Por Fernando Martines
A discussão sobre permitir o cumprimento de pena antes do trânsito em julgado do processo é tão polêmica que o Supremo Tribunal Federal teve de se debruçar sobre ela duas vezes no mesmo ano. Em fevereiro a corte tinha estabelecido, em um Habeas Corpus, ser possível prender antes do caso chegar ao fim. Agora, nesta quarta-feira (5/10), manteve o entendimento, em Ações Declaratórias de Constitucionalidade. A decisão foi alvo de duras críticas e, ao mesmo tempo, de aplausos.
O juiz Sergio Moro, que atua na famigerada operação “lava jato”, e a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) já haviam defendido o novo entendimento. Moro afirma que o STF decidiu que o Brasil não é “uma sociedade de castas”. Para ele, esperar o trânsito em julgado beneficia apenas os poderosos, que têm advogados para recorrer.
Já para o jurista Lenio Streck, o STF fez política em vez de Direito. O diretor da Faculdade de Direito da USP e advogado José Rogério Cruz e Tucci afirma que a decisão foi tomada com base em argumentos relevantes, mas que apenas o Legislativo teria poder para mudar o que está escrito na Constituição. Outros foram mais longe: “Barbárie cometida com inspiração fascista”, disse o advogado e professor Salah Hassan Khaled Júnior.
Leia abaixo comentários de operadores do Direito sobre a decisão:
Sergio Moro, juiz federal da 13ª Vara Federal de Curitiba
“Com o julgamento, o Supremo, com respeito à minoria vencida, decidiu que não somos uma sociedade de castas. E que mesmo crimes cometidos por poderosos encontrarão uma resposta na Justiça criminal. O fato é que um sistema de justiça que não chega ao fim, num caso criminal, em período razoável, é um privilégio de impunidade daqueles que se podem servir deste sistema de justiça, que normalmente são os poderosos”.
Lenio Streck, jurista, colunista do Conjur e um dos subscritores da ADC 44
A maioria de seis votos fez política jurídica. Não fez Direito. O STF agiu como poder constituinte. Foram pronunciamentos morais sobre como deve ser o direito penal. Mas isso não compete ao STF. Interessante foi a tese da interpretação conforme a Constituição do artigo 283. Só que foi proposta uma interpretação para colocar o artigo 283 contra e não conforme a Constituição. Uma jaboticaba. Criamos uma Auslegung gegen die Verfassung(interpretação contra a CF)? Agora o STF está numa sinuca: face aos efeitos cruzados de ADC e ADI (artigo 28 da Lei 9.828), o STF terá que dizer que o artigo 283 é inconstitucional. Mas nenhum dos Ministros disse que o artigo 283 era inconstitucional. Ademais, estão erradas as manchetes que dizem que a decisão vincula. Cautelar indeferida de ADC não vincula.
José Rogério Cruz e Tucci, advogado e diretor da Faculdade de Direito da USP
Sempre entendi, a respeito desta importante questão, que o excessivo número de recursos e a consequente demora para se atingir o trânsito em julgado, não é justificativa suficiente para a precoce segregação do réu. A liberdade física e jurídica do indivíduo não pode se sujeitar ao imperativo da duração razoável do processo. Ora, se a questão é atender à exigência ou clamor da sociedade, ou se altera a legislação processual, modificando o conceito de trânsito em julgado (por exemplo: o trânsito é alcançado com o julgamento do recurso extraordinário ou do recurso especial, dependendo da matéria invocada), ou se altera a própria Constituição Federal, estabelecendo-se que a presunção de inocência perdura até haver duas decisões conformes (é o princípio da “dupla conforme”, existente em alguns países). A decisão por maioria proferida pelo pleno do STF desponta arbitrária, porque, embora lastreada em argumentos relevantes, ofendem o princípio da presunção de inocência, tal como desenhado na Constituição Federal.
Marcelo Semer, juiz de 2º grau da 10ª Câmara de Direito Público
O ministro Barroso costumava dizer que o julgamento do mensalão foi um “ponto fora da curva” no STF. Na verdade, foi o início da curva. O julgamento de ontem foi o final. A submissão à opinião pública e ao falso “combate à impunidade”, pervertem a função primordial do STF que é a de ser guardião da Constituição e fulmina o papel contramajoritário. A bem da verdade, nenhuma novidade, no momento em que “medidas excepcionais”, que vulneram direitos, estão sendo justificadas, pela “excepcionalidade” das circunstâncias. O STF sempre teve como função garantir os princípios e, no caso, a regra constitucional. Está optando pela exceção.
