Artigo Jurídico: O caso do ônibus ocorrido na cidade de São Paulo. Tecnicamente, houve o crime de estupro? Por: José Carlos

Por
Atualizado em
Publicado em
5 min. de leitura

Recentemente, um homem ejaculou no pescoço de uma mulher enquanto esta estava em estado de sonolência. O fato ocorreu no interior de um ônibus na cidade de São Paulo.
O caso apresentou enorme repercussão jurídica e midiática, pois o autor da infração foi preso em flagrante delito pela prática do crime de estupro. Entendeu a autoridade policial que o agente teria constrangido a vítima, a realizar com ele, ato libidinoso diverso da conjunção carnal.
Todavia, o magistrado, concordando com o Ministério Público, ao analisar o auto de prisão em flagrante, entendeu que houve apenas a prática da contravenção penal prevista no art. 61 da Lei das Contravenções – “importunação ofensiva ao pudor”.
O autuado foi colocado em liberdade. A decisão gerou intenso debate no âmbito jurídico e também nas redes sociais.
No caso, houve ou não o crime de estupro?
Como se sabe, Direito não é ciência exata.  Por isso, o tema merece melhores esclarecimentos jurídicos.
O Crime de estupro está previsto no artigo 213 do CP, vejamos:
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
Antes da Lei nº. 12.015/2009, o delito de estupro compreendia apenas a conjunção carnal (introdução do pênis na vagina) forçada praticada em detrimento da mulher. Os demais atos libidinosos impostos mediante violência ou grave ameaça eram tidos como atentado violento ao pudor, tipificado no art. 214 do CP, hoje revogado.
Houve a revogação do atentado violento ao pudor como crime autônomo, contudo, não significou um abolitio criminis, pois a conduta passou a ser descrita no artigo 213 do CP. Assim, o vocábulo estupro passou a ter, portanto, uma maior amplitude. O crime em referência, em todas as modalidades, é considerado hediondo (art. 1º, V, da Lei nº 8.072/1990).
O objeto jurídico do estupro é tanto a liberdade quanto a dignidade sexual da vítima, pois nenhuma pessoa poderá ser forçada a práticas sexuais, sendo direito seu a escolha do momento e parceiro com quem irá se relacionar.
Nesse giro, tutela-se a liberdade de dispor do próprio corpo para práticas sexuais, sendo, assim, o bem juridicamente protegido, a liberdade sexual do homem e da mulher, que têm o direito de dispor de seu corpo de acordo com sua eleição.
Conforme comentado acima, o crime em tela compreende tanto a conjunção carnal forçada quanto à prática de outro ato libidinoso nas mesmas condições.
O que se entende como ato libidinoso?
É qualquer ato destinado a satisfazer a lascívia, o apetite sexual do agente.
Por óbvio, no caso ocorrido no ônibus de São Paulo, houve o dolo por parte do agente. O infrator apresentou o especial fim de agir, consistente na intenção de satisfação da sua lascívia.
Quanto à polêmica decisão do magistrado, cabe ressaltar, que a mesma encontra respaldo jurídico.
O juiz entendeu que não houve no caso “constrangimento”, e, tampouco, “violência” ou “grave ameaça” que são elementos do tipo do crime de estupro.  Por tal razão tipificou a conduta como “importunação ofensiva ao pudor”, que se trata de uma contravenção penal.
Entendeu o julgador que inexistiu o constrangimento (elementar do tipo) que significa coagir, obrigar alguém a prática da conjunção carnal ou ato libidinoso diverso. Para ele tal situação não ocorreu.
Assim, percebe-se que o magistrado não levou em consideração a palavra constrangimento na sua acepção comum (do léxico), da imoralidade da conduta, da exposição ao ridículo, do mal- estar suportado pela vítima, mas sim prevaleceu o sentido técnico-jurídico exigido para configuração de elementar do tipo de estupro.
Na decisão, o juiz sustentou que não houve a prática da violência (vis absoluta ou vis corporalis), pois para que essa ocorresse deveria se vislumbrar o emprego de força física sobre a vítima.  Não houve lesões corporais e nem sequer vias de fato.
Esclareceu, ainda, que não ocorrera nem a grave ameaça (violência moral), pois para a configuração desta se exige uma promessa de realização de “mal grave” contra a vítima.
Não fora vislumbrada nenhuma ameaça significativa, como, por exemplo, a ameaça de um mal físico (vida ou integridade física) ou a promessa da ocorrência do mal significativo ao seu equilíbrio financeiro ou propriedade.
Conforme dissemos anteriormente, a questão não é pacífica, pelo contrário, é bastante controvertida.
Com certeza, poder-se-ia, optar pela tipificação do crime de estupro, uma vez que houve a prática do ato libidinoso diverso da conjunção carnal.
Para essa linha, estariam presentes as elementares exigidas no artigo 213 do CP, pois no caso vislumbrado no ônibus, houve o constrangimento à vítima, uma vez que a mesma sentiu-se violada em sua dignidade sexual. Ocorrera à repugnância ao ato atentatório à sua dignidade sexual e a dignidade humana (fato este que foi claramente demonstrada em seu depoimento).
Ademais, pode-se, até mesmo concluir, que naquela situação, a vítima foi obrigada a suportar um jato de esperma em seu rosto.
E sobre o emprego da violência ou grave ameaça que é exigida para a configuração do estupro, como seria enfrentada a questão?
A nosso ver, a melhor fundamentação para os defensores desta corrente, pela prática do crime de estupro, não será a de sustentar o emprego da violência real (não houve lesão corporal ou vias de fato), nem o emprego da grave ameaça que não ocorreu.
Entendemos que a melhor solução seria a de se levar em consideração a ocorrência da violência presumida prevista na legislação penal.
Sobre o tema, o Código Penal prevê:
Estupro de vulnerável
Art. 217-A.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

