Fonte: Conjur
Na senda de Michel Foucault, Rui Cunha Martins e Geraldo Prado, o Processo Penal é o ambiente político que retrata a atuação de um poder. Sua democraticidade ou autoritarismo remete ao regime político e seu respectivo meio de controle social punitivo. É o que se denomina de “fenômeno político complexo”[1], “microcosmo do Estado de Direito”[2] ou “elementos autoritários.”[3], de normas processuais penais que repetem mecanismos autoritários mesmo diante de uma nova ordem constitucionalmente democrática.
Sob a égide dos Códigos Penal e Processual Penal de 1940 e em razão de sua estrutura autoritária, recheada de terminologias juridicamente indeterminadas como “garantia da ordem pública” e “conveniência de instrução processual penal”, repete-se um arcaico discurso de ocasião, de que na investigação criminal não há contraditório nem defesa. Dessa forma, ainda que se admita coerente o verbete da Súmula Vinculante 14 do STF, nega-se, sistematicamente, o acesso do investigado aos elementos probatórios.
O fato de formalmente ter se instaurado uma democracia em nosso país por intermédio das estruturas de poder instituídas em aparente ambiente democrático não torna este ambiente um lugar com práticas democráticas. Notadamente, grande parte dos membros do Congresso brasileiro são investigados, processados e condenados devido à cleptocracia instaurada com o objetivo de atender a interesses corporativos por meio da elaboração de um emaranhado de legislações no âmbito da justiça penal, desconectado com a ideologia Garantista. Forma-se, a partir daí, um sistema utilitarista, norteador do neoliberalismo, que por sua vez alimentou e continua alimentando um sistema político cleptocrático.
O que ocorre em nosso ordenamento é uma constante prática autoritária violadora de direitos fundamentais e de direitos humanos no âmbito Processual Penal. Já disse Foucault, em tradução livre: “parece que mais antigamente a justiça era um direito dos indivíduos, e um dever para os árbitros (pessoas que exerciam a função de juízes): em seguida a justiça irá se transformar em exercício de poder, dever para os subordinados”[4].Neste jaez, alerta a progressão da sociedade para uma lógica de presunção de culpa. A lógica anterior era a de que a justiça servia à promoção de uma decisão que interessava às partes, enquanto nos dias atuais, não passa de expressão de poder, em exercício de um direito próprio, convertendo as regras em prol de demonstração de poder institucional.
Esse fenômeno reflete na lógica da presunção de culpa, ideal de nosso presente Código de Processo Penal e demais regramentos, inclusive sobre a prisão. Lógica ainda vigente, ainda após a Lei 12.403/2011, e que toma força midiática, na medida que é preciso publicitar que as instituições são fortes para a população, principalmente o Poder Judiciário, sendo necessário a demonstração de força pela prisão, e não a demonstração de força com a capacidade de se contrariar a opinião pública (desejo da maioria), razão maior da função contra majoritária de uma Constituição. Essa preocupação é de toda a América Latina e não somente do Brasil. Na Argentina, por exemplo, Vegezzi Santiago, em seu artigo científico “Os Fins Processuais da Prisão Preventiva” (tradução livre), coordenado por Nicolás Guzmán e dirigido por Daniel R. Pastor[5], que denota o elo íntimo da prisão processual como uma ferramenta de antecipação de penal, exatamente como ocorre no Brasil.
O tema retoma relevante importância, principalmente, quando hodiernamente testemunhamos a implementação da manipulação da audiência de custódia como ferramenta messiânica de solução a estes abusos, nas quais, já vem se mostrando, pelas estatísticas, mais um mecanismo de controle social penal de encarceramento por etiquetamento. Segundo os dados do CNJ[6] até abril de 2017 foram realizadas no Brasil 229.634, com 125.965 mantidos detidos, ou seja, 54,85%, mais do que a média nacional, antes da audiência de custódia.
