Participação da Defensoria na fase inquisitorial é obrigatória?

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Por Franklyn Roger Alves Silva

No início deste ano, a classe da advocacia foi presenteada com a Lei 13.245, de 12 de janeiro de 2016, que altera o seu estatuto (Lei 8.906/94) e introduz novas prerrogativas aos advogados, mediante alteração de alguns incisos e parágrafos do artigo 7º.
Dentro da estrutura orgânico-normativa da Defensoria Pública, houve interessante discussão a respeito da aplicabilidade dessas novas normas e, especialmente, sobre a incorporação de uma nova função institucional, a de atuação no inquérito policial. Nosso propósito é de compreender a disciplina da advocacia e sua atuação no inquérito policial e verificar a compatibilidade desse conjunto de normas ao cotidiano da Defensoria Pública.
De acordo com a nova redação do artigo 7º, XIV da Lei 8.906/94, caberá ao advogado “examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital”.
Esse dispositivo não traz nenhuma novidade ao regime de prerrogativas da Defensoria Pública, já que sua redação encontra-se contemplada pelos incisos VIII (examinar, em qualquer repartição pública, autos de flagrantes, inquéritos e processos, assegurada a obtenção de cópias e podendo tomar apontamentos) e XI (representar a parte, em feito administrativo ou judicial, independentemente de mandato, ressalvados os casos para os quais a lei exija poderes especiais) dos artigos 44 e 128 da LC 80/94.
A expressão repartição pública, lançada no texto da LC 80/94, também alcançaria o sentido pretendido pelo legislador quando se refere, agora, à instituição responsável por conduzir investigação no texto do Estatuto da OAB, o que tornaria semelhante os sentido de ambas as normas.
As diferenças entre os dispositivos são mínimas, resumindo-se à referência aos atos de investigação feitos por meio eletrônico (digital) e a menção à possibilidade de acesso mesmo quando conclusos à autoridade. Essas previsões normativas, apesar de não manterem correspondência com o conteúdo da LC 80/94, não seriam obstáculos ao exercício das prerrogativas nelas previstas, já que derivariam da própria essência do artigo 4º da Lei Nacional da Defensoria Pública.
Na realidade, a reforma teve como alvo os advogados que encontravam muita dificuldade no acesso ao andamento das investigações de seus clientes, incorporando duas novas perspectivas procedimentais. A primeira delas, levada a cabo anteriormente pelo STF com a edição da Súmula Vinculante 14 (“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”).
A segunda perspectiva refletiria a tendência moderna de obtenção de elementos de convicção baseados em CPIs e na própria atividade de investigação feita diretamente pelo Ministério Público, com suporte na Resolução 13/2006 do CNMP, que criava um vácuo de regulamentação no tocante a atuação do advogado.
Outra modificação também passível de confronto com as normas da Defensoria Pública diz respeito a redação do inciso XXI do artigo 7º do Estatuto da OAB. De acordo com seu texto, é direito do advogado “assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração apresentar razões e quesitos”.
Poder-se-ia defender que o novo inciso XXI, do artigo 7º da Lei 8.906/94 estaria inaugurando nova função institucional de atuação na fase de investigação policial, cabendo à Defensoria Pública atuar em todos os depoimentos e inquirições a serem feitos quando não houver a presença de advogado, sob pena de nulidade desses atos.
Sabemos que a atuação da Defensoria Pública no processo penal constitui função tendencialmente solidarista ou classicamente atípica, o que significaria reconhecer que o defensor público exerce a defesa independentemente da condição econômica do indiciado/acusado.
Já tivemos a oportunidade de indicar a necessidade de atuação no inquérito policial, diante da função institucional prevista no artigo 4º, XIV da LC 80/94, bem como o aprofundamento da instituição no exercício da investigação defensiva, quando houvesse pertinência ao exercício da defesa[1].
É por essa razão que a nova disciplina da advocacia em nada inova a realidade da Defensoria Pública, posto que o dever de atuação no inquérito policial já existe há muito tempo, ainda que negligenciado pela falta de recursos humanos da própria instituição.
Aliás, a própria redação do dispositivo da Lei 8.906/94 é bem restritiva, por traduzir um direito do advogado de “assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações”. Não vemos, nessa norma, o direito de o indiciado ser patrocinado pela defesa técnica sob pena de nulidade[2]. Trata-se de uma prerrogativa do advogado de participar do ato feito em desfavor de seu cliente. O propósito da norma é o de evitar atos abusivos praticados por autoridades encarregadas da investigação, que pretendam negar acesso ou tolher a atuação advogado[3].
O assistido da Defensoria Pública tem direito a assistência jurídica na fase de investigação não por força do novo diploma da OAB, mas pelo próprio texto da LC 80/94 e do artigo 134 da CRFB que lhe conferem assistência jurídica integral.
Se a Defensoria Pública atuar no inquérito policial e for recusada a sua participação em favor de determinado assistido? Haverá nulidade? Sem sombra de dúvida que sim, mas não com base no dispositivo da OAB, mas pelo próprio desrespeito aos dispositivos constitucionais e convencionais que asseguram a assistência jurídica integral na investigação e persecução penal.
Fala-se também, seguindo essa proposta de ampliação de funções institucionais, que a nova disciplina da audiência de custódia, implementada oficialmente pela Resolução 213/2015, editada pelo Conselho Nacional de Justiça, traduz um novo paradigma de atuação institucional.
Não obstante o respeito a essas posições, cremos que também não seja o caso. A Convenção Americana de Direitos Humanos determina desde 1992, que todo o preso seja conduzido, sem demora, à presença de um juiz e que tenha assegurada defesa técnica.
Apesar dessa realidade, somente nos anos de 2007 e 2009 é que a Defensoria Pública recebe a expressa missão de “acompanhar inquérito policial, inclusive com a comunicação imediata da prisão em flagrante pela autoridade policial, quando o preso não constituir advogado” (artigo 4º, XIV da LC 80/94 e 306, parágrafo 1º do CPP) e a de “atuar nos estabelecimentos policiais, penitenciários e de internação de adolescentes, visando a assegurar às pessoas, sob quaisquer circunstâncias, o exercício pleno de seus direitos e garantias fundamentais” (artigo 4º, XVII da LC 80/94), ainda que, a meu ver, tais funções derivassem do preceito maior de assistência jurídica integral e gratuita, passíveis de exercício desde a Constituição de 1988.
Mais uma vez, acreditamos que a atuação em audiências de custódia seja um desdobramento das outras funções institucionais, não constituindo um dever autônomo de atuação.
A única norma de utilidade à Defensoria Pública é a do parágrafo 12 do artigo 7º, da Lei 8.906/94, ao prever que a “inobservância aos direitos estabelecidos no inciso XIV, o fornecimento incompleto de autos ou o fornecimento de autos em que houve a retirada de peças já incluídas no caderno investigativo implicará responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade do responsável que impedir o acesso do advogado com o intuito de prejudicar o exercício da defesa, sem prejuízo do direito subjetivo do advogado de requerer acesso aos autos ao juiz competente”.
A mesma consequência aplicável ao não atendimento da prerrogativa da advocacia também se aplicará à Defensoria Pública, responsabilizando-se criminal e funcionalmente a autoridade que desrespeitar as prerrogativas dos incisos VIII e XI dos artigos 44 e 128 da LC 80/94.
A aplicabilidade daquela disposição decorre da prerrogativa de extensão contida nos artigos 44, XIII e 128, XIII da LC 80/94, que determina o tratamento equivalente que se confere aos ocupantes das funções essenciais à justiça aos membros da Defensoria Pública.
No que tange ao direito subjetivo conferido ao advogado para requerer acesso aos autos ao juiz competente, trata-se de norma estatuindo instrumento apto à defesa de prerrogativa, que já existe em nossa LC 80/94, como se vê do artigo 4º, IX (impetrar Habeas Corpus, mandado de injunção, habeas data e mandado de segurança ou qualquer outra ação em defesa das funções institucionais e prerrogativas de seus órgãos de execução), tornando-se desnecessária a sua aplicabilidade.
A par do pioneirismo de Mauro Cappelletti na identificação das linhas do acesso à Justiça, há uma frase do professor Leonardo Greco que traduz, com exatidão, a realidade da assistência jurídica gratuita: “O sistema ideal é aquele em que o patrocínio dos interesses dos pobres é exercido em igualdade de condições com o daqueles que podem arcar com a contratação de advogados particulares”[4]. No processo penal essa premissa deve se somar a outra, correspondente ao equilíbrio de armas entre a acusação e defesa, corolário do princípio do favor rei.
A nova Lei 13.245/2016 não altera o regime de funções institucionais ou prerrogativas dos membros da Defensoria Pública. Em verdade, a sua maior utilidade é servir de reforço argumentativo para que o comando do artigo 98 do ADCT, introduzido pela Emenda Constitucional 80/14, que determina a presença de um defensor público em cada comarca, seja implementado o mais rápido possível.
Se o indiciado que pode arcar com os honorários de advogado tem representação desde a fase de investigação, mediante um profissional que possa assegurar uma atuação eficaz, seguindo a premissa do professor Leonardo Greco, o Estado deve aparelhar a Defensoria Pública, de modo que seus assistidos possam contar com igual assistência.


