O conhecimento da jurisprudência interamericana tem sido cada vez mais cobrado nos concursos públicos da magistratura. Por isso, trago hoje o resumo de todas as condenações sofridas pelo Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Vamos lá?
Caso Ximenes Lopes vs. Brasil (2006)
Um brasileiro de 30 anos de idade foi internado por sua mãe, em outubro de 1999, na única clínica psiquiátrica (Casa de Repouso Guararapes) do município de Sobral, no Ceará. Quatro dias depois, a mãe foi visitá-lo e o encontrou com sinais de maus tratos extremos. Algumas horas depois, o rapaz faleceu.
No julgamento, a Corte reconheceu as violações dos arts. 4º e 5º da Convenção Americana, notadamente pelo fato de o jovem ter um transtorno mental e pela demora da Justiça brasileira nos processos criminal e cível ajuizados pela família.
A Corte também afirmou, na oportunidade, que os atos das entidades, sejam públicas ou privadas, autorizadas a atuar com capacidade estatal, são diretamente imputáveis ao Estado. No final, a Corte condenou o Brasil a reparar moral e materialmente a família Ximenes, por meio do pagamento de uma indenização e outras medidas não pecuniárias.
Caso Escher e Outros vs. Brasil (2009)
Em maio de 1999, uma juíza do Paraná autorizou, sem fundamentação e fora de sua competência, a realização de grampos em linhas telefônicas de cooperativas de trabalhadores ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, cujas gravações foram vazadas para a imprensa.
A Corte entendeu que o Brasil violou os arts. 11 (proteção da vida privada) e 16 (liberdade de associação), pois a interceptação realizada em detrimento das vítimas não observou os requisitos do direito interno e com a intenção de criminalizar os trabalhadores rurais ligados a movimentos sociais.
Caso Garibaldi vs. Brasil (2010)
A República Federativa do Brasil foi acusada de não cumprir a sua obrigação de investigar e punir as violações dos direitos humanos decorrentes da execução extrajudicial de Sétimo Garibaldi, militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. No julgamento, Corte assentou que o Brasil violou os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial (arts. 8º e 25) dos familiares de Garibaldi em razão da excessiva demora na investigação criminal.
Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil (2010)
Com o objetivo de erradicar a Guerrilha do Araguaia, o exército brasileiro empreendeu operações entre 1972 e 1975, resultando na execução extrajudicial de uma pessoa e na detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses da região do Araguaia.
A Corte concluiu que a República Federativa do Brasil foi responsável pelo desaparecimento forçado de 62 pessoas. Na oportunidade, a Corte IDH analisou a compatibilidade da Lei n. 6.683/1979 (Lei de Anistia) com as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil à luz da CADH, concluindo que as disposições dessa lei que impedem a investigação e a punição de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana e carecem de efeitos jurídicos, razão pela qual não podem continuar representando um obstáculo para o cumprimento da obrigação de jus cogens de investigar e punir os responsáveis pelos desaparecimentos forçados.
Convém registrar que o STF, ao julgar a ADPF 153, declarou a constitucionalidade da Lei n. 6.683/1979, assentando que a Lei de Anistia alcançou os crimes praticados pelos agentes do Estado contra os que lutavam contra o Estado de exceção, sendo, portanto, bilateral, ampla e geral (STF, ADPF 153, Rel. Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, julgado em 29/04/2010, publicado em 06/08/2010). Ao julgar o caso Gomes Lund vs. Brasil, a Corte IDH asseverou que o STF não exerceu o controle de convencionalidade e confirmou a validade da interpretação da Lei de Anistia sem considerar as obrigações internacionais do Brasil derivadas do direito internacional.
Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil (2016)
A República Federativa do Brasil foi acusada de não prevenir e não responsabilizar os autores da prática de escravidão contemporânea. Restou provado que, na Fazenda Brasil Verde, foram encontradas mais de cem pessoas que, depois de terem os seus documentos confiscados, eram colocadas em uma situação degradante: dormiam amontoadas em galpões, não tinham acesso a água potável e eram submetidas a jornadas de trabalhos exaustivas. Os trabalhadores não podiam sair da Fazenda e eram obrigados a comprar comida e remédios com o dono da Fazenda, o que configurava também servidão por dívida. Depois de diversas fiscalizações, os autores não foram responsabilizados e as vítimas não foram indenizadas. A Corte condenou o Brasil pela violação de vários dispositivos da Convenção e afirmou que a escravidão contemporânea é um crime contra a humanidade e, portanto, imprescritível.
Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil ou caso Cosme Rosa Genoveva e Outros vs. Brasil (2017)
O Estado brasileiro foi acusado de não proceder adequadamente à investigação e punição dos responsáveis por execuções extrajudiciais de 26 pessoas e tortura e violência sexual contra três mulheres, duas delas menores, durante operações da Polícia Civil do Rio de Janeiro na Favela Nova Brasília.
A Corte concluiu que o Brasil violou diversas disposições da CADH e fez as seguintes observações:
- A existência de recursos judiciais não é suficiente para cumprir a obrigação convencional do Estado, devendo ainda ser idôneos, efetivos e oferecer resposta oportuna e exaustiva, de acordo com sua finalidade.
- As exigências do devido processo legal, bem como os critérios de independência e imparcialidade, estendem-se também aos órgãos não judiciais aos quais caiba a investigação prévia ao processo judicial. É indispensável que investigações sobre mortes decorrentes de intervenção policial sejam procedidas por órgão investigador independente dos funcionários envolvidos no incidente.
- A garantia da razoável duração do processo penal, deve ser examinada a partir dos seguintes critérios: (a) a complexidade do assunto; (b) a atividade processual do interessado; (c) a conduta das autoridades judiciais; e (d) o dano provocado na situação jurídica da pessoa envolvida no processo.
- A violência contra a mulher não só constitui uma violação dos direitos humanos, mas é uma “ofensa contra a dignidade humana e é manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens”, que “permeia todos os setores da sociedade, independentemente de classe, raça ou grupo étnico, renda, cultura, nível educacional, idade ou religião, e afeta negativamente suas próprias bases”.
- O estupro de uma mulher que se encontra detida ou sob a custódia de um agente do Estado é um ato especialmente grave e reprovável, levando em conta a vulnerabilidade da vítima e o abuso de poder que pratica o agente.
Caso do Povo Indígena Xucuru e seus Membros vs. Brasil (2018)
O processo administrativo de reconhecimento, titulação e demarcação do território indígena Xucuru demorou mais de dez anos (de 1989 a 2001), sendo que a titulação somente foi executada em 2005 e, até a data do julgamento, não havia sido concluída a retirada de não indígenas do território, devido à demora no julgamento de ações ajuizadas por terceiros.
No julgamento, a Corte concluiu que a demora do processo administrativo foi excessiva, em especial a homologação e a titulação do território Xucuru. Do mesmo modo, considerou injustificável o tempo transcorrido para que o Estado realizasse a desintrusão do território titulado. O Tribunal também assentou que a demora no julgamento das ações propostas por terceiros não indígenas afetou a segurança jurídica do direito de propriedade do Povo Indígena Xucuru.
Assim, em 5 de fevereiro de 2018, a Corte IDH proferiu sentença mediante a qual declarou o Estado brasileiro internacionalmente responsável pela violação do direito à garantia judicial de prazo razoável, previsto no art. 8.1 da CADH, bem como pela violação dos direitos de proteção judicial e à propriedade coletiva, previstos nos arts. 25 e 21 da Convenção, em detrimento do Povo Indígena Xucuru e seus membros.
Caso Herzog e Outros vs. Brasil (2018)
O Brasil foi acusado de ser responsável pela situação de impunidade em que se encontram a detenção arbitrária, a tortura e a morte do jornalista Vladimir Herzog, ocorridas em 25 de outubro de 1975, durante a ditadura militar. A Corte IDH concluiu que o Estado brasileiro violou os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial (artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH), o direito de conhecer a verdade (artigos 8 e 25) e o direito à integridade pessoal (art. 5.1). Em consequência, o Brasil foi condenado à obrigação de investigar penalmente os fatos, de adotar medidas de não repetição e de satisfação, de divulgar a sentença e de indenizar os danos materiais e imateriais.
Na ocasião, a Corte Interamericana reiterou o seu entendimento de que são nulas as disposições de leis de anistia – inclusive a brasileira, como já havia sido declarado no caso Gomes Lund – que impedem a investigação e a sanção de graves violações de direitos humanos. A Corte ainda reafirmou que as garantias da coisa julgada e do ne bis in idem não se aplicam aos crimes contra a humanidade, e que os crimes dessa natureza são imprescritíveis.