Márcio Adriano Anselmo, delegado da Polícia Federal
Foi uma decisão acertada pelo STF. Considerar a prisão após o julgamento em segunda instância é compatível com a Corte Europeia de Direitos Humanos. Não há qualquer relação entre a decisão e o encarceramento de presos com menor poder aquisitivo, uma vez que estes, em sua maioria, permanecem presos desde antes do início da ação penal, exatamente por não dispor de recursos para amparar defesas, em sua maioria protelatórias e destinadas exclusivamente a caminhar com processos à prescrição. Este sim é um problema a ser enfrentado! A existência de recursos protelatórios hoje é notória, sobretudo nos crimes econômicos, cujos dados empíricos apontam quantum mínimo de processos com trânsito em julgado. O que se espera, a partir de agora, é que o STF e os demais tribunais sigam a decisão, quer certamente surtirá um efeito didático muito importante nos casos de crimes econômicos, que tem longa tradição de impunidade no Brasil.
Leonardo Marcondes Machado, delegado da Polícia Civil (SC)
O estado de inocência, garantia liberal oitocentista, tem sofrido ataques ao longo dos séculos. Da criminologia positivista italiana à escola técnico-jurídica de Manzini e Rocco. Mas não só. Agora foi a vez do Supremo Tribunal Federal brasileiro. O que ocorreu, no julgamento de ontem, foi uma completa violação à presunção de inocência, núcleo estruturante do devido processo penal. Falar em ‘relativização’ ou “flexibilização” não passa de cinismo linguístico descomprometido com os princípios republicanos. Nós, professores de direito processual penal e criminologia, precisamos assumir a nossa parcela de culpa em face desse cenário jurídico autoritário com chancela da suprema corte. Falhamos! Não fomos capazes de assegurar algo básico, elementar, na estrutura do sistema processual penal. Venceu a presunção de culpa!
Alexandre Morais da Rosa, juiz em Santa Catarina
Um ministro. Não foi o Supremo Tribunal Federal. Essa foi a diferença do placar. O pensamento conservador e de quem não compreende adequadamente o sentido democrático da presunção de inocência. O estrago que faz uma escolha errada para a mais elevada corte. Aprendamos.
Salah Hassan Khaled Júnior, doutor em Ciências Criminais e professor da UFRGS
Apesar do placar apertado, não foi uma surpresa. Como esperado, retornaram à cena do crime para reiterar de forma ainda mais esdrúxula a barbárie cometida. Inspiração fascista e leitura civilista convergem para produzir um monumento autoritário com maquiagem jurídica. Quem precisa de um guardião da Constituição comprometido com a expansão do estado de polícia? Ela teria mais chances se entregue à própria sorte. Em pleno aniversário, é uma estranha na própria festa!.
Paulo Iasz de Morais, conselheiro estadual da OAB-SP
Vejo com enorme preocupação o recente posicionamento da mais alta corte do País que acaba acolhendo a tese de que o princípio da inocência é um direito relativo e não absoluto. Além disso, ao se admitir a prisão antes do trânsito em julgado da sentença podemos incorrer no cerceamento de liberdade de pessoas que depois poderão ter sua inocência reconhecida ou pelo STJ ou pelo STF. Fica aberta, portanto, a hipótese para prisões indevidas.
Instituto de Defesa do Direito de Defesa
O Instituto de Defesa do Direito de Defesa lamenta o resultado da sessão do Supremo Tribunal Federal que autorizou o início do cumprimento de pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Com a decisão, a Suprema Corte transformou o dia 5 de outubro em um marco da restrição aos direitos e garantias individuais.
Adib Abdouni, criminalista e constitucionalista do Adib Abdouni Advogados
O STF deu uma guinada e alterou drasticamente sua jurisprudência, que prestigiava a presunção de não culpabilidade e condicionava a execução da pena à irrecorribilidade da decisão criminal. Causa perplexidade, uma vez que não é desprezível a parcela de recursos extraordinários interpostos junto ao Supremo que são providos com o fito de reverter decisões penais condenatórias de tribunais locais, aptos a impedir o precoce e injusto encarceramento de pessoas, junto a um sistema prisional que, sabemos, mostra-se precário e desumano.
