrina da imunidade de jurisdição entre os Estados.
De acordo com o relatório da decisão, a Escuna Exchange pertencia aos nacionais americanos John MCFaddon e William Greetham e foi o apreendida em alto-mar no ano de 1810, por ordem de Napoleão Bonaparte, imperador francês. A escuna foi então convertida em navio de guerra da marinha francesa. Em 1811, a embarcação foi forçada a aportar em Filadélfia, nos Estados Unidos, para que se realizassem reparos. Cediços, os donos originais moveram ação possessória para reaver a escuna. O governo francês contestou invocando o direito à imunidade. A decisão do Chief Justice Marshall estabeleceu que, sendo a embarcação um navio de guerra de uma potência estrangeira em paz com os Estados Unidos, o caso não se submeteria aos tribunais comuns do país. Logo, favoreceu-se a tese do caráter absoluto da imunidade de jurisdição, excepcionando, portanto, a França da jurisdição das cortes norte-americanas.[1]
Contudo, após o término da segunda Guerra Mundial, sobretudo a partir dos anos 70, passou-se a adotar uma concepção restritiva ou relativa da imunidade, a partir da diferenciação entre atos de império e atos de gestão. De fato, além dos atos de império, executados no gozo de suas prerrogativas soberanas, os Estados também passaram a praticar atos de natureza privada. Desse modo, necessária a distinção entre atos de governo (jure imperii) e de gestão (iure gestionis ou privatorum).
Nesta linha, se a imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros repousa na ideia de soberania, não razão há para subtraí-los à jurisdição de outro quando o ato a ser julgado não for praticado no exercício do jus imperii, mas sim no desempenho de uma atividade privada, ou, em outras palavras, do jus gestiones (atos de gestão). Assim, atualmente prevalece a imunidade de jurisdição relativa dos Estados, cuja extensão será delimitada conforme a natureza dos atos praticados.
Mas, o Direito Internacional Moderno está centrado na primazia da proteção dos direitos humanos, centrada na pessoa humana, enquanto ente dotado de personalidade. A tradicional bifurcação entre a natureza dos atos (império vs. gestão) para fins de delimitação do exercício do poder jurisdicional acaba por impedir as vítimas de atrocidades cometidas contra o ser humano de terem acesso, nas cortes de seus respectivos países, às reparações por danos causados.
Nota-se que a distinção entre atos de império e de gestão tornou-se obsoleta, pois não abarca situações nas quais Estados violam normas imperativas do Direito Internacional Humanitário. Por isso, atualmente se afirma que a concessão de imunidade absoluta de jurisdição ao Estado que viola direitos humanos colide frontalmente com a proteção e valorização conferida aos direitos humanos. Se assim não for, ter-se-á como resultado a possibilidade de um Estado poder, de maneira cômoda e simplista, invocar a imunidade e se esquivar da responsabilidade por suas condutas.
Nessa ordem de ideias, modernamente defende-se que as violações de direitos humanas advindas da prática de atos de império violam normas imperativas de jus cogens, contras as quais não se pode invocar a imunidade, de modo que a distinção entre atos de império e de gestão não mais se presta, pois inadequada à evolução do Direito Internacional.
Desse modo, melhor será a possibilidade de relativização da imunidade estatal em virtude da violação de normas de jus cogens de natureza humanitária, ainda que tal possibilidade não seja contemplada ou reconhecida por meio do direito positivo internacional.
Com efeito, importante esclarecer que a crítica feita não é a albergada Convenção Europeia sobre Imunidade Estatal de 1972, adotada no âmbito do Conselho da Europa (Convenção da Basileia), e a Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens de 2005, não consagram tal relativização.
Contudo, a ausência de previsão normativa expressa não impede o reconhecimento de que o Direito Internacional tem evoluído progressivamente rumo à tutela prioritária da pessoa humana, razão pela qual no eventual conflito entre a imunidade estatal e as graves violações do Direito Internacional Humanitário, que adquiriu status de norma de jus cogens, deve prevalecer este último, sob pena de se impor obstáculo intransponível ao acesso à Justiça das vítimas, especialmente em casos de inexistência de qualquer instrumento alternativo para tutela desses direitos.
Assim, as fronteiras da imunidade de jurisdição estatal devem passar por uma reavaliação de sua extensão, pois a distinção entre a natureza dos atos praticados tem se tornado uma potencial geradora de injustiças.
Contudo, apesar dos argumentos críticos acima, no ano de 2004 a Corte Internacional de Justiça entendeu que prevalece a imunidade absoluta de jurisdição estatal em razão de atos de império, ainda que o caso envolva a violação de Direito Internacional Comunitário.
No caso, um cidadão italiano buscava perante os tribunais de seu país reparações em decorrência de atos praticados durante a Segunda Guerra Mundial por ocasião da ocupação das forças alemãs no território italiano, em que foram cometidas sérias violações do Direito Internacional Humanitário.
A Corte de Cassação italiana, em julgamento de 11 de março de 2004, reconheceu a jurisdição dos tribunais italianos com relação às demandas de indenização ajuizadas contra a Alemanha sob o fundamento de a imunidade estatal não se aplica caso estejam em jogo atos que constituem um crime internacional.[2]
Mas, em 23 de dezembro de 2008, a Alemanha, visando assegurar sua imunidade de jurisdição e evitar a execução das sentenças condenatórias, provocou a CIJ – Corte Internacional de Justiça. Em seu favor, a Itália sustentou que a imunidade não poderia ser invocada em casos que envolviam a violação de uma norma imperativa do Direito Internacional ou jus cogens, que afastaria qualquer norma de direito costumeiro hierarquicamente inferior que pudesse prejudicar sua aplicação (art. 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969).
Ocorre que no conflito entre as normas imperativas de jus cogens, consubstanciadas nas sérias violações do Direito Internacional Humanitário, e a norma costumeira que conferiria imunidade à Alemanha, a Corte entendeu inexistente o conflito, ao fundamento de que as regras acerca da imunidade estatal são de caráter procedimental, relacionando-se ao exercício da jurisdição, enquanto as normas de Direito Internacional Humanitário violadas (proibição de assassinato, deportação e trabalho escravo), que possuem um status de jus cogens, são de caráter substantivo.[3]
Referências
[1] Disponível em: <https://press-pubs.uchicago.edu/founders/documents/a1_8_10s7.html> Acesso em 13.10.2020.
[2] Corte di Cassazione (Sezioni Unite civili), 11 march 2004, nº 5.044/2004, Ferrini v. Repubblica Federale di Germania. Disponível em: <https://www.unalex.eu/Judgment/Judgment.aspx?> Acesso em: 12.10.2020.
[3] Corte Internacional de Justiça. Caso Jurisdictional Immunities of the State (Germany vs. Italy: Greece Intervening). Disponível em: <http://www.icj-cij.org/files/case-related/143/143-20120203-JUD-01-00-EN.pdf> Acesso em: 12.10.2020.