Caso dos Trabalhadores da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus Familiares vs. Brasil (2020)
Em 11 de dezembro de 1998, houve uma explosão em uma fábrica de fogos de artifício em Santo Antônio de Jesus, no Estado da Bahia. Morreram, no acidente, 60 pessoas, sendo 59 mulheres e, destas, 19 meninas.
A Corte concluiu que o Estado brasileiro violou o direito à vida e à integridade pessoal das vítimas falecidas ao descumprir o seu dever fiscalizar a fabricação de fogos de artifício, que é uma atividade perigosa, que implica riscos significativos para esses direitos das pessoas sob sua jurisdição.
O Brasil também deixou de garantir condições de trabalho equitativas e satisfatórias, o que é especialmente relevante quando se trata de atividades que implicam riscos para a vida e a integridade das pessoas. Também é especial a circunstância de haver crianças e adolescentes trabalhando na fábrica de fogos, o que também é incompatível com a normativa internacional de direitos humanos.
Nesse contexto, a Corte ainda entendeu violado o direito à igualdade e o princípio da não discriminação, pois identificou que a omissão do Estado brasileiro decorreu de padrões de discriminação estrutural e interseccional: as vítimas eram basicamente meninas e mulheres pobres e afrodescendentes.
A Corte também reconheceu a violação das garantias judiciais e de proteção judicial, diante da demora dos processos civis, trabalhistas e criminais.
Caso Márcia Barbosa de Souza e outros v. Brasil (2021)
O Brasil foi acusado de ser responsável pela situação de impunidade do homicídio e da ocultação do corpo de Márcia Barbosa de Souza, ocorridos em junho de 1998. Na oportunidade, a Corte observou que a violência contra mulheres no Brasil era (e ainda é), um problema estrutural e generalizado, que atinge principalmente mulheres jovens, negras e pobres, como a vítima.
A Corte concluiu que há indícios fortes de que a morte de Márcia foi resultado de violência de gênero e o Estado não realizou qualquer diligência probatória para determiná-lo, sendo que a falta de investigação sobre possíveis motivos discriminatórios de um ato de violência contra a mulher constitui uma forma própria de discriminação baseada no gênero. A investigação da morte violenta de uma mulher, portanto, deve ser feita desde uma perspectiva de gênero.
A Corte Interamericana também observou que a investigação e o processo penal foram marcados pela utilização de estereótipos de gênero e pela referência a aspectos da vida pessoal com o fim de desvalorizar vítima, com insinuações de que ela teria sido a geradora ou merecedora do crime.
O crime foi cometido pelo então deputado estadual Aércio Pereira de Lima. A investigação e o processo penal foram dificultados pela imunidade de que gozava o réu. À época, vigorava uma norma constitucional que exigia prévia licença da casa legislativa para que um parlamentar fosse processado criminalmente. Essa norma somente foi alterada em 2001, quando se passou a prever apenas a possibilidade de suspensão de processo penal em curso.
Nesse ponto, a Corte ressaltou que a imunidade parlamentar não pode se transformar em mecanismo de impunidade, concluindo que a forma como o tema estava regulamentado à época era contrária ao direito de acesso à justiça e ao dever de adotar disposições de direito interno.
A Corte Interamericana consignou que, para que que uma decisão parlamentar sobre a manutenção ou o levantamento da imunidade seja válida, deve observar os seguintes requisitos: a) seguir um procedimento célere, previsto em lei ou no regimento interno do órgão legislativo, que contenha regras claras e respeite as garantias do devido processo; b) incluir um teste de proporcionalidade estrito, através do qual se deve analisar a acusação formulada contra o parlamentar e levar em consideração o impacto ao direito de acesso à justiça das pessoas que podem ser afetadas e as consequências de se impedir o julgamento de um fato delitivo, e c) ser motivada e ter sua motivação vinculada à identificação e justificativa da existência ou não de um fumus persecutionis no exercício da ação penal proposta contra o parlamentar.
Desse modo, a Corte IDH concluiu que o Brasil é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais, à igualdade perante a lei e à proteção judicial (artigos 8.1, 24 e 25 da CADH); em relação às obrigações previstas no artigo 7.b da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; e pela violação do direito à integridade pessoal (5.1 da CADH).