Por Márcio Adriano Anselmo | Jus.com.br
Embora seja um conceito desenvolvido ao longo de muito tempo, somente nos últimos anos o Brasil passou a adotar legislação específica voltada às organizações criminosas. O diploma legal mais recente foi a Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013, que, nos exatos termos de sua ementa:
Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei no 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências
Assim, para além de tipificar o crime de organização criminosa, apesar de o Brasil já internalizar a Convenção de Palermo há mais de uma década, o diploma legal tratou dos meios de obtenção de prova especiais a serem utilizados no enfrentamento da criminalidade organizada, entre eles o da colaboração premiada.
O artigo 1° do diploma legal apresenta, de forma sucinta, o resumo do mesmo, ao estabelecer os principais pontos da Lei 12.850/13: definir organização criminosa, estabelecer os meios de obtenção da prova aplicáveis a sua investigação e tratar do seu procedimento.
Assim, o parágrafo 1º trouxe o conceito de organização criminosa para os efeitos da aplicação da lei:
§ 1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.
O conceito de organização criminosa, de difícil aceitação pela doutrina, tendo em vista a inexistência de uma concepção unívoca, apresenta alguns elementos que lhe são característicos, os quais podemos indicar: associação de pessoas; divisão de tarefas; objetivo econômico; e a prática de infrações graves.
Tais características estão presentes na maioria dos conceitos de organização criminosa existentes na doutrina. Guaracy Mingardi[1], ao tratar do tema, aponta como características das organizações criminosas: previsão de lucros, hierarquia, divisão de trabalho, ligação com órgãos estatais, planejamento das atividades e delimitação da área de atuação. O autor estabelece ainda uma divisão em dois modelos: a organização criminosa tradicional ou territorial e a empresarial. A esses dois modelos acrescemos outra, apontada por Jorge Pontes[2]: a organização criminosa institucionalizada no ambiente do Estado.
Conforme destaca Luiz Roberto Ungaretti de Godoy[3], “com a recepção da Convenção de Palermo, o Supremo Tribunal Federal pronunciou-se no sentido de adotar os critérios daquela definição para o julgamento de casos relacionados à matéria crime organizada”. A partir de então, adotou-se, ao menos precariamente, o conceito previsto pela Convenção de Palermo e as características ali descritas. Entretanto, conforme enfatiza Paulo César Correa Borges, a depender[4] “do modelo de organização criminosa que se analisa, haverá, portanto, variação de alguns de seus elementos, embora outros sejam comuns”, o que dificulta sobremaneira um conceito uniforme.
Antonio Scarance Fernandes[5] estabelece três correntes doutrinárias que buscam conceituar o crime organizado: a primeira, que tenta definir o conceito de organização criminosa e crime organizado seria todo aquele praticado por essa modalidade de organização; a segunda, que define os elementos essenciais do crime organizado, sem especificar os tipos penais; e a terceira, que estabelece um rol de tipos penais, qualificando-os como crime organizado.
Alberto da Silva Franco[6], por sua vez, aponta como características: caráter transnacional; aproveita-se de deficiências do sistema penal, a partir de sua estruturação organizacional e de sua estratégia de atuação global; atuação resulta em dano social acentuado; realiza várias infrações, com vitimização difusa ou não; aparelhado com instrumentos tecnológicos modernos; conexões com outros grupos criminosos, organizados ou não; mantém ligações com pessoas que ocupam cargos oficiais, na vida social, econômica e política; utiliza-se de atos de violência; e beneficia-se da inércia ou fragilidade de órgãos estatais.
Segundo Gilson Langaro Dipp:
Uma organização criminosa de modo geral se revela por dotar-se de aparato operacional, o que significa ser uma instituição orgânica com atuação desviada, podendo ser informal ou até forma mas clandestina e ilícita nos objetivos e identificável como tal pelas marcas correspondentes. A organização criminosa pode também, eventualmente ou ordinariamente, exercer atividades lícitas com finalidade ilícita, apesar de revestir-se de forma e atuação formalmente regulares. Um estabelecimento bancário que realiza operações legais e lícitas em deliberado obséquio de atividades ilícitas de terceiro, é o exemplo que recomenda cuidado e atenção na compreensão de suas características.
