Por Júlio Marcelo de Oliveira
Não há dúvidas de que uma reforma da previdência é necessária e mesmo urgente. O eixo central de um regime de previdência é permitir segurança econômica na velhice, quando a capacidade de trabalho está comprometida de forma relevante, ou em caso de invalidez para o trabalho. A previdência é baseada na solidariedade social, em que os trabalhadores em atividade, em conjunto com seus empregadores, contribuem com um valor proporcional ao seu salário para custear as despesas dos benefícios previdenciários de quem já não trabalha, esperando no futuro poder contar com essa mesma solidariedade social das gerações seguintes. Essa forma de financiamento dos benefícios atuais pelos trabalhadores atuais é chamada de regime de repartição.
Em sociedades com elevada taxa de crescimento populacional, o percentual de pessoas na velhice é reduzido em face do total de pessoas jovens trabalhando, de modo que o sistema, nestas circunstâncias, mesmo com baixas alíquotas de contribuição, é bastante sustentável, com muitos contribuindo para o benefício de poucos.
Ocorre, porém, que as condições demográficas brasileiras em que o nosso sistema de repartição foi pensado e os benefícios estabelecidos se alteraram de forma dramática. A taxa de natalidade caiu vertiginosamente como consequência das políticas de incentivo ao planejamento familiar. A expectativa de vida cresceu muito com o desenvolvimento da medicina e mudanças de estilo de vida, que fazem com que as pessoas vivam muito mais que na década de 60.
O país envelhece rapidamente. A população de idosos cresce 4% ao ano, ao passo que a população em geral cresce apenas 0,9 % ao ano. Em poucos anos, teremos mais idosos que crianças e mais pessoas em idade de se aposentar que pessoas ingressando na idade adulta e no mercado de trabalho.
Além disso, a idade média da aposentadoria no Brasil é de apenas 55 anos, considerando todas as aposentadorias existentes, e a expectativa de vida dos que alcançam a idade para se aposentar se aproxima de 80 anos, o que resulta em um tempo de recebimento de benefícios relativamente longo, se comparado a outros países. Há casos de pessoas que passaram mais tempo na vida aposentados que trabalhando, o que evidentemente não é financeiramente sustentável, nem eticamente aceitável, não do ponto de vista individual, de quem usufruiu um direito concedido, mas do ponto de vista coletivo, de uma sociedade que parece valorizar mais o ócio que o trabalho.
Com efeito, com o aumento da expectativa de vida, o tempo que o beneficiário recebe o benefício se alonga cada vez mais, sendo portanto necessários mais recursos para custeá-lo, sendo especialmente onerosos os casos dos que se aposentam muito jovens, em razão de aposentadorias especiais, tais como militares, médicos, policiais e professores. Contribuem por muito pouco tempo e recebem benefícios não raras vezes por mais tempo que o que contribuíram.
Some-se a isso a questão das pensões por morte, que atingem no Brasil valores, duração e condições que não existem em nenhum outro país desenvolvido. Há pensões no Brasil que duram mais que o tempo de contribuição e de aposentadoria de seu instituidor, o que ocorre com as pensões vitalícias em que há grande diferença de idade entre o instituidor da pensão e o seu beneficiário. Sem falar na possibilidade de cumulação irrestrita de pensões integrais com outros rendimentos, incluída até mesmo uma aposentadoria integral ou outra pensão por morte, permitindo que um único beneficiário seja titular de proventos de aposentadoria integral e pensão vitalícia integral por morte ou de mais de uma pensão, sem nenhuma justificativa econômica ou de ética social aceitável.
Há ainda a questão do déficit atual dos regimes. Tanto o regime geral da previdência social, como o regime próprio dos servidores públicos civis tem elevado déficit, sem falar no déficit imenso do regime dos servidores militares, de baixíssima contribuição e tempo extremamente reduzido de serviço. Os militares federais respondem por metade do déficit que se anuncia a respeito dos servidores da União.
Os gastos com benefícios previdenciários que extrapolam o quanto arrecadado de trabalhadores e empregadores para essa finalidade são custeados pela arrecadação de outras contribuições da competência da União. Como a despesa com os benefícios previdenciários cresce em ritmo superior ao crescimento da economia, temos na previdência o mais importante fator de crescimento estrutural dos gastos primários. Se tal fator não for neutralizado, haverá necessidade de crescimento contínuo da carga tributária, combinado ou não com corte de outras despesas.
É preciso, portanto, alterar as variáveis do sistema de previdência para que ele possa novamente equilibrar receitas e despesas e não ser fonte de consumo de outras receitas que devem ser alocadas para outras finalidades, incluída a necessária redução da dívida.
Entre essas variáveis, a principal é aumento da idade mínima para aposentadoria. O aumento da expectativa de vida impõe que as aposentadorias requeiram idade maior para serem concedidas. Isso ajuda a manter em equilíbrio o número de contribuintes ativos em proporção ao número de aposentados.
