A importância de se estabelecer regras que possam efetivar um processo penal democrático em que se garanta a presunção de inocência, atualizando o velho Código de Processo Penal de 1941, inspirado ideologicamente pelo discurso da defesa social, é o desafio. Para tanto, desde há muito, diversos projetos foram elaborados, desde iniciativas de juristas até pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Em todos eles há tensão entre as diversas forças, que vão desde um Direito Penal máximo, passando pelo processo penal do inimigo, até posições extremamente garantistas.
O papel do Congresso Nacional, nesse contexto, seria o de promover uma discussão ampliada, ouvindo-se os professores da área do processo penal, que, afinal de contas, é quem produz “ciência jurídica”, embora possamos discutir o próprio estatuto de ciência do processo penal por ter objeto construído, e não dado. De qualquer forma, mesmo que adotada a noção de campo do conhecimento (Bourdieu), é de se reconhecer que a produção de dispositivo processual penal precisa se dar conta das diversas matizes, vinculado à premissa do devido processo legal substancial, com respeito ao que foi produzido no ambiente dos direitos humanos. Aliás, nessa perspectiva, Nereu Giacomolli produziu excelente trabalho, já referenciado por nós (aqui), em que demonstra a importância da conformidade normativa aos diplomas internacionais.
O que se verifica atualmente nas discussões do projeto de lei, em que os deputados Rodrigo Pacheco, Rubens Pereira Junior, Pompeo de Mattos, Paulo Teixeira e Keiko Ota estão nas relatorias respectivas, é a abertura para o diálogo. O que sugerimos é que o debate possa ser mais qualificado não apenas em audiências públicas, mas, sim, em grupos de trabalho em que se possa estabelecer uma metodologia de produção normativa.
Por exemplo, quando Portugal decidiu encomendar um projeto de processo penal aos professores da área, o fez na expectativa de que se pudesse, no âmbito da comissão, trazer as preocupações dos parlamentares e do governo, bem assim da sociedade civil, em permanente diálogo com a academia. O resultado foi a produção, em curto espaço de tempo, até porque a academia discute reformas todos os dias, de um Código de Processo Penal que é operacional e, ainda que com alterações pontuais e críticas, atendeu à demanda democrática que a abertura portuguesa exigia.
Não se tratou, assim, de mera indicação performática, mas de coprodução normativa, em que a sociedade pode implementar um processo penal capaz de gerenciar as demandas coletivas e apontar o papel de limites necessários à implementação de um dispositivo processual adequado.
No Brasil, temos diversos livros, congressos, professores, enfim, uma ampla discussão que poderia ser operacionalizada de maneira objetiva. Para tanto, como sugestão, além das diversas audiências públicas, parece-nos que o embate precisa ser mais sofisticado, ampliando o universo metodológico de produção. Isso porque não adiantará elaborar produção legislativa em desconformidade com a normativa internacional de proteção de direitos individuais, com a propositura de diversas ações de declaração de inconstitucionalidades, em seguida, no Supremo Tribunal Federal.
Estamos, assim, reiterando a disposição da comunidade acadêmica, já em curso, como se verifica da indicação dos professores André Nicolitt (UFF), Antonio Eduardo Ramires Santoro (UFRJ), Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho (Uerj), Aury Lopes Jr (PUC-RS), Geraldo Prado (Uerj), Maurício Zanoide de Moraes (USP), Antônio Pedro Melchior (Ibmec), Rubens Casara (Ibmec), Diogo Rudge Malan (UFRJ), Flaviane Barros (Ufop), Bartira Macedo de Miranda Santos (UFG), Marcus Alan de Melo Gomes (UFPA), Nestor Eduardo Araruna Santiago (UFC), Manuela Abath (UFPE), Thaize de Carvalho (Uneb), Daniela Portugal (UFBA), Alexandre Morais da Rosa (UFSC), Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR), Nereu Giacomolli (PUC-RS), Gustavo Noronha de Ávila (UEM), Salah Hassan khaled Jr (Furg), Eduardo Pitrez de Aguiar Corrêa (Furg) e Marcos Zilli (USP), entre outros, para audiências públicas nas discussões do novo CPP.
Há, nesse contexto, a incidência de lobbys das mais diversas categorias na defesa dos seus respectivos interesses. O que precisamos é de um debate sério para que não percamos, mais uma vez, com dinheiro público e tempo escasso, a oportunidade de adequarmos o Código de Processo Penal aos ditames democráticos e coletivos. Vários projetos foram arquivados nos últimos 70 anos, e há risco de que isso ocorra.
As diversas reformas pontuais, ainda que cheias de boas intenções, acabaram por criar uma colcha de retalhos, um verdadeiro frankenstein jurídico, uma codificação eivada de dicotomias e conflitos internos. Um código que não tem um fio condutor, um princípio reitor, que mistura o “novo” com o “velho” para que tudo mude e continue exatamente como era antes… Basta um único exemplo: em 2008, houve uma (grande) reforma pontual que afetou a todos os procedimentos do CPP. A pergunta é: quantos artigos no capítulo das nulidades foram alterados? Nenhum! Como se pode manter íntegro um capítulo inteiro sobre as nulidades do processo penal, com a redação original de 1941, quando se tem uma alteração completa dos procedimentos em 2008? Isso é impensável em qualquer sistema jurídico sério. É sintoma da falta de seriedade com que lidamos com a matéria, especialmente das nulidades. Ora, forma no processo penal é algo da maior importância, porque forma é garantia, é limite de poder, é tipicidade processual, é legalidade. Abrir mão disso é ter um processo penal à la carte, como se tem hoje, um espaço excessivo para o decisionismo e o autoritarismo. O problema não é apenas mudar a lei, é preciso mudar cultura, mudar as cabeças. Para isso, é preciso um choque de gestão, uma mudança radical, um código inteiramente novo.
Um novo Código de Processo Penal é necessário, mas não qualquer um. Por isso, a nossa proposta de enfrentamento de questões de modo ampliado, sério e vinculado ao tanto que já se produziu sobre a questão. E isso diz diretamente a você, estimado leitor, porque o processo penal é o sintoma das garantias de liberdade de cada um de nós, fixando os limites em que se pode punir alguém em democracia. Sem o devido processo legal, qualquer um pode ser engolfado por mera suspeita. Esperamos não caminhar contra o vento, sem lenço, nem documento.
Fonte: Conjur
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