  • 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caputcom alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.  (grifo meu).

Assim, segundo a norma, a vítima, por sua vez, pode ser uma pessoa com menos de 14 anos ou portadora de enfermidade ou deficiência mental ou incapaz de discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, sem condições de oferecer resistência.
No caso em análise, a vítima não tinha, na ocasião, como oferecer qualquer resistência ao ato do agente, a mesma foi surpreendida e estava “sonolenta”. Não esperava de forma alguma a tal atitude por parte do agressor.
Nessa esteira cita-se o entendimento JUNIOR, Eudes Quintino de Oliveira:
“A causa contida no parágrafo é abrangente e indeterminada, fazendo com que o legislador se valesse da expressão qualquer outra causa. A indeterminação é proposital. Exclui-se do rol do menor de 14 anos, do enfermo ou do deficiente mental e qualquer que seja a causa que impeça a vítima de oferecer resistência irá transformá-la em vulnerável. Com a aplicação da hermenêutica observa-se que, enquanto nas hipóteses anteriores o legislador especializou, agora com uma abertura ilimitada, generalizou. Ubi lex non distinguet, nemo distinguere potest . “A conjunção alternativa ou, por minúscula que seja, amplia o alcance do texto legal e aceita qualquer outra causa, desde que, é claro, com a comprovação probatória”. Fonte: JUNIOR, Eudes Quintino de Oliveira. O conceito de vulnerabilidade no direito penal. Disponível em http:// www.lfg.com.br – 08 de abril de 2010.
Por óbvio, as circunstâncias do fato e o conteúdo probatório serão fundamentais para a tipificação do crime de estupro.
Ao concluirmos, destacamos que o nosso objetivo foi o de demonstrar que existem posicionamentos jurídicos antagônicos sobre o caso ocorrido no ônibus de São Paulo, sendo que ambos apresentam respaldo jurídico.
Como intérpretes do Direito, não podemos ser influenciados com as opiniões da mídia que, em regra, sensacionalistas, pelo contrário, devemos encontrar a melhor tipificação dentro das normas penais existentes e suas elementares.
No Direito, cada caso é um caso, vai depender da melhor interpretação e fundamentação jurídica, por isso a livre persuasão racional do juiz.
É claro que discussões ocorrerão sobre a proporcionalidade da pena caso a tipificação seja pelo crime de estupro do artigo 213 do CP.
Entrementes, alguns argumentarão que o ato praticado em São Paulo não poderia merecer uma pena tão elevada (a pena mínima é de seis anos). De outro lado, outros falarão que se restar tipificada apenas a contravenção penal, haverá quase que a impunidade para um ato tão repugnante e constrangedor á vítima.
Entendemos que há a necessidade de uma legislação mais adequada e coerente a ser aplicada ao caso, um tipo incriminador intermediário entre o crime de estupro e a contravenção penal apontada pelo juiz. Atualmente não existe esta alternativa.
Não podemos colocar a culpa nos ombros dos operadores do Direito!


José Carlos – Professor Universitário e Advogado, com especialização em Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito Ambiental e Recursos Hídricos. Doutorando em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires (UBA). Professor Titular de Direito Penal e Direito Processual Penal na Universidade Católica de Brasília (UCB). Professor Titular das Faculdades Integradas da União Educacional do Planalto Central (FACIPLAC) nas áreas de Direito Penal, Processo Penal e Laboratório de Prática Jurídica. Participante de bancas examinadoras de Concursos Públicos.
 


Estude conosco e tenha a melhor preparação para a 1ª fase do XXIV e 2ª fase do XXIII Exame de Ordem!
matricule-se 3

O Gran Cursos Online desenvolveu o Projeto Exame de Ordem focado na aprovação dos bacharéis em Direito no Exame Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil. A renomada equipe de professores, formada por mestres, doutores, delegados, defensores públicos, promotores de justiça e especialistas em Direito, preparou um método online que dará o apoio necessário para o estudante se preparar e conseguir a aprovação. O curso proporciona ao candidato uma preparação efetiva por meio de videoaulas com abordagem teórica, confecção de peças jurídicas e resolução de questões subjetivas. É a oportunidade ideal para aqueles que buscam uma preparação completa e a tão sonhada carteira vermelha.

Por
Atualizado em
Publicado em
5 min. de leitura