O artigo científico elaborado pelo autor Vegezzi Santiago, analisa a prisão preventiva e elabora a introdução ao tema fundamentando seus argumentos sobre o regramento da medida coercitiva de liberdade utilizando como base teórica o princípio da presunção de inocência combinando a proibição à restrição do direito de ir e vir, consagrados respectivamente nos arts. 18 e 14 da Constituição Nacional Argentina[7], bem como a interpretação dos art. 280 e 319 do Código de Processo Penal Nacional da Argentina (CPPN), já alterado pelo Novo CPPN, que se encarregou de alterar estas regras e instituiu objetivamente dois pressupostos entre o elenco de princípios para a prisão preventiva, conforme o novo artigo 17: “(….)as medidas restritivas de liberdade somente se fundamentam na existência de perigo de fuga ou obstrução da investigação.” (tradução livre) e em seu art. 185, que também se refere ao perigo de fuga ou ao “entorpecimiento del processo”, que equivaleria à embarcamento ou dificultar a regularidade processual.
Isto quer dizer, que a finalidade da prisão deve ter alcance puramente cautelar. Se a prisão for decretada para alcançar o mesmo fim que se alcança com uma sentença condenatória, ou seja, realizando a lógica ou os fins do direito substantivo (efeito da pena, dentre elas a prevenção do crime), a medida não estaria perseguindo seus fins processuais, e neste sentido, violaria o princípio da presunção inocência, pois a prevenção geral é efeito da pena, mas somente após a coisa julgada material do mérito. No Brasil, há ainda, o precedente proveniente do HC 126.292, na qual a coisa julgada formal sobre os fatos desconstitui a presunção de inocência e autoriza o cumprimento provisório da pena, mas o tema poderá ser discutido posteriormente.
Esta questão não é uma necessidade somente de um estudo teórico e acadêmico, sem repercussão prática. A primeira dessas repercussões deve permear pela desconstrução da própria cultura de uma punibilidade irracional e sem critério objetivo. Por esta razão, andou bem a banca examinadora do concurso público para ingresso na carreira de Delegado de Polícia do Estado do Pará, na qual divulgou em seu gabarito oficial em sua prova discursiva em forma de peças processuais que o candidato deveria abordar a inconstitucionalidade da prisão por “garantia de ordem pública”, por considerar uma antecipação de pena, consequentemente, violadora da presunção de inocência. Ainda poderemos avançar mais, conforme veremos adiante.
No entender do autor, o Código de Processo Penal Federal em seu art. 208 assegura que o princípio seja interpretado desta forma ao dispor que a liberdade somente poderá ser restringida para assegurar o descobrimento da verdade e a aplicação da lei penal, que combinado com o art. 319, que será negada a liberdade existindo risco de que o imputado possa fugir a atuação da justiça, ou seja, risco de fuga do réu.
Seguindo essa linha de raciocínio o autor traz à colação o Princípio da Razoabilidade, disposto no art. 28 da CN, junto ao argumento de autoridade de Julio Mayer, fundado no mesmo dispositivo constitucional, para consolidar a ideologia de que o Código de Processo Penal é a regulamentação das garantias fundamentais dispostas na Constituição, no mesmo sentido que Velez Mariconde ao assinalar que “a administração da justiça deve ser feita pelo direito processual penal utilizando-se como base sua instrumentalidade prática para dar vida aos dogmas constitucionais”[8].
Prosseguindo com a análise do CPPN em seus artigos 316 e 317 que tratam das hipóteses de “Exención de prisión y Excarcelación”, que no Brasil denominaríamos de “livrar-se solto e liberdade provisória”, que na Argentina era avaliada somente pelo Juiz (de instrução)[9], atualmente, pelo Juiz de garantias. No Brasil essa função, em parte (art. 322 do CPP), é o Delegado de Polícia. Em síntese, o autor denuncia, que segundo os dispositivos do CPPN supracitados, os pressupostos para a concessão de liberdade ao acusado diante de um ou vários crimes não possuíam justificativas processuais, mas sim substanciais, pois relacionados exclusivamente com a quantidade da pena, exatamente como ocorre em nosso ordenamento ao limitar o Delegado de Polícia em conceder fiança somente em casos cuja pena máxima seja de 4 anos, em razão de uma suposta presunção de periculosidade, ao nosso ver, não convencional[10].
