O Dever de Fundamentação no Inquérito Policial: “Write Or Die”

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Por Thiago Solon Gonçalves Albeche
Fonte: jusbrasil.com.br
A polícia judiciária, tradicionalmente, é considerada como instituição atrelada à Segurança Pública, estigmatizada pelo uso de armas, algemas, investigação inquisitorial e repressora. Esta é a visão que a sociedade desenvolveu sobre as polícias e que é acentuada por destaques midiáticos e papéis caricatos em programas de televisão.
Justamente por essas razões, dentre outras, pouco ou quase nada se noticia à grande massa a respeito de atos típicos de provocação de jurisdição que são praticados por Delegados de Polícia em estrita observância ao Princípio da Legalidade.
Entretanto, esta ótica, além de limitada, não se conforma com a prática investigativa conduzida por muitos Delegados de Polícia. Para além do instrumental jurídico que é utilizado pelas Autoridades Policiais no âmbito do inquérito, previstas expressamente no Código de Processo Penal e que lhe permite a coleta de elementos de prova de forma direta, há várias outras medidas que importam em restrição de direitos e que devem ser submetidas à apreciação judicial em função da reserva de jurisdição.
Inicialmente, analise-se a decisão sobre a (não) lavratura do auto de prisão em flagrante. A primeira Autoridade a decidir sobre a prisão de uma pessoa (em potencial situação de flagrância) é o Delegado de Polícia. Conduzidas as partes pelas polícias ou por qualquer do povo, o que constitui mera detenção, caberá a análise da situação em concreto pela Autoridade Policial, que ordenará, precariamente, que o suspeito seja levado1 ao cárcere em razão da prisão em flagrante.
Conduzidas as partes até à Delegacia de Polícia, cabe à Autoridade Policial verificar se existem indícios suficientes de autoria, prova da materialidade, situação configuradora de flagrante, análise da tipicidade da conduta, possibilidade de concessão de liberdade mediante fiança2, além de representar por medida cautelar de prisão ou outra que lhe seja diversa3.
Trata-se de um momento crucial na medida em que a análise destas circunstâncias possui consequências jurídicas importantíssimas para o conduzido e, igualmente, para os alicerces do Estado Democrático de Direito. Após esta análise, o conduzido poderá ostentar a qualidade de investigado (o que já lhe causa constrangimento psicológico), terá sua liberdade restringida imediatamente, passando ostentar ocorrências policiais em seu desfavor. Ainda, poderá ser alvo de restrição a bens e direitos e, caso receba liberdade provisória (com ou sem fiança), poderá ser atingido por medidas cautelares diversas da prisão. Todas as medidas, portanto, trazem ônus a alguém que, por imperativo da Convenção Americana de Direitos Humanos e da Constituição Federal, é considerado inocente até decisão condenatória da qual não caiba mais recurso.
Via de regra, todos os atos acima mencionados podem ser praticados desde logo na Delegacia de Polícia (após a condução de pessoas por membros das polícias ou por qualquer do povo), sem prejuízo de outros que se revelem necessários no decorrer do inquérito policial (representação por prisão temporária, prisão preventiva, interceptação telefônica, busca e apreensão, captação ambiental, entre outros, desde que demonstrada a implementação dos requisitos legais e, de forma geral, a adequação, necessidade e proporcionalidade das medidas postuladas).
Ocorre que o Delegado de Polícia, por ser agente público, que exerce parcela de poderes conferidos pelo Estado, tem o dever de justificar seus atos de forma a garantir o controle e a idoneidade da forma como age. É dever que é imposto a todos os agentes públicos como corolário da efetivação do controle de legalidade. O Estado que não efetiva instrumentos de autocontrole e que não fomenta a clareza e a publicidade da motivação dos atos que pratica não pode ser considerado democrático e tende à arbitrariedade. É da essência dos Direitos Humanos e dos Direitos Fundamentais de primeira dimensão que o Poder Público se abstenha de praticar atos ilegitimamente invasivos. Esta legitimidade, assim, deve ser avaliada com o conhecimento das razões que levam o agente público a adotar uma ou outra decisão, a restringir ou não determinados direitos, bem como o tipo e a extensão da medida escolhida. E isto, gera, inexoravelmente, o dever de fundamentação.
Na Constituição Federal, o art. 93, IX dirige ao Magistrado o dever de fundamentar suas decisões. Este artigo, entretanto, não necessita de similar destinado à Autoridade Policial, pois ela, enquanto membro da Administração Pública, pratica atos administrativos regidos por um regime jurídico que lhe impõe a publicidade e motivação. Ainda, é válido resgatar a lição de que a motivação é obrigatória em casos expressos do artigo 5.º da Lei 9784/994.
Neste contexto, analisar em qual circunstância a prisão em flagrante se adéqua (hipóteses dos art. 301 e 302, CPP), em qual tipo penal a conduta se enquadra (fazendo-se a análise da tipicidade formal e material de forma comedida, sem excesso de linguagem para não prejudicar a opinião da Autoridade que presidirá o procedimento investigativo), representar pela conversão da prisão pré-processual em prisão cautelar ou por outra medida diversa da segregação, bem como conceder ou não fiança de forma fundamentada, são deveres do Delegado de Polícia.
A lei 12.830/2013 também exige que o relatório final, que redunde (ou não) em indiciamento, deverá ser feito de forma fundamentada, mediante análise técnico-jurídica do fato. Em essência, o dispositivo nada mais fez do que explicitar e sedimentar, em texto de lei, deveres já decorrentes do regime jurídico dos atos administrativos que são praticados por agente público (Autoridade Policial) na condução de procedimento administrativo pela polícia judiciária.
Além disso, se a mencionada legislação impõe o dever de fundamentação quando da realização do relatório final, momento em que pode se vislumbrar a ausência de um cidadão preso em decorrência da investigação, com muito mais razão esse dever se transporta ao momento da decisão sobre a autuação do conduzido em flagrante delito.
Estas poucas observações são importantes e nos permitem alguns axiomas que devem ser absorvidos na prática policial judiciária:

