O que une José Saramago, Fernando Pessoa e Itamaraty?

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Por Claudia Assaf

Brasília, 10 de outubro de 2017

José Saramago, Fernando Pessoa e Itamaraty: o que esses três teriam em comum? Se fosse para encontrar semelhanças a cada dois deles, seria mais fácil, porque poderíamos apontar, por exemplo, a mesma nacionalidade dos dois primeiros, já que Saramago e Pessoa eram portugueses; ou, até mesmo, o carinho pelo Brasil, presente tanto no Itamaraty, por óbvio, na qualidade de representante oficial do Estado brasileiro em meio à comunidade internacional, quanto em Ricardo Reis, um dos heterônimos de Pessoa, já que Pessoa definiu que seu alter ego monarquista Ricardo Reis elegesse o Brasil para nele se exilar em abril de 1919, quando Reis discordou da Proclamação da República Portuguesa. Encontrar algo em comum entre os três, simultaneamente, seria mais desafiante. Seria, mas não é mais, desde 30 de setembro de 2017, dia da prova de português de segunda fase do Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD) de 2017. É que, desde então, os três – Saramago, Pessoa e Itamaraty – carregarão em comum, para toda a eternidade, o fato de pensamentos seus terem sido explorados, individualmente, nas três questões cobradas no referido certame, acerca do qual teço os comentários que ensejaram a produção deste artigo.

José Saramago foi o nome envolvido na questão que valia mais na prova de português de segunda fase – a redação, valendo sessenta do total de cem pontos. Os alunos do Gran Cursos Online sabiam qual o primeiro passo em seu curso de ação: ler, ainda que superficialmente, o comando da redação, tarefa que não levaria sequer um minuto. Foi nesse momento que o candidato soube que enfrentaria algum pensamento do Nobel de Literatura do ano de 1998 e identificou que o tema tão ansiosamente aguardado revelava-se como sendo a “tolerância”. Ufa! Breve alívio passa na mente do candidato, para, em seguida, retornar para a realidade. Se, em um primeiro momento, o tema parecia sair de compêndios de temas possíveis para serem cobrados em certames de ensino médio, de tão atual, no segundo momento o candidato profissional, conhecedor das complexas cobranças tradicionais do CACD, deve ter inferido que, quando a “esmola” é muito boa, precisava desconfiar. O aluno que vem estudando para esse concurso já deve ter deparado com a máxima da Economia – “there is no free lunch”.

Feita a leitura do comando da redação, com vistas a apenas identificar o tema cobrado – qual seja, “tolerância” –, já desconfiado da suposta facilidade de estar sendo cobrado tema tão atual e politicamente correto, o candidato procedeu ao passo seguinte: leitura atenta do excerto fornecido pela banca, assinado por Saramago. Voilà! As suspeitas se confirmaram! O almoço era, de fato, caro. Saindo do lugar comum, Saramago revelava precisamente o que o candidato desconfiado já imaginava, pois o autor posicionava-se CONTRA a até então inofensiva e elogiada TOLERÂNCIA: “Eu sou contra a tolerância, porque ela não basta. Tolerar a existência do outro e permitir que ele seja diferente ainda é pouco. Quando se tolera, apenas se concede, e essa não é uma relação de igualdade, mas de superioridade de um sobre o outro. Sobre a intolerância já fizemos muita reflexão. A intolerância é péssima, mas a tolerância não é tão boa quanto parece”.

Com absoluta clareza e afiada interpretação do comportamento humano, Saramago trazia a questão velada escondida no ato de tolerar o outro. Mostrava que tolerância e intolerância não eram termos perfeitamente opostos, mas, cada um, trazia vida própria. Em uma paráfrase metafórica resumida do excerto, temos que, se, por óbvio, a intolerância era o vilão, enganava-se quem pensava que a tolerância era o mocinho da história – asseverava Saramago. E agora? Bem, após a leitura atenta, era momento de dar o terceiro passo: reler, com extremo rigor, o comando da redação: “A partir da reflexão de José Saramago, apresentada no texto acima, disserte sobre o tema da tolerância, seja nas relações entre pessoas, entre religiões ou entre Estados, e expresse, com argumentos, se concorda ou discorda do que declarou o escritor português”.

A banca espera ler, no texto dos candidatos, teses que sejam originais e inteligentes, ao mesmo tempo em que respondam, de forma clara e precisa, a íntegra dos questionamentos presentes no comando da questão. Simples assim. O candidato que foi capaz de elaborar sua tese e sua linha argumentativa, irrefutável, organizada por meio de tópicos frasais a abrirem, cada qual, um parágrafo de desenvolvimento, em uma sequência de raciocínio logicamente encadeada, para, no parágrafo de conclusão, reafirmar a tese lançada no primeiro parágrafo, obteve, certamente a admiração da banca examinadora. Claro que, para tanto, o conteúdo a preencher essa sequência organizacional trabalhada à exaustão durante o curso extensivo do Gran Cursos online deveria ser intelectualmente maduro, característica natural do candidato que vinha estudando as demais matérias do edital, dada a interdisciplinaridade veladamente cobrada no CACD, como repetidas vezes abordamos no nosso curso extensivo do Gran Cursos Online.

Caberia uma informação estratégica: o tema (IN)TOLERÂNCIA para a redação de 2017 coincidiu com a ideia tácita presente em um novo assunto incluído no edital deste ano na disciplina Política Internacional: “16.9 Conflito étnico, sectário e nacionalismo: os casos do Bálcãs e do Oriente Médio (Síria, Líbano, Iraque)”. Seja como for, coincidência ou não, fica a lição: novos temas que surgem no edital não podem ser negligenciados, em nenhuma das matérias, nem mesmo na prova de português, por causa da tal interdisciplinaridade – tão cara aos examinadores do CACD.