Diante dessas regras sobre liberdade provisória, não há garantia à efetivação do princípio da presunção de inocência, mas ao contrário, lhe nega eficácia por ser desarrazoado, pois nenhum dos motivos elencados nos artigos supramencionados estão relacionados a neutralização dos perigos processuais de obstrução da atividade jurisdicional ou da investigação criminal ou perigo de fuga, razões para a decretação da prisão preventiva com únicos legitimados para uma medida coercitiva da liberdade do imputado.
O autor traz a colação que além dos perigos processuais deve haver um vínculo com os fatos evidenciando uma probabilidade de condenação, ou seja, uma “suspeita substantiva”. O que não ocorria na Argentina até promulgação de seu novo CPP. Tampouco ocorre em nosso ordenamento, pois nosso sistema utiliza a pena como paradigma, por exemplo, para arbitrar fiança, tanto para o juiz quanto para o delegado, e a associa à pena máxima e não à mínima, que seria a quantidade de pena efetivamente empregada na prática, na maioria esmagadora dos casos, denotando-se uma presunção ex lege de periculosidade e gravidade do crime, aspecto material, e não processual.
O que ocorre é uma combinação letal entre o suporte probatório da instrução processual combinado a uma quantidade de pena que faça presumir seu cumprimento efetivo de uma condenação, gerando consequentemente uma presunção de perigo, acarretando o que denominamos de uma prisão preventiva substantivista, que em outros termos é uma antecipação da pena.
Em linhas gerais, a lei associa a quantidade de pena com seu efetivo cumprimento como pressuposto para manutenção da prisão. A inferência de que se trata de pressupostos processuais para a manutenção da prisão provisória é uma maquiagem de que se vale o legislador para esconder o real sentido puramente material, resultante de presunção de provável castigo em razão do fator gravidade do crime, cumprindo o mesmo propósito da lógica da prova tarifada, tornando os aplicadores da norma, juiz ou delegado, boca da lei[11].
Verifica-se, portanto, que não há um sistema de presunção de riscos, mas sim uma verdadeira prisão preventiva de caráter material, uma verdadeira previsão legal de antecipação da pena, no Código de Processo Penal da nação argentina, que foi rechaçada pelo novo Código de Processo Penal Nacional (argentino).
No Rio de Janeiro, foram estudados[12] 4.859 casos de acusados, desde a prisão em flagrante até a judicialização da mesma. Dentre diversas conclusões, a mais contundente foi a concessão de liberdade provisória pelo Delegado de Polícia ter aumentado em mais de 1.000% em relação ao Judiciário, comparativamente a medida de fiança como contra cautela. Antes da reforma era de 0,7% de liberdade mediante fiança. Após a lei 12.403/11 subiu para 22,4% de liberdades concedidas, enquanto sua concessão pelo juiz saiu de 1,0% para um aumento de 1,2% após a lei.
Constatou-se outro dado importante, e pior que na Argentina. Além da vinculação da prisão à pena há um critério decisionista denominado de “garantia da ordem pública”, fundamento da maioria esmagadora de prisões preventivas. Este pressuposto provém historicamente da prisão “por clamor público”, previsto no art. 131 da Lei 29 de novembro de 1832, que promulgou o Código do Processo Criminal de primeira instancia pelo governo Regente de Dom Pedro II. É fácil de entender. Expressão que nada explica, tudo cabe.