  1. toda restrição a direitos deve ser fundamentada;
  2. a fundamentação dos atos praticados é corolário lógico da observância do Princípio da Legalidade e da condição de agente público que é ostentada pela Autoridade Policial;
  3. o Delegados de Polícia, além de agente público e alçado à condição de integrante de uma carreira jurídica, deve fundamentar juridicamente suas decisões;
  4. a fundamentação deve ser adequada ao Princípio da Legalidade, fonte de poderes-deveres e que dá a extensão do que é permitido à Autoridade Policial;
  5. a fundamentação dos atos de polícia judiciária e a posterior conclusão de conformação com o controle de legalidade garante transparência e credibilidade à atuação policial;
  6. a fundamentação dos atos permite amplo acesso ao Poder Judiciário pelos investigados, maximizando as garantias fundamentais;
  7. a conformação dos atos investigativos com a legalidade conduz à valorização de um instrumento persecutório que é muitas vezes desmerecido por doutrina e jurisprudência que o apontam como tendente à irregularidade, às vicissitudes, que, no entanto, “não contaminam” as ação penal;
  8. a realização de atos dentro da obrigatória e pública Legalidade garante elementos de prova colhidosas validamente, possibilitando, se for o caso, em condenações legítimas;
  9. condenações legítimas tendem a salvaguardar a Segurança Pública, Direito Fundamental de segunda dimensão que impõe um dever de ação pelo Estado, o qual confere à polícia judiciária essa missão constitucional;
  10. a missão constitucional da polícia judiciária (civil e federal), que é investigar crimes comuns (crimes não-militares que competem à polícia militar), deve ser realizada de forma a apurar fatos dentro de regras estabelecidas, cujo respeito prestigiam garantias sem as quais o Estado Democrático de Direito não subsiste.

Assim, em uma brevíssima análise e com poucos exemplos, pretende-se demonstrar que o jurídico da atuação do Delegado de Polícia lhe impõe alguns deveres. Somente sendo conduzido de forma clara, fundamentada juridicamente nas leis comuns e na Constituição é que o Inquérito Policial será compreendido, como instrumento de apuração de fatos e não de busca de confirmação de teses persecutórias.
Não haverá satisfação idônea e suficiente do direito fundamental de prestação de segurança pública senão pelo respeito às garantias individuais que evitam (elementos de) provas viciadas (os), absolvições e, com isso, impunidade.
1 A Constituição Federal assevera que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória com ou sem fiança”, conforme artigo 5.º, inciso LXVI.
2 A fiança foi reconfigurada com o advento da lei 12.403/2011. Antes, concessível pela Autoridade Policial em razão do regime de cumprimento de pena previsto no preceito secundário da norma penal (quando o delito era punível com detenção), agora é permitido quando a pena máxima abstrata é de até 04 anos, independente do regime de pena cominado. Importante que a Autoridade Policial colha elementos suficientes sobre a pessoa do interrogado (condições pessoais de fortuna, vida pregressa, por exemplo) como forma de atender aos requisitos exigidos pelo art. 326, CPP, mensurando de forma adequada (e fundamentada) o montante do valor da fiança a ser arbitrada. A Autoridade Policial deverá ter o cuidado de que as circunstâncias exigidas no art. 326, CPP constem de forma objetiva e escrita nos autos do procedimento de lavratura do Auto de Prisão em Flagrante de modo a justificar o arbitramento realizado.
3 “Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão:
I – comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades;
II – proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;
III – proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;

IV – proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução;

V – recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos;
VI – suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais;
VII – internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração;

VIII – fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial;
IX – monitoração eletrônica.

4 Art. 5.º Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:
I – neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;
II – imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções;
(…)



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