Reformar a previdência social, portanto, é preciso e seria preciso mesmo que não estivéssemos afundados em grave crise fiscal e mesmo que a previdência não fosse atualmente deficitária. A crise fiscal e o imenso déficit da previdência apenas tornam evidente a urgência dessa reforma.
Um modelo de previdência sustentável tem de ter os olhos postos no futuro, tem de ser condizente com a dinâmica demográfica do país, enfim, tem de ser atuarialmente consistente, para que os benefícios previstos no futuro não sejam negados aos que sustentam o sistema com suas contribuições no presente.
Infelizmente, isso é o que vai ocorrer em certa medida com os participantes do sistema hoje em razão da insustentabilidade do modelo atual. Grande parte dos participantes do sistema atual terão suas justas expectativas de aposentadoria ao menos parcialmente frustradas, seja no valor do benefício, no caso dos servidores públicos que contribuíram a vida toda sobre o valor total de sua remuneração, seja no momento da vida em que poderá passar a recebê-lo, dada a imperiosa necessidade de se aumentar a idade mínima para concessão dos benefícios.
Evidente que isso resulta da imprevidência de não se haver reformado os regimes antes, especialmente na questão da idade mínima para concessão dos benefícios.
Toda reforma da previdência desperta certo grau de percepção de injustiça com os participantes atuais do sistema, uma vez que a relação sacrifício-benefício se altera no curso da vida laboral, com impacto nas expectativas formadas. Essa percepção é tanto maior quanto mais próximo da aposentadoria se encontra o trabalhador e tanto menor quanto mais recente tiver sido o ingresso do participante no sistema.
Uma regra de transição social e atuarialmente justa deve levar em conta esse gradiente de maturação e consolidação de expectativas. Afinal, embora a participação no sistema seja compulsória, o que legitima o sistema não é e não pode ser apenas o poder de império do Estado tributando trabalhadores e empregadores, mas sobretudo o sentido de justiça, solidariedade e coesão social que o sistema de previdência oferece à sociedade.
O sistema de previdência precisa ser percebido como justo, equitativo, bom, correto e equilibrado para ter razão de existir. Assim como não se justifica manter um sistema de aposentadorias precoces, em que alguns passam mais tempo da vida aposentados que trabalhando, também não faz sentido um sistema em que se passe a vida toda contribuindo para muito pouco tempo de benefício, ou que se contribua com alíquota muito elevada para o custeio do sistema, em valor acima do necessário para mantê-lo equilibrado.
A reforma de previdência deve, portanto, estar atenta às necessidade de legitimação social inerentes a um sistema previdenciário, no qual o valor justiça tem papel central. Entre os pontos positivos da reforma proposta pelo governo, destacam-se a questão da igualdade de gêneros e o da redução do valor das pensões por morte.
A maior expectativa de vida das mulheres não permite que lhes seja facultada aposentadoria mais precoce que as conferidas aos homens. Esse é um benefício atuarialmente insustentável. As mulheres contribuem por cinco anos a menos e vivem mais que os homens. O esforço do sistema para custear a aposentadoria das mulheres é muito superior que o esforço requerido para custear a dos homens.
A justificativa da dupla jornada feminina já não encontra ressonância na sociedade. É cada vez mais comum a divisão de tarefas domésticas e de cuidado com os filhos entre homens e mulheres, participando ambos dos esforços e sacrifícios relativos à manutenção do lar e educação dos filhos. Até mesmo quando ocorrem divórcios, o mais comum atualmente é a guarda compartilhada de filhos.
É preciso igualar a idade mínima de ambos os gêneros para que o sistema resulte mais justo e equilibrado. Outro ponto positivo e fundamental para o sucesso da reforma é o da redução do valor das pensões por morte e a impossibilidade de cumulação com outros benefícios.
A maioria dos países desenvolvidos não concede pensões integrais por morte. De fato, com o passamento do instituidor, há uma natural redução de despesas a serem custeadas pela pensão deixada, uma vez que as despesas pessoais do próprio instituidor deixam de existir, remanescendo apenas a necessidade de conferir proteção e estabilidade econômica à sua família.
Além disso, não faz sentido a acumulação de benefícios de mais de uma pensão ou de pensão com aposentadoria. Há casos de viúvas de mais de um segurado recebendo multiplicidade de pensões! Além disso, sendo titular de uma aposentadoria, que já tem a função de prover segurança econômica, resulta desnecessária a percepção de qualquer pensão.
Entre os pontos negativos destacam-se a omissão da questão dos militares e a idade mágica da regra de transição. De fato, é inconcebível que se faça uma terceira reforma da previdência no Brasil e novamente se deixem intocados os militares, os mais privilegiados do mundo quando se trata do tema previdência!