César Caputo, criminalista do Nelson Wilians e Advogados Associados
A reafirmação do STF é uma flagrante violação ao princípio da presunção de inocência. Se quiserem prender mais rápido, e acalentar a sociedade brasileira, que se atravesse todos os passos de um legítimo, constitucional e imprescindível processo legislativo para se emendar a Constituição Federal Brasileira.
Daniel Bialski, criminalista e sócio do Bialski Advogados
O eventual sentimento de impunidade não pode gerar ilegalidade. Além do prisma da legalidade, o Estado Não está aparelhado para suportar o aumento significativo de presos. Há superlotação, não há vagas e as condições – o que foi reconhecido pelo próprio Supremo – são desumanas. A Corte certamente ainda refletirá bastante sobre o tema.
Fernando Augusto Fernandes, criminalista e sócio do Fernando Fernandes Advogados
Duas questões precisam ser pensadas diante da decisão do Supremo. A primeira é que vai contra a disposição literal da Constituição, que, no art. 5º LVII, diz “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Isto não impede completamente a prisão, pois há possibilidade da prisão em flagrante ou preventiva. O que ocorreu foi uma mudança no texto constitucional. A segunda é que a defesa passa a exigir um outro patamar no Brasil. Não é possível arriscar-se a recursos meramente protelatórios e é necessário a atuação de altos especialistas. Existem muitos abusos, erros processuais e investigatórios, ofensas à defesa e ao devido processo e nulidades que não são notadas.
Fabrício de Oliveira Campos, criminalista e sócio do Oliveira Campos & Giori Advogados
O julgamento marca o populismo penal. Venceu o pragmatismo inspirado pelos espetáculos hoje em cartaz, sem que fossem equacionadas as consequências que isso vai gerar para uma massa de processos que não pertencem ao foro federal de Curitiba. Nos próximos anos, veremos inúmeras sentenças equivocadas, ilegais, desproporcionais e injustas serem cumpridas total ou parcialmente e, no final, reformadas pelo STJ ou STF. Mas essas causas, as das injustiças antecipadas e justiças tardias serão as causas dos incógnitos, dos que não estão em cartaz. Ninguém prestará atenção a esse futuro perverso.
Francisco de Paula Bernardes Jr., criminalista e sócio do Guillon & Bernardes Jr. Advogados
O STF, de forma política, fez uma tentativa de “mudança de mentalidade” na sociedade brasileira sobre a tão repetida “impunidade” da Justiça penal atribuída à sua morosidade. Venceu a ideia de “prevenção geral”. Mas a maioria dos ministros do STF fechou os olhos para dados estatísticos publicados pela FGV Direito Rio, que apontam que já no Superior Tribunal de Justiça mais de 25% dos Habeas Corpus impetrados foram concedidos. O estrago é grande quando se pensa, apenas a título de exemplo, na execução antecipada de pena destes 25% de réus que têm suas condenações revertidas no STJ. Os efeitos são ainda mais problemáticos quando se pensa em casos de réus pobres. A questão da pobreza do réu tem impacto direto no seu direito de defesa criando, em vários casos, falhas graves nos processos. O nosso sistema judicial não está preparado para a execução antecipada da pena.
Sylvia Urquiza, sócia da Urquiza, Pimentel e Fonti Advogados e presidente do Instituto Compliance Brasil
A decisão desrespeita os princípios constitucionais que, após anos de ditadura, passaram a integrar os direitos dos cidadãos brasileiros, como elencados no artigo 5º da Constituição Federal. Dentro do Estado Democrático de Direito em que deveríamos estar vivendo, a prisão apenas é possível após o trânsito em julgado da sentença condenatória. O Direito Penal é o direito da exceção. Quando um inocente pode perder sua liberdade, não se pode cogitar na renúncia do devido processo legal, da ampla defesa e do in dubio pro reo. É um retrocesso sem precedentes na nova democracia brasileira.
Fonte: www.conjur.com.br
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