Só é possível avaliar se uma lei de falências e recuperações empresariais é boa ou não após ela ser testada por uma crise econômica. Como o Brasil passou relativamente incólume pela crise de 2008, apenas agora, após mais de 10 anos em vigor, que a Lei de Falências (Lei 11.101/2005) está tendo seu batismo de fogo. O lado positivo é que finalmente os estudiosos poderão analisar quais pontos dela funcionam e quais não, e, assim, sugerir alterações para aperfeiçoar a norma. Quem afirma isso é o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Carlos Henrique Abrão.
“Se você tiver uma boa lei de recuperação, tem condições de manter empregos, de evitar redução de arrecadação, de apresentar planos econômicos que são factíveis e de não prorrogar para oito ou dez anos recuperações que, no fundo, são estágios de falência dilatados no tempo e no espaço”, aponta.
A seu ver, a Lei de Falências é boa, e conferiu maior segurança jurídica a empresários e credores, mas falhou em seus dois principais objetivos: diminuir a taxa Selic e aumentar a atividade empresarial.
Outro ponto fraco da norma é que ela não favorece uma efetiva recuperação das companhias, analisa Abrão, citando que menos de 5% das entidades que entram nesse processo se restabelecem. Para mudar esse cenário, o desembargador sugere a criação de regras específicas para alguns setores (como o de construções ou o automotivo) e o aumento de poderes do juiz quanto à aprovação ou reprovação do plano de falência ou recuperação, de forma que ele possa barrar propostas inviáveis ou fraudulentas.
Com a operação “lava jato”, diversas empreiteiras envolvidas em esquemas de corrupção na Petrobras ficaram insolventes. Muitos defendem que essas companhias recebam duras punições por seus crimes, como a “pena de morte empresarial” prevista na Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013). Abrão discorda dessa visão. Para ele, as companhias devem ser preservadas, uma vez que geram milhares de empregos e movimentam uma enorme cadeia de fornecedores. Dessa forma, ele defende que o governo ajude tais construtoras por meio de desonerações fiscais.
Em entrevista à ConJur, o desembargador ainda discutiu o lobby dos bancos na elaboração da Lei de Falências, sustentou que sociedades de economia mista se sujeitam à norma e opinou ser preciso criar cursos de formação de administradores de falências e recuperações.
Leia a entrevista:
ConJur – A Lei de Falências fez 10 anos em 2015. Como o senhor a avalia?
Carlos Henrique Abrão – Eu a avalio em três momentos. Primeiro, a lei foi impactante porque conseguiu reformular o Decreto-Lei 7.661/1945 [que regulava as falências e concordatas], que já vigorava há 60 anos e trouxe um espírito inovador à área. Segundo, a adaptação a ela durante esse período de 10 anos. E o terceiro é o atual, que exige uma reformulação urgente. Uma parte foi feita pela Lei Complementar 147/2014, que atinge micro e pequenas empresas, mas a lei ainda carece de outros fundamentos, uma vez que o teste de estresse está sendo feito agora, quando grandes empresas estão se submetendo ao processo de recuperação judicial. Em termos de sucesso, a lei foi aplaudida por toda a comunidade jurídica, não tem ninguém que discorde dela. Agora, ela precisa ser adaptada e corresponder à realidade das empresas, dos empresários, e, principalmente, dos credores, que só visam a recuperar créditos, e não a preservar a empresa.
ConJur – Uma crítica comum à Lei de Falências é que ela teria sido muito influenciada pelo lobby dos bancos, especialmente ao tirar os bens garantidos por alienação fiduciária do procedimento de pagamento de créditos da recuperação judicial e da falência. O que o senhor pensa dessa crítica?
Carlos Henrique Abrão – Eu participei ativamente do processo de elaboração da lei, e realmente, não só os bancos, como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, pressionaram. Isso porque o Brasil, naquela época, estava em uma situação ruim, com o endividamento alto, grande desvalorização do câmbio. Uma nova lei teria uma influência muito forte, porque os bancos têm uma força no Brasil que não existe nos EUA ou na Europa. Lá, os bancos se submetem a um processo de recuperação, enquanto aqui a maioria dos bancos está fora disso. Não só os bancos, mas também os devedores fiscais, que é obrigado a partir para um Refis e parcelar a dívida e pagar sem poder fazê-lo. Então, banqueiros no Brasil e credores fiscais — União, estados e municípios — não cooperam para o processo de recuperação, o que os torna extremamente dificultosos.