A principal delas é ser produto de uma associação, expressão que indica a afectio entre pessoas com propósitos comuns ou assemelhados em finalidade e objetivo. É essencial que haja afinidade associativa entre as pessoas (usualmente pessoas físicas, mas não é impossível a contribuição de pessoas jurídicas), ainda que cada uma tenha para si uma pretensão com motivação e objetos distintos das demais e justificativas individuais, todavia logicamente reunidas por intenção e vontade comum nos resultados[7].
Assim, temos na figura da associação de pessoas o elemento básico para a constituição da organização criminosa, figura central do tipo penal.
Deve-se destacar que o Brasil ratificou diversos instrumentos nos últimos tempos que buscam coibir o crime organizado transnacional, como: a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (Convenção de Viena), promulgada pelo Decreto 154, de 26 de julho de 1991; a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo), promulgada pelo Decreto 5.015, de 12 de março de 2004; e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida), promulgada pelo Decreto 6.587, de 31 de janeiro de 2006.
Importante destacar, conforme aponta Gilson Langaro Dipp[8], que “essa noção [de organização criminosa] é fundamental e precisa a todo tempo ser integral e integradamente compreendida de modo sistemático em benefício da clareza e precisão da aplicação da lei em toda sua amplitude”.
Pela primeira vez no ordenamento jurídico pátrio foi tipificado o crime de pertinência à organização criminosa, previsto no artigo 2° da lei:
Art. 2º Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa.
Embora a Lei 9.613/98, em sua redação original, já estabelecesse ser crime antecedente da lavagem de dinheiro quando praticado por organização criminosa, havia entendimento jurisprudencial das cortes superiores[9] pela inaplicabilidade em razão da ausência de tipificação, no ordenamento jurídico nacional, do crime de organização criminosa, em que pese posição contraria, uma vez que entendemos, na redação anterior da Lei de Lavagem de Dinheiro, que qualquer crime antecedente, quando praticado por organização criminosa, cuja definição já existia na Convenção de Palermo (devidamente internalizada pelo Decreto 5.015, de 12 de março de 2004 e, portanto, com força de lei), uma vez que já estabelecia o conceito de “grupo criminoso organizado” como:
“Grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material”.
Em que pese a posição firmada na corte, apesar da alteração legislativa imposta pela Lei 12.683/2012, que extinguiu o rol de crimes antecedentes, o voto-vista do ministro Luiz Fux foram no sentido de ser infundada a alegação de que o inciso VII do artigo 1° da Lei 9.613/98 não poder ser aplicado em razão da ausência de definição legal de um crime de organização criminosa, uma vez que, conforme já expusemos na obra Lavagem de Dinheiro e Cooperação Jurídica Internacional[10], trata-se da forma de prática do crime, tecendo o ministro argumentação no sentido de que a expressão não equivaleria a um crime em si, mas, sim, trata-se da figura do sujeito passivo responsável pela consecução do delito antecedente, estando o crime cometido por qualquer das espécies de organização criminosa que conhecemos, apto a figurar como antecedente da lavagem de dinheiro.
Por outro lado, importante ainda destacar que a Lei 12.694, de 24 de julho de 2012, que “dispõe sobre o processo e o julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados por organizações criminosas”, considera, de acordo com o artigo 2º, o conceito de organização criminosa como:
Art. 2º Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional.
Observa-se, portanto, a existência de três conceitos de organização criminosa no ordenamento jurídico pátrio: o conceito originariamente previsto na Convenção de Palermo; o conceito previsto na lei que instituiu os julgamentos colegiados para os crimes praticados por organizações criminosas e, por fim, o conceito atual dado pela atual lei de organizações criminosas (Lei 12.850/13), cuja diferença primordial denota-se no número de elementos para a configuração do crime. Enquanto, nos dois primeiros casos, há a previsão de três ou mais pessoas, no caso do crime de organização criminosa há a previsão de que esta seja formada pela associação de quatro ou mais elementos. Entretanto, o conceito de crime organizado parece não mais abarcar os fenômenos criminosos da atualidade.