[1] ESTEVES, Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro: Forense, 2014. P. 432.
[2] É o mesmo entendimento comungado por Henrique Hoffmann e Adriano Costa: “Nota-se que a participação do advogado no inquérito policial continua não sendo obrigatória, mas o procurador do investigado tem o direito de participar da inquirição do cliente. Trata-se mais de prerrogativa do advogado constituído do que um direito do suspeito, cujo exercício da ampla defesa, conquanto seja mitigado na fase pré-processual, será pleno apenas na etapa processual. Afinal, o artigo 6º, V do CPP admite o emprego das regras do interrogatório judicial à fase policial apenas no que for aplicável, em respeito justamente à natureza inquisitiva do inquérito policial”. (CASTRO, Henrique H. M; COSTA, Adriano. Advogado é importante no inquérito policial, mas não obrigatório. Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-jan-14/advogado-importante-inquerito-policial-nao-obrigatorio acesso em 9.mai.2016).
[3] “Embora num Estado democrático de direito a resposta devesse ser positiva, de acordo com o nosso entender, a nova Lei supra referida não traz em seu bojo tal obrigatoriedade, mas traz avanços no que concerne ao direito de ampla defesa do acusado.” (TREVISOL, Elias Guilherme. É obrigatória a presença do advogado no inquérito policial? Disponível em http://justificando.com/2016/02/01/e-obrigatoria-a-presenca-do-advogado-no-inquerito-policial/ acesso em 9.mai.2016).
[4] GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015. Vol. I. P. 435
Fonte: Conjur
 

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