ConJur – Quais são os impactos da Lei de Falências na atividade empresarial?
Carlos Henrique Abrão – Fortíssimos. Uma boa lei de recuperação é vital para a sobrevivência do mercado e para evitar crises sistêmicas de alguns setores. Hoje o Brasil vive uma crise multilateral, que abrange não só o setor de construção civil, mas também o setor automobilístico, o de autopeças, e vários outros, em cadeia. Então, se você tiver uma boa lei de recuperação, tem condições de manter empregos, de evitar redução de arrecadação, de apresentar planos econômicos que são factíveis e de não prorrogar para oito ou dez anos recuperações que, no fundo, são estágios de falência dilatados no tempo e no espaço. Por exemplo, o Chile promulgou uma lei em 2014 que disciplina aquilo que os empresários devem manter nas empresas como suficiente e essencial para continuarem o negócio. Então, nenhum credor, muito menos banco, pode retirar maquinário ou algum equipamento se ele for essencial à continuidade do negócio. E mais: a lei chilena envolve pessoas físicas, então sujeitos superendividados podem apresentar planos e pagar os seus credores. Em seis meses, mais de 1.700 pessoas físicas já aderiram ao plano. E a grande vantagem da lei chilena é que ela reduz o prazo de recuperação de grandes empresas e das pessoas físicas, ao contrário da lei brasileira, que é lacunosa. Nos casos de micro e pequenas empresas, temos o prazo exíguo de três anos para a recuperação. E o legislador foi infeliz ao estabelecer a Selic como taxa-base. Com a Selic acima dos 14%, não se recupera nenhuma micro ou pequena empresa.
ConJur – Que outras alterações poderiam ser feitas para melhorar a lei brasileira?
Carlos Henrique Abrão – Primeiro, nós deveríamos definir um juiz trabalhista que ficasse prevento para todas as matérias que envolvessem a mesma empresa. Segundo, fazer a mesma coisa na área tributária: nós teríamos um juiz federal e um juiz estadual preventos para decidir todos os processos daquela empresa em recuperação ou em falência. Terceiro: deveríamos dar mais poderes para o juiz em termos de aprovação ou reprovação do plano, como existe nos EUA, onde o juiz pode impor o plano de recuperação evitando que se protelem assembleias e se dissimulem interesses que são escusos. Em quarto lugar, muitas vezes as empresas estão insolventes e pedem recuperação. A legislação alemã da insolvência permite apenas um aditamento da inicial, então, se a inicial não estiver em termos, o juiz já decreta de plano a quebra da empresa. Aqui no Brasil, não. Aqui o plano é apresentado, o deságio é elevado, são feitos vários aditamentos e no fundo esse plano que era para ser feito em cinco anos acaba indo para dez ou doze anos. E o pior: índice de êxito de empresas que saíram de recuperação não chega a 5%.
ConJur – Nesse sentido, muitos afirmam que a Lei de Falências é muito rígida, e dificulta a volta dos empresários ao mercado ao estabelecer prazo de cinco anos de reabilitação. Esse prazo é excessivo?
Carlos Henrique Abrão – A lei de 2005 tem um componente fundamental, que é o artigo 64. Este dispositivo permite – e não tem sido utilizado – o afastamento do controlador quando os atos praticados são danosos à direção da empresa – fraudes, falcatruas, erros de balanço dolosamente cometidos ou com culpa consciente. Mas são raríssimos os casos no Brasil em que há o afastamento do diretor ou do controlador, ao contrário do que existe nos EUA e na Europa. Agora, o prazo de cinco anos é relativamente razoável se considerarmos os ganhos que esse controlador pode obter. Por exemplo, se uma empresa tem papéis na Bovespa e se recupera, esses títulos que tiveram uma queda justificada em razão da recuperação podem receber uma grande valorização.
ConJur – Esse prazo de cinco anos pode coibir tais fraudes às empresas?
