Olá pessoal, tudo certo?
Hoje falaremos sobre um tema extremamente polêmico e que vem movimentando a doutrina e a jurisprudência acerca de novidades inseridas no ordenamento jurídico pela Lei Anticrime (Lei nº 13.964/2019). Refiro-me à revisão periódica da prisão preventiva, encartada no art. 316, parágrafo único do Código de Processo Penal. Vejamos:
Art. 316. O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
Esse dispositivo traz algo muito aguardado pela doutrina processual penal, já que a prisão preventiva – diferentemente do que ocorre com a prisão temporária – não possui prazo pré definido pelo legislador. Assim, não raro, há notícias de prisões preventivas absolutamente irrazoáveis, que duram cinco, dez ou até quinze anos, pelo simples fato de o recluso ser “esquecido no cárcere cautelar”.
Com o fito de se evitar situações como essas, o legislador inseriu a ideia de revisão periódica dessas prisões preventivas. Assim, a partir da vigência da Lei Anticrime, os magistrados precisarão (re)analisar a pertinência, legalidade e razões que ensejaram a referida cautelar pessoal e verificar – fundamentadamente – se sua manutenção é (ainda) necessária e adequada. Caso contrário, a revogação será de rigor.
É bem verdade que esse dispositivo do art. 316 do Código de Processo Penal é repleto de polêmicas. Há muita coisa para falar sobre ele. No entanto, no presente artigo, nos concentraremos apenas em uma delas. Será mesmo que todos os órgãos do Poder Judiciário se submetem ao comando do art. 316, parágrafo único do CPP? Ou essa obrigatoriedade de revisão se limita ao órgão emissor da decretação prisional?
Particularmente, entendo que esse comando deve ser observado por todas as instâncias, ou seja, juízo de 1º grau, Tribunal revisor e Tribunais Superiores. Explico. O sistema processual é regido pela ideia de “esgotamento de instâncias” (art. 494 do CPC[1]), ou seja, uma vez encerrada a atuação de uma determinada esfera judicial, a competência será transferida para outra – na íntegra – naquilo que se abrange em um recurso.
Ou seja, se estivermos diante de uma prisão preventiva decretada por um juiz de direito, tão logo prolatada sentença condenatória e mantida a referida cautelar, a partir da apresentação de apelação, a competência – inclusive para análise das cautelares – também é direcionada ao órgão recursal, devendo o mesmo raciocínio ser observado em relação aos Tribunais Superiores. Ora, se a natureza cautelar da prisão mantém essa natureza até o momento do trânsito em julgado – quando eventual prisão se tornará definitiva – a competência da revisão periódica deverá acompanhar as instâncias superiores.
Não faz muito sentido, na minha visão, entender como encerrada a competência jurisdicional do magistrado de 1º grau que decretou a prisão preventiva e manter sua competência para efetuar a revisão periódica a cada 90 dias de processos que se encontram do Tribunal Recursal, Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal.
ATENÇÃO! Apesar de essa ser a minha visão (e de grande parte da doutrina), é preciso cuidado. É que, diferentemente do esposado, o entendimento que – até o momento – se revela majoritário no Superior Tribunal de Justiça é em sentido oposto.
No último dia 22 de setembro, foi publicado no Diário Eletrônico do STJ uma decisão exarada pela 6ª Turma da Corte, apreciado a ordem de habeas corpus 589.544/SC. Segundo o que fora deliberado, a obrigação de revisar, a cada 90 (noventa) dias, a necessidade de se manter a custódia cautelar (art. 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal) é imposta apenas ao juiz ou tribunal que decretar a prisão preventiva. Com efeito, a Lei nova atribui ao “órgão emissor da decisão” – em referência expressa à decisão que decreta a prisão preventiva – o dever de reavaliá-la. Encerrada a instrução criminal, e prolatada a sentença ou acórdão condenatórios, a impugnação à custódia cautelar – decorrente, a partir daí, de novo título judicial a justificá-la – continua sendo feita pelas vias ordinárias
recursais, sem prejuízo do manejo da ação constitucional de habeas corpus a qualquer tempo. De acordo com a Ministra Laurita Vaz (Relatora do referido HC), pretender o intérprete da Lei nova que essa obrigação – de revisar, de ofício, os fundamentos da prisão preventiva, no exíguo prazo de noventa dias, e em períodos sucessivos – seja estendida por toda a cadeia recursal, impondo aos tribunais (todos abarrotados de recursos e de habeas corpus) tarefa desarrazoada ou, quiçá, inexequível, sob pena de tornar a prisão preventiva “ilegal”, data maxima venia, é o mesmo que permitir uma contracautela, de modo indiscriminado, impedindo o Poder Judiciário de zelar pelos interesses da persecução criminal e, em última análise, da sociedade.
Ou seja, conforme esposado pela 6ª Turma, a compreensão é de que o comando do art. 316, parágrafo único do CPP deve se direcionar apenas ao órgão emissor da decisão de decretação da prisão preventiva, não sendo passível de transferência de competência para as instâncias recursais. Trata-se, pois, de uma “estranha” exceção à lógica do esgotamento de instâncias.
Essa mesma compreensão já havia sido manifestada pela 5ª Turma, ao anotar que nos “termos do parágrafo único do art. 316 do CPP, a revisão, de ofício, da necessidade de manutenção da prisão cautelar, a cada 90 dias, cabe tão somente ao órgão emissor da decisão (ou seja, ao julgador que a decretou inicialmente) (…). Portanto, a norma contida no parágrafo único do art. 316 do Código de Processo Penal não se aplica aos Tribunais de Justiça e Federais, quando em atuação como órgão revisor”[2].
Apesar da minha discordância, a impressão que eu tenho é que esse entendimento se sagrará majoritário, fundamentalmente porque ele encerra um argumento utilitarista de assoberbamento de trabalho nos Tribunais Recursais e Superiores.
No entanto, o tema ainda não está totalmente pacificado, especialmente no âmbito do Supremo Tribunal Federal, razão pela qual demandará calma, acompanhamento e atualização sobre esse importantíssimo tema, certo?
Excelente para cair em provas, especialmente em fases discursivas.
Espero que tenham gostado e, sobretudo, compreendido!
Vamos em frente.
Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.
[1] Art. 494. Publicada a sentença, o juiz só poderá alterá-la: I – para corrigir-lhe, de ofício ou a requerimento da parte, inexatidões materiais ou erros de cálculo; II – por meio de embargos de declaração.
[2] 5ª Turma do STJ, AgRg no HC 569.701/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, julgado em 09/06/2020, DJe 17/06/2020