Um dos temas mais relevantes para o cotidiano do Judiciário federal é o relativo aos processos judiciais previdenciários. Dentre esses, indo mais além, sabemos que da grande massa de processos que hoje tramitam nas unidades jurisdicionais do país com competência previdenciária – especialmente nos Juizados Especiais Federais situados no interior do país – existe uma considerável demanda de trabalhadores rurais, que buscam, no mais das vezes, o benefício de aposentadoria por idade.
Esse benefício previdenciário – tampouco a qualificação jurídica da categoria “segurado especial” no regime geral de previdência social – por sua vez, não passaram por nenhuma alteração promovida pela Emenda Constitucional 103/19. Após a reforma previdenciária, portanto, permaneceu incólume em nosso ordenamento jurídico a desnecessidade de comprovação de recolhimentos previdenciários, pelos segurados especiais, para fins de demonstração de suas filiações ao RGPS. Os trabalhadores rurais em regime de economia familiar ou, ainda, os pescadores artesanais, devem “apenas” comprovar, pelo tempo igual ao exigido para a carência do benefício, que laboraram com vistas as suas subsistências, sem auxílio de empregados permanentes, bem como dentro dos demais requisitos legais. Obtendo êxito nessa comprovação, e atendido o requisito etário, poderão se aposentar no valor de 1 salário-mínimo.
A grande questão que se coloca aqui, contudo, é a forma legal de comprovação desse trabalho rural em regime de economia familiar (ou, a forma de comprovação da pesca artesanal). E em relação a isso, é preciso que se chame à atenção que houve significativa mudança normativa desde a Medida Provisória 871, de 18 de janeiro de 2019, convertida na Lei 13.846/19, a chamada “minirreforma previdenciária”.
Pois bem. No aspecto probatório destes enquadramentos normativos do trabalhador rural como segurado especial, entendia-se, até aquelas alterações normativas, que os meios de provas utilizados por tais segurados só produziriam efeitos quando baseados em início de prova material, não se admitindo prova exclusivamente testemunhal, nos termos do art. 55, § 3º da Lei nº 8.213/91. Esse dispositivo – art. 55, §2º – era a pedra nuclear, juntamente, como o art. 106, parágrafo único, da Lei 8.213/91, do sistema legal de comprovação da qualidade de segurado especial. Sempre houve invocação indiscriminada de tal dispositivo legal para justificar a necessidade – até, então, inafastável – de se realizar audiência para colheita de prova oral do trabalhador rural. O objetivo dessa audiência era o de se complementar o “início de prova material” juntado pela parte autora nos processos judiciais que discutem benefícios rurais.
Vale frisar, nada obstante, que o art. 55, §3º, da Lei 8.213/91 não é, e nunca foi, exclusivo para a comprovação do trabalho rural dos segurados especiais, tratando-se de dispositivo que se aplica a qualquer pretensão de comprovação de “tempo de serviço” (rectius: tempo de contribuição). Já no âmbito específico da comprovação da qualidade de segurado especial, de outro lado, a estreita vinculação daquele artigo de lei com a produção da prova em juízo decorria de imposição expressa dada pelo art. 106, parágrafo único, também da Lei 8.213/91. Dizia esse dispositivo legal, desde a redação dada pela MP 1002/95, convertida na Lei 9.063/95, que a comprovação do exercício de atividade rural referente ao período anterior a 16 de abril de 1994, deveria observar (obrigatoriamente) o disposto no § 3º do art. 55 da Lei 8.213/91.
Veja que a norma era clara ao afirmar que tão somente o período anterior a 16/04/1994 deveria exigir a observância do art. 55, §3º, mencionado, mas a práxis judiciária evoluiu para a exigência invariável – e relativa a qualquer período de trabalho rural – de se exigir sempre o “início de prova material complementado por prova testemunhal”. Nada obstante, com o tempo, a jurisprudência também flexibilizou a expressividade legal, minorando a exigência de provas materiais para todos os anos de trabalho rural.
De todo modo, o que temos desde a MP 871/19, e até hoje, como sendo de significativo impacto no sistema normativo de comprovação do trabalho rural para fins previdenciários é que não mais se exige aquele estreita vinculação do art. 106, com o art. 55, §3º, da Lei 8.213/91.
Isso significa que não há mais a necessidade de observância invariável do binômio probatório “início de prova material complementado por prova testemunhal” que se tornou tão arraigado em nossa cultura judicial previdenciária, quando se trata de segurado especial.
Existe uma nova dinâmica probatória estabelecida pelas mudanças legislativas introduzidas pela MP 871/2019, convertida na Lei nº 13.846/2019.
A mudança nuclear para a alteração do antigo regime probatório foi a revogação do parágrafo único, do art. 106, da Lei 8.213/91, deixando de existir a previsão de que a prova do período rural deveria observar o disposto no art. 55, §3º, daquela lei. Além disso, foram inseridos os artigos 38-A, 38-B, na referida lei de benefícios da previdência social, os quais, respectivamente, tratam da criação de um cadastro dos segurados especiais no Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS) e da determinação de que o INSS deverá utilizar “as informações constantes do cadastro de que trata o art. 38-A para fins de comprovação do exercício da atividade e da condição do segurado especial e do respectivo grupo familiar”.