Carlos Henrique Abrão – O principal problema no Brasil é que as atividades empresariais não são correspondentes ao risco do negócio. Se uma empresa de construção ou uma transportadora aérea cujo capital social é baixo tiver um prejuízo grande, não haverá ressarcimento, porque não tem uma cláusula que garanta essa responsabilidade. Na Europa, em outros países, qualquer atividade tem um capital social mínimo exigido. Se for uma construtora, você tem que ter um capital de 1 milhão de euros, se for uma incorporadora, tem que ser 1,5 milhão de euros, se for uma distribuidora de títulos de valores tenho que ter 2 milhões de euros. Aqui no Brasil, você pode abrir uma sociedade limitada com R$ 100 mil e vender apartamentos de R$ 8 ou 10 milhões. Se amanhã o apartamento tiver com algum defeito estrutural, a empresa tem R$ 100 mil para cobrir a dívida.
ConJur – Na crise econômica de 2008, houve um debate, especialmente nos EUA, se o Estado deveria ajudar as empresas — principalmente as grandes — que corriam risco de falência. De um lado, estavam os que argumentavam que era preciso resgatar tais companhias para evitar risco sistêmico na economia. Do outro, estavam os que eram a favor de deixar elas falirem, uma vez que tinham sido irresponsáveis na condução dos negócios. Na sua opinião, o Estado deve ou não ajudar empresas a se recuperar?
Carlos Henrique Abrão – Existe uma visão mais econômica do custo-benefício, até keynesiana, que as leis dos mercados devem ser seguidas porque se a empresa não foi capaz de se manter, a falência não é um mal maior que uma recuperação malsucedida. No Brasil, há um problema estrutural. As empreiteiras têm um poder enorme e concorrência inexistente. Assim, o governo deveria fazer um Proer [programa que auxiliou bancos no governo Fernando Henrique Cardoso] para as empreiteiras. Isso porque milhares de empregos dependem dessas empreiteiras e de micro e pequenas empresas que estão vinculadas a elas. Mas isso seria feito sem injeção direta de dinheiro público, talvez com desonerações fiscais por um curto prazo. Seria algo semelhante ao que o governo fez por diversos anos com os setores automobilístico e de eletrodomésticos ao isentá-los de IPI. Mas esse debate no Brasil é diferente daquele dos EUA. Aqui, as empresas são bem mais dependentes do Estado do que lá.
ConJur – O BNDES poderia ter uma função mais atuante na recuperação de empresas?
Carlos Henrique Abrão – Podemos ter fundos e podemos também ter investidores interessados em empresas que apliquem seus capitais só para essas empresas. Agora, a participação do Bndes em recuperação é pontual, deve ser focada para casos mais complexos, que podem gerar uma crise sistêmica.
ConJur – Há quem defenda equivaler honorários advocatícios aos créditos trabalhistas nas falências e recuperações. O que o senhor pensa disso?
Carlos Henrique Abrão – É uma matéria importante, mas que não pode estar no primeiro plano, porque a primeira coisa que tem que ver é a sobrevivência da empresa. Se a empresa for preservável e saudável, o advogado vai ter a segurança de que irá receber. Não adianta a gente classificar os honorários extraconcursais ou na primeira classe se a empresa vai falir. As chances de ele receber serão mínimas, e não me parece que o interesse profissional – que é o interesse particular – possa estar à frente ou sobrepujar a preservação da empresa que tem. Por que o advogado estaria na frente do empregado? Por que o advogado estaria na frente do Fisco? Isso é uma antinomia, não tem lógica.
ConJur – A Lei de Falências não cuida nem de empresas públicas nem de sociedades de economia mista. O que ocorre se a Petrobras, por exemplo, entrar em um quadro de insolvência geral?
Carlos Henrique Abrão – À primeira vista, as sociedades de economia mista que realizam atividades econômicas não estão fora do alcance da Lei de Falências. Tanto é que nós tivemos o caso lá da Celpa, que pediu recuperação judicial e depois foi vendida. O que ocorre é o seguinte: como as empresas estatais têm controle dos estados, municípios e da União, eles raramente vão tentar pedir uma recuperação, porque antes disso, o Tesouro cobriria as dívidas. Fora que derrubaria o preço das ações na bolsa. Você só pede recuperação se tiver uma mudança de controle, um arrendamento do negócio ou o casamento da operação societária. Caso contrário, não. Mas não há por que tirar sociedade de economia mista que exerce atividade empresarial sob a forma concorrencial da recuperação judicial.
ConJur – Como o senhor avalia a recuperação extrajudicial? Ela é mais ou menos eficaz que a judicial?