No caso da União, o déficit dos militares chega a 92%, quer dizer, as contribuições por eles feitas, acrescidas do que seria a contribuição patronal, correspondem a apenas 8% do quanto é gasto pela União para pagamento de reformas e pensões.
Não há razão plausível, aceitável, que justifique pessoas saudáveis, em plena capacidade laboral, se aposentarem com proventos integrais aos 48 anos de idade, com remuneração superior à de sua patente, com expectativa de sobrevida de mais 30 anos. Como país, temos de escolher se queremos manter esses privilégios ou se queremos ter mais recursos livres para gastar efetivamente com saúde e educação.
Em estados como o Rio de Janeiro, para cada coronel da PM ou do Corpo de Bombeiros na ativa existem nada menos que 50 reformados! Em outras unidades da federação e na União a proporção não é muito diferente.
A questão da pensão vitalícia para filhas solteiras de militares é vergonhosa! Nada mais anacrônico no país. Essas mulheres saudáveis e capazes são tratadas como se inválidas fossem, como se não tivessem condições de prover o próprio sustento. Isso vem de uma época em que as mulheres não participavam do mercado de trabalho e eram sustentadas por seus maridos. Portanto, a mulher solteira, ao perder o pai, estava desamparada, carente de proteção social e econômica. Isso hoje é uma pilhéria.
Além de não corresponder à realidade, incentiva toda sorte de fraudes de mulheres que se casam apenas no religioso ou vivem em união estável para não perderem o estado civil de solteiras, a fim de manterem um benefício a que sequer fariam jus se assumissem sua condição de casadas.
O país não pode ter medo de debater a previdência dos militares. Os militares são fundamentais para o país e dignos do maior respeito e reconhecimento, mas os policiais também são, os médicos e professores também, assim como os juízes e membros do ministério público e assim por diante.
Outro ponto a merecer revisão na apreciação da reforma é a regra de transição proposta. Adotou-se a idade mágica de 50 anos para homens e 45 para mulheres, com a justificativa de mitigar em parte a sensação de injustiça provocada pela reforma entre aqueles mais próximos da obtenção da aposentadoria. A sensação de injustiça, contudo, provocada pela escolha de um número arbitrário foi muito maior que a que se pretendia combater.
A idade mágica revelou-se uma escolha trágica. Com efeito, nada há de razoável na escolha de um número peremptório a cavar um fosso abissal entre participantes do sistema em situações muito próximas ou até mesmo invertidas! Além disso, aniquilar as regras de transição anteriores configura violenta quebra de confiança e segurança jurídica.
Que diferença substancial pode haver entre um participante com idade de 49 anos e 11 meses e outro com 50 anos completos? Isso é aberrantemente injusto e desnecessário. Há pessoas com 49 anos que já contribuíram para o custeio das aposentarias e pensões atuais por mais de trinta anos de vida e outras com 50 anos que ingressaram tardiamente no mercado de trabalho e que, portanto, contribuíram pouco. Quem deveria ser protegido pela regra de transição é justamente aquele que já contribuiu mais e que está mais próximo da conquista do direito à aposentadoria.
Uma regra de transição justa e equilibrada não pode estabelecer uma idade trágica para distinguir os participantes do sistema e dividi-los radicalmente ao meio. Como nas reformas anteriores, a regra de transição deve ser proporcional ao tempo faltante para obtenção do benefício, equalizando pro rata temporis o peso de cada regime na vida laboral de cada participante. Aquele que já percorreu metade do caminho no regime anterior deveria percorrer apenas a metade do novo caminho estabelecido. Aquele que já percorreu 90% do caminho anterior, deveria percorrer apenas 10% do novo caminho e vice versa.
Conclusão
O sistema previdenciário de um país precisa estar calibrado de acordo com sua estrutura demográfica. O rápido envelhecimento da população brasileira nos impõe sermos coerentes e responsáveis no desenho de um sistema previdenciário que nos permita continuar proporcionando segurança econômica na velhice dos trabalhadores, sem condenar a sociedade a fazer apenas isso e nada mais. As finanças do país não podem ser transformar numa imensa folha de pagamento, que nos asfixie e nos impeça de sermos capazes de realizar outros investimentos e gastos tão necessários para o nosso desenvolvimento.
Países ricos não aposentam seus trabalhadores tão jovens. Como é que o Brasil, sendo um país pobre, poderia se dar ao luxo de fazê-lo? Envelhecemos antes de nos tornarmos ricos e mesmo se ricos fôssemos, o país teria a obrigação com as futuras gerações de desenhar um sistema previdenciário compatível com sua estrutura demográfica.
Completar a reforma com a inclusão dos militares e estabelecer uma regra de transição pro rata temporis são medidas necessárias e inadiáveis para que a reforma atinja seus objetivos de equilibrar os gastos previdenciários de forma justa e legítima.
Fonte: www.conjur.com.br
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