Ainda nesse cenário, uma nova figura começa a despontar, qualificado por Jorge Pontes[11] como “novo animal da criminologia”[12], qual seja, a figura do “crime institucionalizado”, extremamente mais danosa do que as organizações criminosas comuns, pois, segundo o mesmo autor, se apresentaria quando as estruturas criminosas se confundem com a própria estrutura do Estado.
Nessa modalidade criminosa, as grandes decisões do Estado se confundem com as decisões do grupo criminoso, que tem como objetivo primordial maximizar seus ganhos. Para tanto, as armas são substituídas pelo diário oficial, e decisões de grande impacto ao país são tomadas não em razão de políticas públicas, mas para satisfazer os interesses econômicos do grupo, que não apresenta apenas um líder, como as organizações criminosas comuns, mas uma estrutura em forma de teia, colaborativa, em absoluta simbiose.
O aparato estatal de repressão ao crime deve se estruturar, portanto, para o enfrentamento desse “novo animal”. Institutos até então existentes e práticas investigativas restam cada vez mais impróprias para alcançar essa modalidade de estrutura.
Ainda de acordo com Jorge Pontes, essa estrutura “não lança mão de atividades escancaradamente ilegais, como o tráfico de drogas, de armas, a prostituição, o jogo ilegal e etc.”, o que torna a “atividade infinitamente mais lucrativa e segura que qualquer negócio ilegal convencional colocado em prática por organizações do tipo máfia”.
Novos fenômenos criminosos exigem, portanto, novas ferramentas de enfrentamento. O sistema de persecução penal necessita se modernizar e dotar-se de ferramentas para que possa atuar. A única barreira, nesse caso, é que o antídoto precisa vir de algumas possíveis vítimas no futuro.
[1] MINGARDI, Guaracy. O Estado e o crime organizado. Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 21, p.03, set. 1994.
[2] PONTES, Jorge. Corrupção sistêmica institucionalizada. Disponível em http://oglobo.globo.com/opiniao/corrupcao-sistemica-institucionalizada-14905059. Acesso em 20.jun.2016.
[3] GODOY, Luiz Roberto Ungaretti de. O Crime Organizado e seu Tratamento Jurídico Penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 61.
[4] BORGES, Paulo César Correa. O Crime Organizado. São Paulo: Ed. UNESP, 2002, p. 16.
[5] FERNANDES, Antonio Scarance. Crime Organizado e a legislação brasileira. In: PENTEADO, J. de C. (Coord). Justiça Penal 3: críticas e sugestões: o crime organizado (Itália e Brasil): a modernização da lei penal. São Paulo: RT, 1999, p. 31-55.
[6] FRANCO, Alberto Silva. Um difícil processo de tipificação. Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 21, p.05, set. 1994.
[7] DIPP, Gilson Langaro. A delação ou colaboração premiada: uma análise do instituto pela interpretação da lei. Brasília: IDP, 2015, p. 11.
[8] DIPP, Gilson Langaro. A delação ou colaboração premiada: uma análise do instituto pela interpretação da lei. Brasília: IDP, 2015, p. 11.
[9] Veja-se, a esse título, o julgamento dos HC 96.007/SP, sob relatoria do ministro Marco Aurélio, decidido em 12/6/2012.
[10] ANSELMO, Márcio Adriano. Lavagem de Dinheiro e Cooperação Jurídica Internacional. São Paulo: Saraiva, 2013.
[11] Disponível em http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/pais-vive-o-flagelo-do-crime-institucionalizado-alerta-ex-diretor-da-interpol/. Acesso em 26.jun.2017.
[12] Disponível em http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,novo-animal-da-criminologia,10000082061. Acesso em 26.jun.2017.
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