Carlos Henrique Abrão – Ela foi posta pelo legislador para quando existe apenas uma classe de credores e quando você não precisa de blindagem. Por exemplo, as empresas que possuem débitos tributários não podem pedir a recuperação extrajudicial se entrarem no Refis. Aí, o que existe é uma recuperação judicial que depois de consolidada pode passar a extrajudicial. A recuperação extrajudicial ela não produziu os frutos que o legislador tentou. Isso aí foi mais uma estruturação de algumas empresas que fizeram lobby e quiseram obter na lei um paralelismo de conseguir uma recuperação extrajudicial, que é um acordo parasocietário, mas como você precisa de blindagem, de autorização para venda de ativos, tudo isso poderia caracterizar uma fraude, e essa fraude ainda geraria responsabilidade criminal. Então, é melhor você estar dentro de uma recuperação judicial com prazos, com regras específicas, do que ir para uma recuperação extrajudicial na qual pode surgir um pedido de falência a qualquer momento.
ConJur – Muitos afirmam que há uma excessiva concentração dos administradores de falências e recuperações judiciais, dizendo que poucos cuidam da maioria dos casos. Isso é ruim para os processos, pelo monopólio, ou é bom, porque concentra os casos em quem realmente entende do assunto?
Carlos Henrique Abrão – A remuneração do administrador ainda é elevada, 2%, 4%, 5% daquilo que for vendido. O Brasil não tem tradição nessa área porque nós vivemos 60 anos sob a figura do síndico, que é uma figura estática, não é dinâmica como a do administrador judicial. Agora, o Brasil é um país continental. Uma empresa grande pode ter se deslocado para o interior e pode ser que lá não exista alguém qualificado. Uma empresa que tenha filial em oito ou dez estados, como o administrador vai percorrer cada estado e verificar uma por uma? Impossível, a não ser que ele terceirize o serviço. Agora, é fundamental que haja uma escola de administradores. No primeiro momento, se pensou até em essa ser uma função pública, exercida por um servidor concursado. É uma atividade espinhosa, e não só no Brasil. Na França, há dez anos, houve o escândalo do Crédit Lyonnais, no qual foram destituídos vários administradores que receberam vantagens e compraram mansões na Cote D’Azur.
No Brasil, primeiro precisamos formar bons administradores judiciais; segundo, estabelecer um sistema de rodízio na nomeação, para testá-los, para ver quais são os bons, quais podem ser melhorados, quais estão apresentando falhas. Terceiro, tratá-los com um regime de remuneração que não os onere, porque se você relegar a remuneração do administrador para fases finais dos períodos de recuperação ou propriamente de falência, o que vai acontecer? Eles reclamam até que não têm verbas suficientes para interpor recursos, fazer um preparo. Muitas vezes, o administrador é responsabilizado pelo Fisco por dívidas tributárias que não tem nada a ver com a posição deles, são anteriores à nomeação. Essa atividade deveria ter um foco multidisciplinar. Se você pudesse nomear um economista, um administrador e um contador, isso daria um impulso ao processo, porque você teria três pessoas falando, três pessoas elaborando relatório e trazendo experiências de cada setor, que se somam ao discernimento do juízo.
Eu fiz isso na época da intervenção na Parmalat e foi muito benéfico. Havia dois administradores, dois contadores, dois economistas. Cada um deles palpitava, e onde havia alguma diferença, eu tentava dirimi-la com outra informação, porque você retira o monopólio. E outra, às vezes não há estrutura judicial para processar uma recuperação judicial. O Judiciário tem que ter uma estrutura de funcionários que fiquem lá praticamente 24h em cima para funcionar. Por exemplo, em São Paulo há duas grandes recuperações, com oito mil, nove mil atos para praticar, e tem lá doze funcionários. Não dá. A estrutura tem que ser compatível com aquilo que se pretende fazer.
ConJur – Nesses dez anos da Lei de Falências, quais recuperações judiciais realmente deram certo? Que as empresas voltaram a operar de forma satisfatória?
Carlos Henrique Abrão – Nós tivemos o caso da Eucatex, que foi uma recuperação rápida e que em pouco tempo ela conseguiu, segundo consta nas informações, voltar à sua atividade normal. Ela tinha um problema ligado a contratos internacionais, oscilação do câmbio. Ela já apresentou uma certa mobilidade e saiu da recuperação. Nós temos algumas empresas de agronegócio menores que se recuperaram em São Paulo e no Mato Grosso através de operações estruturadas, parcerias ou arrendamentos de algumas plantas.