O §1º, do art. 38-B, segue assinalando que aquele cadastro servirá como prova exclusiva da condição de segurado especial a partir de 1º de janeiro de 2023. Assinala-se, de outro lado, no §2º, do art. 38-B, que, para o período anterior a 1º de janeiro de 2020, o segurado especial comprovará o tempo de exercício da atividade rural por meio de autodeclaração. Essa autodeclaração precisa ser ratificada por entidades públicas credenciadas ou pelo próprio INSS (art. 19-C, §17, do Decreto 3.048/99).
Esses dispositivos foram regulamentados por meio do Ofício-Circular nº 46 /DIRBEN/INSS, de 13 de setembro de 2019. Em âmbito administrativo, o referido Ofício-Circular nº 46 /DIRBEN/INSS, de 13 de setembro de 2019, foi editado para dar orientações “para análise da comprovação da atividade de segurado especial e computo dos períodos em benefícios“, considerando os “novos procedimentos decorrentes da publicação da Lei nº 13.846, de 18 de junho de 2019“, servindo como norte interpretativo da realidade normativa vigente desde a MP 871/19 para a comprovação do trabalho rural.
Assim, nesse novo panorama normativo, a comprovação da condição de trabalhador rural em regime de economia familiar deve ser feita com base nos dados governamentais, bem como em documentos complementares juntados pela parte autora, dispensando a – antes invariável – convocação de audiência para se colher prova oral em complementação ao início de prova material juntado. Nada impede, claro, que, em havendo contradição, abra-se a possibilidade de dilação probatória em audiência ou, ainda, por meio de qualquer prova idônea e legalmente admitida em nosso ordenamento jurídico (art. 369, do Código de Processo Civil). Nesses casos, pode ainda funcionar o art. 55, §3º, da Lei 8.213/91, como instrumento normativo subsidiário relativamente ao objetivo de se atingir aquela comprovação. Entretanto, trata-se de norma subsidiária, porque somente terá aplicabilidade quando for constatada à “falta de documento”, isto é, ausência dos instrumentos ratificadores ou dos documentos complementares mencionados no Ofício-Circular 46/2019.
A norma do art. 55, §3º, da Lei 8.213/91, pode ser usada para a comprovação do trabalho rural, mas sua aplicação na seara do segurado especial deriva de remessa normativa geral feita pelo art. 108, da Lei de Benefícios, sendo que esse dispositivo trata da solução jurídica que pode ser dada à “falta de documento”. Não havendo documentos para a comprovação do trabalho rural, o segurado pode se valer da justificação administrativa ou, trazendo isso para a prática judicial previdenciária, pode se valer de produção probatória testemunhal, sendo, entretanto, vedada a “prova exclusivamente testemunhal” (art. 55, §3º, da Lei 8.213/91).
Em conclusão, dentro das novas normas que tratam da comprovação da qualidade de segurado especial, o art. 108 c/c art. 55, §3º, da Lei 8.213/91, ainda terá serventia para a demonstração do trabalho rural em regime de economia familiar. Contudo, não como antes, podendo ser invocado apenas se, em relação à parte autora em relação a qual não houver instrumentos ratificadores aptos à ratificação dos períodos rurais autodeclarados.
De certo que ainda se poderá encontrar situação na qual os documentos rurais juntados possam estar em contradição ou, ainda, pouco esclarecedores, de modo que a prova testemunhal poderá servir a ao fim de suprir tal situação. Mas, a histórica função eficacial temporal – de cunho prospectivo e/ou retrospectivo – operada pelos documentos corroborados por prova testemunhal, perdeu importância prática no processo judicial previdenciário, pois, desde aquelas noveis normas são os próprios documentos isoladamente que possuem tal eficácia. Desde a MP 871/19, Lei 13.846/19 e, bem assim, o Ofício-Circular 46/19, são os documentos, ou dados governamentais que contenham informações do trabalhador rural, que possuem no seu bojo e na essência de seus dados aquela eficácia temporal prospectiva e retrospectiva para preencher o período de carência do benefício previdenciário rural. E, mais, de acordo com o Item 6, inciso I, daquele ofício-circular, isto é, de acordo com a própria interpretação dada pela autarquia previdenciária, a nova sistemática probatória do segurado especial exige apenas 1 instrumento ratificador (dado governamental ou documento) para cada metade do período de carência autodeclarado.
Assim, no panorama normativo atual, tudo gira em torno de uma autodeclaração do segurado especial a ser ratificada por meio de dados extraídos de bases governamentais ou, se for o caso, por meio de documentos complementares, sendo desnecessária, como regra, a realização de audiência para colheita invariável de prova oral destinada a comprovação da qualidade de segurado especial, sendo tal medida recomendável apenas se houver, conforme o prudente convencimento do Juízo, contradição entre aqueles instrumentos ratificadores ou, ainda, qualquer outro dado que necessite ser esclarecido por meio de depoimentos do segurado e/ou de testemunhas arroladas.
FREDERICO PEREIRA MARTINS
Juiz Federal do TRF-1