Os dois exercícios, por sua vez, cobraram, respectivamente, pensamentos de Fernando Pessoa e da Casa de Rio Branco. Fernando Pessoa trouxe a guerra; o Itamaraty, a diplomacia pública.

No primeiro exercício, a banca solicitou que o candidato manifestasse, de forma sucinta, se concordava com Fernando Pessoa ou dele discordava, quando, no excerto fornecido, extraído do “Livro do desassossego”, o autor afirmara ser inútil sacrifícios e conflitos em nome de ideais e ambições. No mesmo excerto, Fernando pessoa dizia que os efeitos de guerras e revoluções não lhe causava horror, mas tédio. Sempre há guerras. A humanidade continua a mesma. Mortes e mais mortes, em vão. A questão pedia, ainda, que o candidato exemplificasse sua opinião com algum processo, alguma causa ou algum ideário histórico-político.

Exemplos não faltavam, afinal, o mundo continua enfadonhamente o mesmo, verdadeiro tédio, no que se refere a conflitos sangrentos irracionais, como é o caso da crise síria ou iemenita, para citar apenas dois. Conflito, seja qual for, implica vidas inocentes ceifadas por ideias irracionais que talvez só façam algum sentido na lógica estatal. A sua racionalidade é apenas forjada para convencer o combatente nacional a necessidade de seu sacrifício, que, no fundo, é inútil, uma vez que em nada mudará o mundo para um ambiente melhor ou mais justo, apenas destruirá famílias e gerações. De novo, neste momento, o aluno do Gran Cursos Online sabia que deveria ser quase telegráfico, afinal, poderia escrever apenas de 120 a 150 palavras, e, ao mesmo tempo, perspicaz para responder de forma completa ao que se pediu. Concordar ou discordar e citar exemplo. Simples assim. Difícil seria discordar de Pessoa, nesse mundo formado por potências estatais que pregam a paz por meio de guerra. Aqui, mencionar, na sequência de raciocínio pertinente, a posição tradicional do Brasil – a de que não há solução militar para crises políticas – poderia ser bastante interessante.

O segundo exercício solicitou o comentário do candidato a respeito do papel da diplomacia pública na interação entre o Ministério das Relações Exteriores (chancelaria) e a sociedade nacional em países democráticos. Observa-se que o comando não focava apenas no Brasil, mas contextualizava nas democracias em geral, vale notar. O excerto fornecido para referência inicial foi aberto fazendo alusão a países em geral, para, no segundo momento, citar o Brasil como exemplo – o que poderia induzir o candidato a responder apenas focando no Brasil. Da mesma forma, esperava-se do candidato comentário focado na problemática em como essa interação se dá tradicionalmente nas democracias – não apenas no Brasil, vale repetir –, para, em seguida, citar desafios apresentados a essa interação – caso em que poderia citar tanto desafios observados no Brasil como em outras democracias. A questão dava a oportunidade ao candidato mencionar o papel da tecnologia da informação como instrumento viabilizador dessa interação, para o bem ou para o mal; a importância da participação da sociedade nas tomadas de decisão da diplomacia do país; e os óbices a essa interação.

Independentemente dos temas explorados pelo comando das três questões da prova de português discursiva da edição de 2017 do CACD, é importante frisar que os alunos que acompanharam, atenciosamente, o curso extensivo de português para o CACD do Gran Cursos Online, e, ainda, que já desenvolveram certo grau de maturidade intelectual por meio do estudo das demais matérias cobradas em edital, não encontraram dificuldades para desenvolver as temáticas propostas de maneira focada e organizada. Seja como for, pode-se dizer que a edição de 2017 do CACD abordou, em sua prova mais temida – a prova discursiva de português, de cinco horas de duração –, temas corriqueiros, como tolerância, guerra e diplomacia pública, mas à luz de perspectiva que fugia do lugar comum, trazida, respectivamente, por José Saramago, Fernando Pessoa e Itamaraty. Esse é o espírito preciso da prova de admissão à carreira de diplomata, que busca avaliar, ao fim e a cabo, a capacidade de reflexão do candidato, por meio da manifestação de seus pensamentos mediante textos extremamente bem organizados. Os alunos matriculados no curso extensivo para o CACD do Gran Cursos Online sabem bem disso. Para quem não prestou o exame e pretende fazer o CACD 2018, resolver a prova em tela e submeter suas respostas à crítica de um profissional é um exercício obrigatório.

Claudia Assaf – É diplomata de carreira desde 2006. Mestre em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco, bacharel em Matemática pela UFRJ e graduada em Relações Internacionais pela UniEuro/DF, a professora Claudia Assaf prepara candidatos para a segunda fase do CACD desde 2013, tendo por base os ensinamentos que adquiriu com seus mestres durante o próprio processo preparatório para a sua aprovação no Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata de 2006. Cursou a faculdade de Letras da UFRJ até o quinto período, habilitação Português-Árabe, tendo concluído o curso intensivo de árabe clássico, de dois anos, na Universidade de Damasco, na Síria, em 1994. Como diplomata, serviu na Embaixada do Brasil no Estado do Catar, em Doha (2008-2012); na Missão Permanente do Brasil junto às Nações Unidas, em Nova York (2012-2014); na Embaixada do Brasil no Reino da Arábia Saudita, em Riade (2014-2017); e, atualmente, na sede do Itamaraty, em Brasília, no Departamento do Oriente Médio. É a autora da obra “Diário de Bordo – um voo com destino à carreira diplomática”, autobiografia na qual narra os desafios que teve de superar para ingressar no Itamaraty, e a idealizadora do projeto “Dicas da Diplomata”, no Facebook, em que fornece orientações de diferente natureza aos candidatos do CACD.

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