A Lei de Falências é muito mais uma lei econômica do que uma lei jurídica. Ela tem um custo econômico, e todo país que enfrenta uma crise forte, seja no primeiro ou terceiro mundo, vai colocar a norma a teste e constatar que ela não é viável. A França alterou sete vezes a sua lei, porque cada período de crise você tem que dar uma contornada na situação, tem que ampliar alguns benefícios, cortar outros, porque no final das contas, a lei de recuperação não pode ser uma Lei de Gérson. Se alguns querem levar vantagem para que muitos tomem prejuízo, ela é falha. Nós temos que repartir os prejuízos para que a empresa seja preservada e, lá na frente, os benefícios se espalhem para muitas pessoas. Se eu tenho um crédito de R$ 2 milhões, evidente que na recuperação eu não vou receber R$ 10 milhões.
O que acontece é que se houver um deságio de R$ 5 milhões, o que se incentiva hoje em recuperação é que continue a ser parceiro daquela empresa, para que seja um credor extraconcursal. E aí o administrador vai poder pagar aqueles R$ 5 milhões na frente de outros credores na classificação porque ele está apostando naquela empresa. Um exemplo que eu cito: uma empresa aérea que está em recuperação, ela tem três fornecedores de alimentos de bordo. Dois falam “entrou em recuperação, vai falir, não vou mais continuar”, e o outro fala “eu tem um trabalho de fornecimento com essa empresa há oito anos, não me parece que ela vai quebrar então eu vou continuar’. Essa empresa que continuou vai ser considerada extraconcursal, e vai poder receber na frente dos outros. Os novos fornecimentos também serão preferenciais se houver falência. Se não houver essa parceria, essa sinergia com o mercado, infelizmente não se consegue nenhum tipo de recuperação, porque você vai descapitalizar, vai depauperar a empresa, vai entregar para o mercado uma empresa minúscula que não tem mais nem respeito, nem credibilidade, e muito menos crédito para receber. Não aproveitamos bem as recuperações nesses 10 anos.
Nós poderíamos ter recuperações do setor siderúrgico, do setor têxtil, que está em problemas, do setor calçadista, do setor da construção civil, que também está apresentando problemas, pois temos um número de imóveis fechados maior que de imóveis habitados no Brasil. Então, há uma série de aspectos que devem ser contingenciados, primeiro para não provocar um desemprego em massa, segundo para não ter uma queda brutal de arrecadação, terceiro para que se previnam, porque os bancos que estão hoje utilizando a lei como recuperação de crédito amanhã podem ter um desaquecimento de economia, e os maiores prejudicados serão eles, porque quando a economia está travada ninguém vai a banco, ninguém pede empréstimo. Tivemos grandes operações de factoring que, a meu ver, não se justificam para escalada de empresas em recuperação, porque você não tem crédito oficial, então vai para uma factoring. Isso daí também é prejudicial, porque tem taxa de juros, escalonamento, inclusive obtenção direta ou indireta do controle da empresa.
ConJur – Quais foram os impactos da Lei Anticorrupção sobre falências e recuperações de empresas?
Carlos Henrique Abrão – O princípio básico da Lei Anticorrupção é tentar introduzir no mercado uma diretriz de moralidade e ética para os negócios empresariais. Se você tem empresas que estão enquadradas na Lei Anticorrupção, ou por acordo de leniência ou por delação premiada, esse parâmetro da boa-fé escapa para fins de recuperação. Quer dizer, o mercado enxerga com certa resistência uma empresa que está enquadrada na Lei Anticorrupção e entra em recuperação. Se ficou comprovado que ela praticou atos ilícitos, qual será a mudança de mentalidade para que ela se recupere e volte a fornecer ao mercado condições de credibilidade do que faz? Primeiro: os administradores devem continuar no negócio? Segundo: você conseguiria o isolamento do grupo para apontar quais são as empresas que praticam corrupção e quais empresas estão blindadas?