As estatísticas da audiência de custódia, sem a devida reforma do CPP brasileiro, denunciam a velha “patologia processual penal – inaceitável, diga-se de passagem – de infringir uma pena-processo”, denunciando mais uma famigerada política de “substitutivos penais – meios de defesa social, não esqueçamos ao fundo (….). São aditivos às prisões que, quando não se tornam meros prolongamentos do encarceramento, esgarçam a rede de controle social formal.”[13] Esperamos que daqui a 30 anos olhemos assustados para o CPP/1941 da mesma forma com que nos estarrecemos com o que foi a Santa Inquisição.
[1] FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nau, p. 75
[2] MARTINS, Rui Cunha. A hora dos cadáveres adiados: corrupção, expectativa e processo penal. São Paulo: Atlas, 2013, p. 3
[3] PRADO, Geraldo. A transição democrática no Brasil e o Sistema de Justiça Criminal. Disponível na internet aqui. Acesso em 17/07/2015
[4]FOUCAULT,A Michel: “Sobre la justicia popular”, en Um diálogo sobre el poder y otras conversationes, Alianza, Madrid, 2001, p. 40.
[5] GUZMÁN, Nicolás. Neoponitivismo y neoinquisición: Un análisis de políticas y práticas penales violatorias de los derechos fundamentales del imputado. Coord. Nicolás Gusmán y Daniel R. Pastor. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2008, p. 527 a 543.
[6] Disponível neste link. Acesso em 16/07/2017
[7] Disponível em <http://www.senado.gov.ar/web/interes/constitucion/cuerpo1.php>, acesso em 14/08/2012
[8] VÉLEZ MARICONDE, Alfredo. Derecho procesal penal. T. I, 2ª ed. Lerner, APUD, Santiago Vegezzi, p. 320.
[9] Em razão da figura do Juiz de Instrução, até a vigência do antigo Código, razão pela qual a figura do Delegado é realizada pelo judiciário, como ocorria em nosso CPP antes da Constituição de 88
[10] BARBOSA, Ruchester Marreiros Barbosa. Função de Magistratura da Autoridade de Polícia Judiciária. In HOFFMANN, Henrique; MACHADO, Leonardo Marcondes; ANSELMO, Márcio Anselmo; BARBOSA, Ruchester Marreiros. Polícia Judiciária no Estado de Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 63; BARBOSA Ruchester Marreiros. Limite à análise da liberdade pelo delegado viola direitos humanos. Revista Consultor Jurídico. Fev/2016. Disponível neste link. Acesso em: 16/07/2017
[11] MONTESQUIEU, O Espírito das Leis, apresentação, Renato Janine Ribeiro, trad. Cristina Muracho, 2ª ed., 2ª tir. 2000, São Paulo: Martins Fontes, 1996, Livro décimo primeiro, capítulo IV, p. 175.
[12] LEMGRUBER, Julita; FERNANDES, Marcia; CANO, Ignacio; MUSUMECI, Leonarda. Usos e abusos da prisão provisória no Rio de Janeiro: Avaliação do impacto da Lei 12.403/2011. Rio de Janeiro: ARP/CESeC, 2013. Disponível neste link. Acesso em 16/07/2017
[13] AMARAL, Augusto Jobim. Política da prova e cultura punitivista: a governabilidade inquisitiva do processo penal brasileiro contemporâneo. São Paulo: Almedina, 2014, p. 305.
Ruchester Marreiros Barbosa – Direito Penal e LESP – Delegado de Polícia Civil/RJ
Delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, doutorando em Direitos Humanos na UNLZ (Argentina), professor da: EMERJ; Escola Nacional de Polícia Judiciária/DF; graduação e pós-graduação em Direito Penal, Processo Penal e Penal Ambiental da UNESA; Portal F3; Pós-graduação da FACTOPAR/Paraná; SESEG/RJ; FAEPOL; CURSO CEI; PROAB e ENADE da UNESA; coautor de obras jurídicas; colunista do Conjur e Canal Ciências Criminais; Membro da AIDP e LEAP.
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