Toda essa interferência entre corrupção e recuperação não existe, porque se a Lei Anticorrupção é uma lei que comprova a má-fé, porque o agente se vale de mecanismo espúrio para obter lucro, qual é o impacto dessa relação com a recuperação quando a lei foi concebida dentro de um cenário de boa fé do empresário, aquele empresário que compete, que concorre e por algum motivo fora da previsão, ele não conseguiu continuar no mercado? Agora, quem está enquadrado em uma Lei Anticorrupção não se submeteu à Lei do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Lei 12.529/2011), não se submeteu à Lei do Mercado de Capitais (Lei 6.385/1976). Pelo contrário: ele foi para esquemas espúrios e ilícitos para obter um lucro que não é operacional, é um lucro que vem de propinas e outras irregularidades. Aí existe uma contaminação. Agora, até que ponto essa contaminação vai ser expressiva para se transformar em uma falência o futuro vai dizer. Outro ponto relevante é a extensão da falência e da recuperação para empresas no exterior. Até que ponto nós poderíamos elaborar uma legislação internacional estrangeira? Porque não adianta só recuperar a empresa nacional se a empresa lá fora está sendo bombardeada e submetida a um processo de falência, e quem vai pagar a conta de lá vai ser aqui, vai ser a matriz. Se você não amarrar as operações de recuperação, o sucesso vai ser muito pequeno.
A Lei de Falências é boa, mas ainda não foi testada. Houve uma demora excessiva na regulamentação dessa lei, e os agentes que vão cuidar da aplicação delas — o Ministério Público Federal, os Ministérios Públicos estaduais, a Controladoria-Geral da União, o Tribunal de Contas da União — ainda estão dialogando, e ninguém sabe que multas aplicar, se a menor, a maior, a intermediária. No mercado europeu, no mercado norte-americano, a primeira regra de quem se submete às regras de uma recuperação é chegar desarmado. Tem que mostrar que está de boa-fé. Se a pessoa já chega falando que está saindo de um enquadramento, de um acordo de leniência, isso é mal visto no mercado, dá um descrédito, um deságio muito alto. Temos que discutir também se as empresas que estão em recuperação prosseguirão com as negociações de seus papéis em bolsa, o que é fundamental, porque nós tivemos o exemplo de uma empresa no Rio de Janeiro que tinha seus papéis cotados a R$ 30, R$ 31, R$ 33, e depois da recuperação eles chegaram a cinquenta centavos.
ConJur – A OGX?
Carlos Henrique Abrão – É. O órgão regulador fala “nós vamos suspender os negócios, inclusive porque não temos informações de transparência”. Aí vão fazer diligências e dizer que não podem operar com a empresa. Mas até aí, você deixa os papéis chegarem a um ponto que ninguém ganha, o único que pode ganhar é o controlador se a empresa recuperar. Com isso, você causa um pânico no mercado, pois há milhares de adquirentes daqueles papéis que estão perdendo. Então, é preferível uma suspensão temporária os papéis até que se dê uma estabilidade no negócio a ficar jogando os papéis para baixo. Isso é ruim.
Os juristas italianos tratavam a recuperação como sendo o processo mais complexo do ramo jurídico, pois envolve uma série de conceitos e tem repercussões em relação à previdência, a crédito trabalhista, a crédito fiscal, crédito tributário, crédito de banco com garantia real. Nós precisamos tratar o processo de recuperação sob a ótica da empresa. A empresa está estabelecida? Nós temos empresas hoje em comércio eletrônico, Como é que fica essa recuperação de empresa com portal eletrônico? Como é que nós vamos fiscalizar? Elas são empresas confiáveis ou são empresas que apenas aplicam o golpe no mercado? O primeiro aspecto é saber: a empresa que foi para recuperação tem os ingredientes da recuperação? O empresário tem lá um registro, tem boa-fé, tem balanço? Por isso que a lei é rígida. Porque a porta de entrada é como porta de banco: de repente um passa, outro não passa, e aquele que fica travado precisa explicar por que ficou.
A Lei de Falências trouxe para mais ânimo para os empresários no Brasil, mas ela não alcançou seus dois principais objetivos: reduzir a taxa de juros do país e incrementar a atividade empresarial. A taxa de juros continua elevada, nós temos hoje operações bancárias de cartão de crédito que chegam a 300% ao ano, o que é uma vergonha. Nós estamos entre os países que praticam as maiores taxas de juros do mundo. Enquanto isso, temos lucros bancários trimestrais de R$ 5 bilhões. Nada contra os bancos, se eles ganharem mais, até melhor, mas desde que esse lucro seja jorrado para a economia, que ele não seja só colocado em operações financeiras, que ele seja aberto, que as empresas tenham acesso a ele. Hoje nós não podemos ter mais negócios. Temos que investir capital na produção.
Fonte: Conjur
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